Introdução
A adoção de critérios de heteroidentificação em concursos públicos como complemento à autodeclaração é uma questão de grande relevância e complexidade no contexto das políticas de cotas raciais. A ADC 41, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), definiu a constitucionalidade da reserva de vagas para negros em concursos públicos, permitindo a adoção de critérios complementares à autodeclaração.
A implementação de políticas de cotas em concursos públicos para serviço público é uma iniciativa importante para promover a igualdade de oportunidades e corrigir desigualdades históricas. No entanto, um dos principais desafios enfrentados nesse processo é a subjetividade presente no procedimento de heteroidentificação, que consiste na avaliação da autodeclaração dos candidatos em relação à sua pertença étnico-racial.
A subjetividade introduz incertezas e contradições no processo, levantando questões sobre a validade e equidade das decisões tomadas pelas bancas examinadoras, sobretudo em casos em que a subjetividade é evidente justamente devido aos candidatos já terem sido aprovados em outros certames de maneira legítima e submetidos a procedimentos análogos.
Nesse contexto, deve-se ter em mente que a identidade étnico-racial é uma construção complexa, influenciada por uma variedade de fatores, como origem geográfica, contexto cultural, experiências pessoais e percepções individuais. Isso leva a uma situação em que a avaliação da pertença étnico-racial não é uma tarefa simples e objetiva. A subjetividade surge a partir da diversidade de interpretações sobre o que constitui uma determinada identidade étnica ou racial.
Critérios de Heteroidentificação e a ADC 41
A Lei n° 12.990/2014 estabeleceu a reserva de vagas para negros em concursos públicos, com a aplicação do critério de autodeclaração como forma de identificação racial. A ADC 41 reforçou a constitucionalidade dessa prática, respeitando a autopercepção dos candidatos. Além disso, a decisão do STF permitiu a adoção de critérios de heteroidentificação complementares à autodeclaração.
No entanto, a implementação desses critérios adicionais deve ser cuidadosa e respeitar princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a proporcionalidade. A decisão do STF enfatizou a importância de garantir o contraditório e a ampla defesa durante o processo de avaliação.
Subjetividade e Contradições
A subjetividade é uma característica inerente ao processo de heteroidentificação, uma vez que a identidade racial é influenciada por fatores sociais, culturais e individuais. Isso pode resultar em interpretações divergentes por parte dos avaliadores, levando a decisões contraditórias em relação à mesma banca examinadora e ao mesmo candidato.
Os casos em que um candidato é aprovado em um concurso e reprovado em outro pela mesma banca examinadora destacam a complexidade da avaliação da identidade racial. Essas discrepâncias geram questionamentos sobre a consistência do processo e a justiça das decisões, reforçando a necessidade de critérios claros e orientações detalhadas.
Vários fatores contribuem para a subjetividade na heteroidentificação. A ausência de critérios claros e objetivos para a avaliação é um dos principais elementos geradores de interpretações divergentes. Sem orientações específicas sobre o que deve ser considerado como evidência de pertença étnico-racial, avaliadores podem confiar em suas próprias percepções pessoais, levando a resultados inconsistentes.
Além disso, a pressão para identificar possíveis candidatos fraudulentos que buscam se beneficiar das cotas pode incentivar a banca a adotar uma abordagem mais rigorosa. Isso pode resultar em avaliações excessivamente criteriosas, aumentando a possibilidade de erros e injustiças.
Contraditório Material e Motivação
A garantia do contraditório material é essencial para assegurar que os candidatos tenham a oportunidade de apresentar provas e argumentos que sustentem suas autodeclarações. A motivação adequada das decisões é outro ponto crucial, pois demonstra a fundamentação jurídica e fática que levou à avaliação de determinado candidato.
A decisão do STF na ADC 41 ressalta que os critérios subsidiários de heteroidentificação devem respeitar a dignidade da pessoa humana e garantir o contraditório e a ampla defesa. A necessidade de fundamentar as decisões, explicando os pressupostos de fato e de direito que as embasam, é um princípio que deve ser seguido pela administração pública.
A possibilidade de adoção de critérios de heteroidentificação complementares à autodeclaração em concursos públicos apresenta desafios complexos, relacionados à subjetividade, às decisões contraditórias e à garantia do contraditório material. A implementação desses critérios deve ser pautada por critérios claros e objetivos, respeitando os princípios constitucionais e os direitos dos candidatos.
A garantia do contraditório, a motivação adequada das decisões e a transparência no processo de avaliação são fundamentais para evitar injustiças e assegurar a equidade nas políticas de cotas. A construção de um processo justo e transparente é um desafio contínuo, que exige a colaboração de todos os envolvidos, desde os avaliadores até os próprios candidatos, para que a busca pela igualdade de oportunidades seja efetivamente alcançada.
Decisões Contraditórias: O Mesmo Candidato, Diferentes Resultados
Um fenômeno que ilustra a subjetividade no processo de heteroidentificação são os casos em que um mesmo candidato obtém resultados diferentes em concursos conduzidos pela mesma banca examinadora. Aprovado em um concurso e reprovado em outro, o candidato é confrontado com interpretações discordantes de sua autodeclaração. Essas disparidades ressaltam a inconsistência subjacente ao processo e suscitam questionamentos acerca da justiça e imparcialidade das decisões.
Controle judicial
O norte da questão consiste no fato de que quando houver dúvida razoável sobre o fenótipo do candidato, a autodeclaração deve prevalecer, esse entendimento inclusive restou consignado no voto do relator no julgamento da ADC 41, onde houve ressalva expressa quanto a necessidade de cautela na associação da autodeclaração a mecanismos de heteroidentificação, garantindo a dignidade dos candidatos, o contraditório e a ampla defesa.
Vale dizer que, não está defendendo a impossibilidade de adoção do critério de heteroidentificação, mas sim que esse procedimento não seja utilizado como justificativa para que o próprio estado, em situações similares e envolvendo o mesmo candidato, não haja de modo contraditório, a final a cor da pele ou fenótipo de uma pessoa não são características mutáveis, ao contrário, são traços definitivos que acompanham uma pessoa durante todo o curso de sua vida e em todos os ambientes sociais.
Nesse contexto, indaga-se: “como pode uma pessoa ser considerada negra (parda) em um certame e, logo em seguida, em outro certame realizado pela mesma banca, ser considerada branca?” ou ainda “como pode uma pessoa cursar o nível superior em uma faculdade pública ao ser aprovada como cotista e, posteriormente, ao tentar ingressar no mercado de trabalho, ser reprovada em um procedimento de heteroidentificação?”
São perguntas, que claramente devem ser encaradas com seriedade pelo Poder Judiciário, sob pena de uma política pública feita para reduzir desigualdades sociais, acabar sendo utilizada como instrumento para consolidar injustiças, o que certamente acabará impactando a personalidade das pessoas reforçando estigmas sociais.
Existem casos, onde a inconsistência da decisão da banca examinadora em relação a candidatos é notória e pode ser questionada com base em documentos oficiais, incluindo registros funcionais e decisões anteriores da mesma banca, que confirmam a autodeclaração do candidato como pardo, de modo que, nesse tido de caso, a exclusão da lista especial de cotistas certamente carecerá de fundamentação sólida e violará princípios como segurança jurídica, legalidade, razoabilidade e proporcionalidade.
Vale dizer, a ausência de critérios objetivos para a análise do fenótipo do candidato, aliada à falta de motivação suficiente para a decisão, gera incertezas e fragiliza a legitimidade do processo. Não parece razoável que uma banca examinadora (em última instância o estado), sem fundamentação adequada, comprometa a segurança jurídica e a confiança legítima dos candidatos.
É justamente esse tipo de decisão que reforça a complexidade e os desafios envolvidos na aplicação dos critérios de heteroidentificação em concursos públicos. A subjetividade na análise do fenótipo do candidato, aliada à falta de critérios objetivos e à ausência de motivação adequada, resulta em decisões contraditórias e incoerentes.
A garantia do contraditório material, a motivação suficiente e a consistência nas decisões são fundamentais para assegurar a justiça e a equidade nas políticas de cotas raciais. A necessidade de respeitar a identidade dos candidatos, garantir a igualdade de oportunidades e evitar atos contraditórios deve ser o norte para a administração pública.
A nulidade desse tipo de ato administrativo se fundamenta na falta de motivação e na violação de princípios basilares do ordenamento jurídico, pois, repita-se, a identidade racial é um aspecto inalterável e negar isso equivale a apagar a personalidade e história de uma pessoa que busca melhorar sua vida.
A busca por um processo transparente, justo e equânime exige constante atenção à aplicação adequada dos critérios de heteroidentificação, sempre respeitando os direitos e a dignidade dos candidatos, em respeito a boa-fé que exige um dever de coerência do comportamento, consistente na necessidade de observar no futuro a conduta que os atos anteriores faziam prevê, conforme determina a teoria do ato próprio.
Nesse sentido, acertadamente, a jurisprudência do TRF1 viabiliza a análise, pelo judiciário, da condição dos candidatos para integrarem a lista de candidatos cotistas de concurso público, englobando, inclusive, a análise da falta de razoabilidade do ato:
“ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. LEI 12.990/2014. VAGADESTINADA A CANDIDATO NEGRO E PARDO. AUTODECLARAÇÃO. COMISSÃO DE VERIFICAÇÃO. INCOERÊNCIA. ILEGALIDADE. SENTENÇA REFORMADA.
1. Candidato que foi considerado negro ou pardo em concurso pretérito para fins de concorrência pelo sistema de cotas raciais faz jus à mesma conclusão no certame imediatamente seguinte, sob pena de irrazoabilidade ou existência de subjetivismo na avaliação do critério, mormente se há a comprovação de sua condição por fotografia. Precedentes.
2. Ilegalidade de ato administrativo da comissão avaliadora, prevista no edital regrador do certame, designada para analisar a veracidade da autodeclaração prestada pelos candidatos negros ou pardos, que conclui pela eliminação de candidata do concurso público por entender que não possui fenótipo "pardo", contrariando, assim, decisão administrativa de comissão avaliadora de outro certame, porém da mesma banca examinadora, que aprovou a mesma candidata como apta a concorrer às vagas destinadas aos candidatos negros e pardos. 3. Apelação a que se dá provimento.
(AC 1006570-77.2015.4.01.3400, DESEMBARGADOR FEDERAL DANIELE MARANHAO COSTA, TRF1 - QUINTA TURMA, PJe11/02/2019 PAG.)”. Grifei.
Trata-se de controle legítimo da legalidade do ato administrativo, ante a opção legislativa de considerar negros para fins de reserva de vagas os que se declaram pretos e pardos, impondo-se sua invalidação, sob pena de caracterização, isso sim, de indevida desvirtuação do critério escolhido pelo legislador (pretos e pardos).
Implicações e Soluções Potenciais
A subjetividade na heteroidentificação tem implicações profundas. Candidatos que são reprovados injustamente podem ser privados de oportunidades, enquanto outros que não se enquadram nas cotas podem se beneficiar indevidamente. Isso compromete a confiança no sistema de cotas e pode levar a disputas legais.
Para abordar essas questões, é crucial adotar medidas que minimizem a subjetividade no processo. Isso pode incluir a definição clara de critérios de avaliação, orientações detalhadas para os avaliadores e a capacitação adequada sobre questões de identidade étnico-racial. A introdução de comitês de revisão independentes pode ajudar a mitigar o viés individual e assegurar decisões mais equitativas.
Conclusão
A subjetividade no procedimento de heteroidentificação em cotas de serviço público é um desafio complexo que precisa ser enfrentado para garantir a eficácia e a justiça das políticas de cotas. A identidade étnico-racial é intrinsecamente subjetiva, mas é possível tomar medidas para minimizar as interpretações divergentes e promover um processo mais justo e transparente. A busca por critérios claros, orientações precisas e revisões independentes pode contribuir para a construção de um sistema que atenda ao propósito de corrigir desigualdades históricas, ao mesmo tempo que garante a equidade e a confiabilidade.
Por fim, ressalta-se que advogados dedicados a causas de heteroidentificação em concursos públicos desempenham um papel essencial ao salvaguardar os direitos dos candidatos. Sua profunda familiaridade com as leis, regulamentações e jurisprudência relacionadas às cotas raciais possibilita uma interpretação precisa dos critérios de análise fenotípica, visando retificar decisões injustas feitas pelas bancas examinadoras, notadamente por abordar abordarem as questões de identidade racial com sensibilidade e integridade, contribuindo para a defesa dos direitos humanos e a promoção da igualdade.