Gostaria de começar este texto fazendo uma menção ao artigo do escritor sul-africano Mia Couto denominado “os sete sapatos sujos”. Nele, propõe sapatos que a modernidade periférica deve descalçar para que possa alcançar algum avanço. Sem o propósito de minudenciar todos, destaco o sétimo sapato: a ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros. Retomaremos este debate ao fim.
Controle de constitucionalidade corresponde, em um esforço de síntese, à análise de compatibilidade entre normas jurídicas e a Constituição, norma de maior hierarquia do ordenamento. Pressupõe, portanto, dois aspectos principais, via de regra: supremacia e rigidez. Como se costuma dizer, é suprema porque rígida, e rígida porque suprema.
Força é, no entanto, que antes de aprofundar o objeto do presente texto, seja apreendida uma noção de Constituição (sem qualquer pretensão, a toda evidência, de fornecer a última palavra). Parece acertada a definição de Virgílio Afonso da Silva (2021, p. 33), para quem “uma constituição, não importa a forma que tenha, é necessariamente um pacto. Ela não pode apenas ser vista como um conjunto de regras e princípios que protegem indivíduos isolados. Ela é um pacto que funda uma comunidade política”. Deflui-se, portanto, que uma Constituição não se restringe a estabelecer regras ao exercício do poder. Para além disso, possui a significativa missão de estabelecer diretrizes à convivência harmoniosa entre os membros de uma sociedade.
Não se mostra despiciendo, demais disso, fazer uma breve revisita à teoria do poder constituinte. Para Canotilho (2003, p. 65), “o poder constituinte se revela sempre como uma questão de poder, de força ou de autoridade política que está em condições de, numa determinada situação concreta, criar, garantir ou eliminar uma Constituição entendida como lei fundamental da comunidade política”. A partir disso, é comezinho o entendimento de que o poder constituinte pode ser originário (instaurando uma nova ordem jurídica) ou derivado (modificando a mencionada ordem).
Pois bem. Existe, em sede doutrinária, acalorada discussão que gravita em torno dos limites do poder constituinte originário. Aos que se filiam à vertente positivista, trata-se de poder juridicamente ilimitado, não havendo falar em lindes à sua atuação (LENZA, 2019, p. 208). De outra banda, aos que advogam em favor da corrente jusnaturalista, o poder originário esbarra no direito natural (supralegal). Nos dizeres de Otto Bachof (2014, pp. 30, 31), uma “Constituição não vale como um acto de um poder absoluto de decisão, despido de todas as vinculações jurídicas, as se encontra, ela própria, sujeita à precedência de normas que lhe estão supra-ordenadas”.
Não se pode deixar de concordar com os argumentos naturalistas. Ainda que o Brasil tenha, consoante autorizada parcela doutrinária, adotado a corrente positivista, limites devem ser impostos à atuação do poder constituinte originário. É manifestamente descabido pensar em uma Constituição que legitime a escravidão, a eugenia, um governo absoluto, dentre outros absurdos (éticos e jurídicos). Além de ferir de morte a dignidade da pessoa humana (vetor interpretativo que merece sempre observância, na qualidade de supraprincípio), vai-se de encontro à própria definição de Constituição.
É estribado nestas linhas preliminares que se discute a possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais, é dizer, se normas inseridas na Constituição podem ser inconstitucionais.
Na Alemanha, chama a atenção o pensamento do alhures citado jurista Otto Bachof. Em paradigmática obra sobre o tema, analisa a possibilidade sob diversas perspectivas. Apenas a título exemplificativo, mencione-se norma formalmente pertencente à Constituição que vai de encontro ao direito natural. Aqui, à míngua de legitimidade (rectius: obrigatoriedade jurídica), chega-se à ilação de que se trata de norma inconstitucional (BACHOFF, 2014, p. 63).
Outra possibilidade: infração de direito constitucional não escrito. Se uma norma constitucional (reitere-se, formalmente constitucional) for destoante dos princípios constitutivos não escritos da Constituição (v.g., em um Estado federal, a máxima do comportamento que não prejudique a Federação), alternativas não há que não reconhecer sua inconstitucionalidade (BACHOFF, 2014, p. 64).
No Brasil, a tese da inconstitucionalidade das normas originariamente constitucionais1 não foi agasalhada pelo Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de inexistência de hierarquia entre elas. Nessas hipóteses, em caso de eventual (e aparente) conflito, o intérprete deve lançar mão do princípio hermenêutico da unidade da Constituição, de conformidade com o qual “as normas deverão ser vistas como preceitos integrados em um sistema unitário de regras e princípios” (LENZA, 2019, p. 176). Corroborando o exposto, afigura-se curial colacionar uma decisão do STF:
A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de 'originário') não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas.
Ex positis, e em que pese todo o brilhantismo do pensamento de Otto Bachof, não é possível, na conjuntura brasileira, aplicar sua tese da norma constitucional inconstitucional. A realidade jurídico-política alemã é incompatível com a brasileira, e, portanto, esse sapato apertado não nos calça.
Notas
A inserção do “originariamente” se mostra relevante pelo fato de que emendas constitucionais, quando malferirem cláusulas pétreas, poderem ser objeto de controle de constitucionalidade. Sobre o tema, cf., com proveito, CLÈVE, Clèmerson Merlin et al. Jurisdição constitucional em perspectiva: Estudos em comemoração aos 20 anos da Lei 9.868/1999. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.