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O Direito é a sociedade. Breves comentários sobre a História do Direito

Agenda 09/10/2023 às 15:46

O Direito é a sociedade. A História do Direito é a história da espécie humana. Sem História não há como compreender o Direito atual.

Compreender Direito. É necessário mais do que decorar artigos. É necessário estudar os momentos históricos, as bases fundadoras de um grupo, de uma nação, de um Estado Nação e do próprio Estado. Topologia, intempéries, qualidade do solo, quantidades de reservas minerais. Tudo influencia na existência da espécie humana. Povos cujos territórios estavam próximos de rios floresceram muito mais. 

Interessante saber da sociedade egípcia e da sociedade hebraica:

Família: não há sinais de solidariedade clânica entre os egípcios, sendo todos os habitantes considerados iguais perante o direito, sem privilégios. A célula social por excelência era a família em sentido restrito: pai, mãe e filhos menores. Além de marido e mulher serem colocados em pé de igualdade, todos os filhos, tanto filha como filho, eram considerados iguais, sem direito de primogenitura nem privilégio de masculinidade. Os filhos ganhavam a emancipação após atingirem determinada idade, o que os diferenciava dos romanos, sociedade na qual os filhos só ganhavam a emancipação se fosse ela concedida pelo patriarca, o pater-famílias.

(...)

No denominado Regime Senhorial, que surge a partir do fim da V dinastia, houve mudanças no direito egípcio, acompanhadas de grande retrocesso.

No direito privado o retrocesso não foi diferente, com o reforço do poder paternal e marital, desigualdade no domínio das sucessões, com  privilégios para os primogênitos e para os homens. Os contratos tornaram-se escassos.

(...)

Os hebreus são semitas que viviam em tribos nômades, conduzidas por chefes. Retornam do Egito, o denominado êxodo, por volta do século XII a.C., instalando-se na Palestina, entre os hititas e os egípcios. O êxodo, fuga do povo hebreu da perseguição e da escravidão faraônica no Egito, foi comandado por Moisés, grande líder e legislador.

O direito hebraico é um direito religioso, embasado em uma religião monoteísta, bastante diferente dos politeísmos que grassavam na Antiguidade. Dessa forma, o direito é dado por Deus ao seu povo, sendo, portanto, imutável. Só a Deus é permitido modificá-lo, concepção que reencontraremos nos direitos canônico e muçulmano. Os intérpretes, os rabinos, podem interpretá-lo adaptando-o à evolução social, mas sem modificar os fundamentos básicos. ( AGUIAR, Renan. História do direito / Renan A g u ia r ; coordenador José Fobio Rodrigues Maciel. - 4. ed. - S ã o P a u l o : Saraiva, 2010 . - (Coleção roteiros jurídicos)

O Direito egípcio tinha o faraó como Deus. O Direito hebreu tinha Deus como o legislador e juiz. Enquanto no egípcio as normas eram criadas diretamente pelo faraó, as normas no povo hebreu eram criadas por Deus, mas foram transmitidas pelos seres humanos como os profetas, Moisés. Os Estados eram interpenetrados pelas respectivas religiões.

Continuo com a sociedade egípcia:

O casamento era um evento simples, sem cerimônia religiosa ou civil; geralmente a mulher — embora ocasionalmente o homem — simplesmente mudava-se para a casa do marido, talvez acompanhada por uma procissão pelas ruas e uma festa.

Sem nada cerimonial ou oficial, a maioria dos casamentos foi deixada em situação irregular, mas os casais ricos muitas vezes assinavam contratos delineando as consequências financeiras de um divórcio.

Mas mais intrigantes são os documentos que descrevem casamentos temporários ou de teste:

"Você estará em minha casa enquanto estiver comigo como uma esposa a partir de hoje, o primeiro dia do terceiro mês do inverno do décimo sexto ano, até o primeiro dia do quarto mês da estação das cheias do ano dezessete." (1)

No Povo hebreu, a poliginia era permitida no casamento. Com o tempo, o casamento somente era monogâmico. Enquanto no Egito Antigo era comum o casamento consanguíneo, por exemplo, irmão com irmã, entre os hebreus era proibido. Podemos, tranquilamente, admitir que as normas são frutos dos pensamentos sobre como viver, existir, coexistir. Enfim, as relações entre Estado e civis; entre os próprios civis.

O DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940:

Bigamia

Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.

§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos.

§ 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.

Vamos admitir que estamos na época de Abraão. A bigamia não seria crime. Agora, caso Abraão fosse brasileiro — transportado para nossa era —, ele não poderia casar pela segunda vez.

Compreender fatos históricos é importantíssimo para os estudantes de Direito, quando mais aos Operadores de Direito. Isso para a compreensão sobre costumes e normas.

DECRETO-LEI Nº 1.001, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969

DO RAPTO E DA VIOLÊNCIA CARNAL

        Rapto

         Art. 407. Raptar mulher honesta, mediante violência ou grave ameaça, para fim libidinoso, em lugar de efetivas operações militares:

        Pena - reclusão, de dois a quatro anos.

        Resultado mais grave

        § 1º Se da violência resulta lesão grave:

        Pena - reclusão, de seis a dez anos.

        § 2º Se resulta morte:

        Pena - reclusão, de doze a trinta anos. (grifo do autor)

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O termo mulher honesta advêm da Ordenações Filipinas (1603 – 1830). Qual era a raiz da influência no termo mulher honesta? Ou melhor, de qual povo e qual era a sua religião? Temos as influências social, cultural, política e religiosa nas criações das normas. Como o Brasil foi colonizado pelos portugueses, e como a religião era de tradição judaico-cristã, o termo mulher honesta. Esse termo continuou no ordenamento jurídico Brasileiro mesmo na República. O Decreto original:

DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940

Art. 215 - Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude:

Art. 216 - Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

A mulher cisgênero era concebida como um ser humano frágil, doméstico, dependente (do marido); possuía pouca capacidade intelectual. Quanto ao perigo social, pouco ou nenhum perigo. Era assim tratada pelo Direito Penal brasileiro.

O status social isonômico na sociedade brasileira ocorreu com a promulgação da CRFB de 1988. Por que não ser mais mulher honesta e sim um ser humano com dignidade? A mulher honesta era considera, além dos especificados no parágrafo anterior, uma condição de ser virgem, a himenolatria. Ora, com forte influência religiosa, a mulher deveria ser virgem, até o casamento, como possuidora de virtude social. O seu papel social tinha uma imagem esperada pela sociedade, fortemente patriarcal. Como a sociedade brasileira entendeu não ser a mulher um produto de crença religiosa, muito menos que o Estado, ainda que se considerasse laico, ditasse o que é ser mulher, numa condição jus-filosófica a mulher é. Dessa condição individual, um ser humano dotado de desejos, aspirações etc. Ora, a finalidade do Direito atual é a realização individual (art. 1º, I, da CRFB de 1988), sem de afastar da coletividade (art. 3º, da CRFB de 1988), e não a supressão da vontade de um gênero por outro. Da condição de mulher honesta, o atributo inerente ao ser humano, por ser espécie humana. Não importam as diferenças físicas, as particularidades fisiológicas dos gêneros, masculino ou feminino, as pessoas são detentoras de igual dignidade.

A dignidade humana é fundamento da autonomia da vontade? Se assim conceber ou priorizar, aos que não têm consciência, como uma pessoa em coma, não há dignidade, por não ter capacidade de expressar sua própria autonomia. Também pela condição jus-filosófica, a mudança em relação às pessoas com necessidades especiais:

LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002

Art. 3° São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;(Revogado) ; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

Inexistindo autoconsciência cessa a dignidade? Jamais. Como dito, uma pessoa em coma — o paciente não pode ser despertado e os olhos não se abrem em resposta a qualquer estímulo (2) — é detentora de dignidade. Logo, não é a capacidade cognitiva, a percepção do que seja real ou irreal, o senso de pertencimento a certa comunidade, sociedade, cultura, a posição socioeconômica, agente público ou não, o gênero etc. Os direitos existências — saúde, alimentação, lazer, trabalho etc. — não são mais específicos para determinadas pessoas, comunidades. Ao lançar o olhar ao pretérito brasileiro, quantos direitos, pela dignidade humana, a etnia negra, o gênero feminino, os LGBTQI+, as pessoas com necessidades especiais, os povos indígenas, enfim os párias sociais, assim considerados, lograram êxitos pela CRFB de 1998? Trinta e cinco (35) anos da CRFB de 1988. Avanços quase impossíveis, mas sempre desejados, foram conquistados pelos pária sociais — reconhecida como "minoria" (gênero feminino, etnia negra, pessoas com necessidades especiais, povos indígenas, LGBTQI+). De párias, tornaram-se sujeitos de direito. E como pessoas, sujeitos de direito é sinônimo, são capazes de se manifestarem juridicamente. Desde o nascimento, com vida, a proteção social e do Estado. Toda pessoa deve ser ouvida, respeitada em suas decisões. Isso não quer dizer autoritarismo. É a liberdade de se expressar, de participar ativamente na condução das políticas públicas, de dizer "Não!" para qualquer legislação redutora, ou aniquiladora, da dignidade humana. Exercer ou não direitos, a capacidade de direito, é pessoal, conduto, quem quer ser conduzido cegamente? Quando uma pessoa exerce seu próprio direito, pela capacidade de exercício, não somente age em seu nome, mas em nome da coletividade, pois, como dito, a dignidade é universal. E a CRFB de 1988 é a expressão da sociedade brasileira, de querer uma sociedade plural por suas diversas ideologias (políticas, religiões etc.). Tolerar, discordar, refutar, asseverar: o único meio possível é pelo "jogo democrático". E esse jogo tem regras e princípios elencados na própria CRFB de 1988.

Se antes da CRFB de 1988 os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) agiam pelo utilitarismo, com a CRFB de 1988 e, principalmente, com o protagonismo do Supremo Tribunal Federal (STF), contramajoritário, o equilíbrio entre diversos anseios sociais. O STF é o último escudo e refúgio aos cidadãos, natos ou naturalizados, e aos estrangeiros, quanto aos direitos constitucionais. Não há de se falar em usurpação de poderes, por parte do STF. Ora, se há tal usurpação, como descrevê-la? Pensemos. O Executivo e o Legislativo agem de forma a reduzir os direitos conquistados pelas mulheres como o poder familiar. O STF, através dos ministras e ministras, decide pela inconstitucionalidade da lei. É possível dizer que o STF usurpar poderes de outros Poderes? Ou o STF é o último escudo e refúgio? Uma decisão do STF sobre, por exemplo, aborto até o trigésimo mês de gestação, tão somente garante decisão pessoal, não se impõe obrigação erga ommes — para todos os brasileiros.

Porém temos duas vidas, qual deve morrer ou sobreviver? Se a decisão de não aborto deve ser para todas as brasileiras — digo gênero feminino —, os homens transexuais não serão obrigados a obedecer? Se partimos da premissa de que homem é ser com genitália masculina (pênis, saco escrotal etc.) e mulher com genitália feminina (vulva, clitóris etc.), o casamento homoafetivo não deve ser permitido, pela literalidade da redação do art. 226, § 3º, da CRFB de 1988 — homens e mulheres —, os LGBTQI+ não são iguais em direitos e obrigações (art. 5°, I, da CRFB de 1988). Serão seres humanos, novamente, coisificados? Da mesma maneira, quando estão alinhados os Poderes da República, qual a dignidade do gênero feminino sobre o seu próprio corpo? Os riscos ao aborto existem, assim como existem os riscos durante a gestação. Não se trata de institucionalizar o aborto como se tomasse banho. Trata-se de garantir efetiva liberdade de escolha para o gênero feminino. Não uma liberdade de escolha isolada nos mais profundos pensamentos da gestante. Não é deixá-la sozinha. O acompanhamento médico, como ocorre na gravidez, é imprescindível. O que não pode ocorrer é a condenação pelos que que não querem o aborto por motivos religiosos. À realidade da gestante, como sua condição econômica, etária ou psicológica, no caso de estupro, deve-se proteger sua dignidade, e não ser instrumento nas mãos de quaisquer ideologias. É a liberdade escolha. Dizer "Vai se arrepender" não é o fundamento. Quantos pais, desde 1891, quiseram que suas proles morressem por nascerem LGBTQI+? Ou mesmo com deficiências mentais? Ora, qualquer pessoa com mais de 50 anos, sem precisar de muitas pesquisas, sabe como as mães transitavam com seus filhos ou filhas com deficiência mental. A vergonha, a culpa por ter gerado algo teratológico. O superego (sociedade) implacável. Se há respeito, ou mínimo de respeito, para com os deficientes mentais, para os LGBTQI+, deve-se a uma mudança na mentalidade social e esta influenciou na confecção da CRFB de 1988.

O Direito é a sociedade. A História do Direito é a história da espécie humana. Sem História não há como compreender o Direito atual. E, por isso, urge aos Poderes criarem cartilhas, vídeos, podcasts para os cidadãos. O saber, como linguagem acessível, para todos os brasileiros e todas as brasileiras, é fundamental para diminuir, ou acabar, com as "fake news". O saber não deve seguir um viés ideológico, mas ser a ideologia presente na própria CRFB de 1988, a dignidade, a solidariedade, o trabalho digno, a pluralidade de ideologias no Congresso e no Judiciário. Da pluralidade, os debates sinceros. "Fake news" pode ser por omissão de informação relevante ou por produção de mentira. A verdade somente se alcança quando os autores apresentam fundamentos com base na História; refutá-la, torná-la irrealista, não é possível existir democracia. Não a democracia de privilegiados e desprivilegiados, como ocorreu na Grécia a.C., a democracia existente pelas consequências na Alemanha Nazista. Sim, por mais que não se queira falar ou pensar, se existe a dignidade humana como a conhecemos, deve-se, infelizmente, aos fatos ocorridos na Alemanha Nazista.

Como alcançar a Paz Perpétua entre diversas ideologias? A CRFB de 1988 pode não ser completa no que diz ser bom ou ruim para brasileiros e brasileiras, todavia, é o único documento no qual garantiu a pluralidade de ideologias. E cada comunidade (religiosos, pessoas com necessidades especiais, mulheres cisgênero, LGBTQI+, povos indígenas, socialistas, liberais) teve participação na confecção da CRFB de 1988 através da Assembleia Constituinte de 1988.

Podemos considerar que a Assembleia Constituinte é a voz do povo? Não. Podemos também pensar que os Poderes representam a voz do povo? Também não. Somente é possível ratificar que a Assembleia Constituinte e os Poderes da República representam o povo quando agem e defendem a dignidade.

REFERÊNCIAS:

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo : os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo / Luís Roberto Barroso. – 7. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018.

DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito civil / Elpídio Donizetti; Felipe Quintella. – 5. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2016

RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos / André de Carvalho Ramos. – 4. ed. – São Paulo : Saraiva, 2017

NOTAS:

(1) — BBC Brasil. Como eram o amor, o sexo e o casamento no Egito Antigo, Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-56314081

(2) — Manual MSD. Visão geral de coma e consciência prejudicada. Disponível em: https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/dist%C3%BArbios-neurol%C3%B3gicos/coma-e-consci%C3%AAncia-prejudicada/vis%C3%A3o-geral-de-coma-e-consci%C3%AAncia-prejudicada

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

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