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Relativização da coisa julgada: uma leitura a partir de Cândido Rangel Dinamarco

Agenda 29/09/2023 às 11:30

Humberto Ávila (2021, p. 54), em sua paradigmática obra sobre o tema, lança mão da seguinte reflexão: “Na busca por segurança- eis o paradoxo-, o homem terminou por sentir-se mais inseguro”. A máxima, bem vistas as coisas, ilustra uma preocupação significativa: o que acontece quando um dos instrumentos de tutela da paz social perpetua injustiças? A inquietação não é descabida, na medida em que os valores vigentes em determinado ordenamento jurídico podem, eventualmente, entrar em conflito...

Antes de adentrar no mérito, afigura-se salutar, para fins de desenvolvimento do presente trabalho, conceituar, ainda que en passant, a segurança jurídica (sem qualquer pretensão, a toda evidência, de esgotamento do assunto, na medida em que já vastamente tratado pela literatura). Assim, mostra-se acertado o pensamento de Humberto Ávila (2021, p. 122), para quem “segurança jurídica representa, pois, a segurança como fenômeno valorativo intersubjetivável vinculado ao Direito de uma dada sociedade, quer como valor, quer como norma, tendo o jurídico como seu objeto ou como seu instrumento”. O professor do Largo de São Francisco assevera, então, que os três principais vetores da segurança são a cognoscibilidade, a confiabilidade e a calculabilidade (Ávila, 2021, p. 311).

Quando se fala em segurança jurídica, força é que se rememore a coisa julgada. No entanto, Pontes de Miranda, na altura, já fazia o alerta de que se levou longe demais a noção de coisa julgada. Destarte, não se pode olvidar isto: a res judicata, em que pese amiúde associada à segurança jurídica, não pode ser confundida com esta: é apenas um dos mecanismos aptos a garanti-la.

A partir desta perspectiva, é lugar comum no meio acadêmico realizar a relativização da coisa julgada (é de se salientar, todavia, que esse entendimento deve ser visto cum grano salis, de tal sorte que sua flexibilização se dê em situações excepcionais, sob pena de transformar a exceção em regra). Afinal, nenhum valor jurídico é absoluto, devendo haver ponderação quando entre em via de colisão com algum outro.

É nesse contexto que se coloca a proposta de Cândido Rangel Dinamarco (2001, p. 12): “O processo deve ser realizado e produzir resultados estáveis tão logo quanto possível, sem que com isso se impeça ou prejudique a justiça dos resultados que ele produzirá”. Isso é passível de acontecer porque segurança não quer significar, necessariamente, petrificação. Antonio do Passo Cabral (2021, p. 373, 374), ao discorrer acerca da concepção de segurança-continuidade, assevera: “A continuidade revela uma maneira de não bloquear totalmente as mudanças e, ao mesmo tempo, preservar a segurança. A continuidade torna a posição jurídica tendencialmente estável, sem contudo apelar para a sua imutabilidade”.

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Ora, não se pode pretender que a coisa julgada faça do branco preto, e transforme o falso em verdadeiro. Essa vetusta concepção não merece guarida, sob pena de malferimento a determinados imperativos constitucionais, como o de acesso à ordem jurídica justa1. Apenas a título exemplificativo, o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do REsp 240712, agasalhou a tese em comento:

Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado.

A coisa julgada, enquanto fenômeno decorrente de princípio ligado ao Estado Democrático de Direito, convive com outros princípios fundamentais igualmente pertinentes. Ademais, como todos os atos oriundos do Estado, também a coisa julgada se formará se presentes pressupostos legalmente estabelecidos. Ausentes estes, de duas, uma: (a) ou a decisão não ficará acobertada pela coisa julgada, ou (b) embora suscetível de ser atingida pela coisa julgada, a decisão poderá, ainda assim, ser revista pelo próprio Estado, desde que presentes motivos preestabelecidos na norma jurídica, adequadamente interpretada (STJ - AgRg no AgRg no REsp: 1416333 SP 2013/0131254-6, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 17/12/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/02/2014).

Resvalando por esta senda, é de clareza meridiana que a coisa julgada não pode prevalecer de maneira ampla e irrestrita. Suponhamos, v.g., que uma sentença declare a possibilidade de que um proprietário de uma fazenda mantenha pessoas em regime de escravidão. Salta aos olhos a vulneração da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, princípio dos princípios. Como conceber a imutabilidade de uma decisão dessas? “Ora, não se pode admitir coisa julgada ou direito adquirido contra direitos fundamentais da humanidade” (Mazzilli, 2018, p. 704).

Inobstante, parâmetros devem ser assentados para que se viabilize a relativização da coisa julgada. Não basta a mera menção à expressão “justiça”, na medida em que se trata de um conceito de baixa densidade normativa (rectius: alto grau de generalidade e abstração). É imprescindível, pois, a adoção de um viés argumentativo robusto2. Destarte, como pontua Dinamarco (2001, p. 29), “o juiz que racionalmente negar a autoridade da coisa julgada em um caso saberá que, se estiver errado, haverá tribunais com poder suficiente para reformar-lhe a decisão. Deixe a vaidade de lado e não tema o erro, sempre que estiver convencido da injustiça”. Sustentar entendimento contrário corresponderia a inumar as vigas medulares do Estado Constitucional e Democrático ora vigente.


  1. Registre-se, entrementes, a existência de autorizada parcela doutrinária que sustenta entendimento contrário, como MARINONI, Luis Guilherme. A intangibilidade da coisa julgada diante da decisão de inconstitucionalidade. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. Argumenta-se que “sem coisa julgada não há como falar em discurso jurídico e, por consequência, em Estado Democrático de Direito” (MARINONI, 2016, p. 150).

  2. A argumentação exerce, consoante clássica doutrina, dupla função, a saber, exógena, destinando-se à sociedade, e endoprocessual, para fins recursais (TARUFFO, p. 320 et seq, trad. minha).

Sobre o autor
Diego Araújo Rebouças

Amante do Direito.

Informações sobre o texto

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