Um olhar atento voltado à história de outras nações ajuda a pensar em um recomeço institucional, diante do que perdura e se repete como um destino hostil à partilha civilizada do direito dos povos.
1. Todos nós deveríamos ter sido educados para escrever crônicas audaciosas.
Elas não precisariam ser necessariamente confessionais nem movidas pela inspiração etílica como as de Charles Bukowski, nem teriam que imitar aqueles ‘mergulhos’ da Geração Beatnik (mergulhos tanto no desafio aos padrões convencionados como para instituir a própria falta de padrões).
Mergulhos que também eram a procura evasiva do que não se encontra ao alcance dos pés, das mãos e dos outros sentidos, salvo naqueles que estivessem excitados pela experimentação de – simplesmente – ‘tudo’; tudo o que excitasse e pusesse o observador em alguma ‘órbita’ muito particular...
Desde que essa experimentação do ‘tudo’ não significasse (nem se encerrasse em) alguma busca visando a qualquer resultado.
O único resultado concebido era o de ultrapassar a pretensão de querer um resultado. Tratava-se unicamente de dar início à “grande recusa”, que depois veio a ser sistematizada por Herbert Marcuse.
Estabelecido isso, William Burroughs, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e sua tribo podiam procurar cobras e insetos deformados em delírios de matriz erótica ou em ‘viagens’ à procura do nada, só ‘para estar na estrada’, repetindo de uma forma diferente a célebre ‘lost generation’, mas agora para difundir a ‘contracultura’.
Além dos citados, muitos outros participaram como grandemente interessados. Daí o movimento ter-se perpetuado como uma referência que permaneceu na crônica e no imaginário daquele tempo.
Os ‘beats’ dos anos 1950 não queriam abrir portas e janelas, mas arrombar as traves de sótãos ou porões obscuros e admitiam, para tal imperscrutável fim, as incursões de simpatizantes tão diferentes como Norman Mailer, o jornalista fundador do The Village Voice, escritor e boxeador que disputou a prefeitura de Nova York, e o jovem Bob Dylan, que adulou todas as modas, utilizou-se muito bem de parcerias artísticas (com destaque para Joan Baez, a musa da ‘canção de protesto’) e, ao fim, conseguiu obter o Prêmio Nobel de literatura, a que agradeceu remetendo um discurso plagiado, como se fosse grande conhecedor de Herman Melville, o escritor-referência americano do Século XIX.
2. Tudo isso pertence a uma audácia mais recente – embora seus marcos iniciais já sejam septuagenários – pois ela se desdobrou em todos os ‘movimentos irruptivos’ que brotaram depois (como modas, ondas, festivais, ‘powers’, ‘viagens’ psicodélicas e outras, ‘new waves’, marchas, protestos, ‘identidades’, etc.), a partir dos anos 1960, e que perduraram até quando se instalou a pandemia da Covid, em 2020.
Findo o surto, vieram só ecos, repetições, paródias, encenações, farsas cômicas ou autos de fé, pois todas essas emulações pareceram muito úteis para a caracterização do populismo.
Portanto, tudo o que surgiu depois veio a formar uma ‘romaria de descrentes afirmativos’, pois nela o que se procura contradizer é, precisamente, o que reúne significados múltiplos e um tanto místicos, porque não se discute mais se “tudo o que é sólido desmancha no ar”, mas apenas onde se agrupa e para onde vai tudo aquilo que já se desmanchou.
Perto dos tais movimentos, os célebres ‘anos loucos’ da década de 1920, assim chamados pelo influente jornalista Edmund Wilson e que feneceram com a Grande Depressão, parecem uma grande dança embalada pelo som que já se transferia do Ragtime para o Jazz, ou sob o ritmo do Charleston - movimentando uma sociedade que desejava intensamente se sacudir -, pois o entusiasmo com o cinema, o automóvel e o rádio havia tornado os norte-americanos, finalmente, reconhecidos e influentes participantes do ‘grande mundo’.
Em contrapartida, sua “Época da Inocência”, como mostrado no filme de Martin Scorsese, havia acabado. O mesmo veio a acontecer com a Belle Époque europeia, que teve seu féretro coincidente com o do seu grande memorialista, Marcel Proust, em 1922.
Estar nesse que era o ‘grande mundo’ de então, assim reconhecido pela importante participação americana na I Grande Guerra e nas ‘exposições universais’, que já vinham entusiasmando o Século XIX com a ideia de infinito progresso, exigia audácia, mas ser audacioso então impunha aos adeptos desse comportamento sempre mais e mais, e – depois de buscar um inegável reconhecimento e participação no ‘grande mundo’ – o que se oferecia para as gerações mais recentes, que desejavam fundar alguma expressão crítica, era a forma de usar os novos dotes e proveitos mundanos, sem se comprometer com eles e com os seus padrões. Logo, o aproveitamento precisava doravante ser descartável.
3. Os ‘beatniks’, portanto, se foram formando após a Grande Depressão e com ela descartaram ilusões antigas, de maneira que os chamados ‘anos loucos’ ficaram parecendo um ‘embalo’, ainda cheio do velho encanto que têm todas as emancipações, quando não implicam em rupturas violentas ou dramáticas demais, para além daquelas dos costumes.
Estar a esmo, por isso, também sempre exigiu audácia, mas uma audácia diferente daquela do engajamento, como a que havia ficado famosa pela boca do advogado e político revolucionário francês Georges Danton.
Tão famosa que chegou a ser escrita nos lugares mais improváveis e consta mesmo que foi reproduzida certa época nos guardanapos de mesa de um restaurante da região do Carrefour de l’Odéon, em Paris:
“Pour les vaincre, il nous faut de l’audace, encore de l’audace, toujours de l’audace, et la France est sauvée” (Para vencê-los, precisamos de audácia, ainda de audácia, sempre de audácia, e a França está salva).
Esse é o trecho autêntico da transcrição completa contida no discurso feito perante a Convenção, conforme seus arquivos, pois a frase foi dita em mais ocasiões, algumas delas sob forma reduzida.
Na redução aparece apenas: “il faut de l’audace, encore de l’audace, toujours de l’audace”.
Também existem adaptações, de modo que “et la France est sauvée” às vezes aparece como “et la Révolution est sauvée”.
O “Pour les vaincre” (Para vecê-los) diz respeito aos “ennemis de la patrie”, contra quem falava Danton antes de iniciar a frase famosa.
4. Porém, onde Danton pôs sua própria audácia?
Certamente, na revolução, conduzindo-a com proeminência igual à de Maximilien de Robespierre, mas sendo ainda melhor orador que este.
Por outro lado, tendo ocupado cargos de direção do Estado, inclusive o de ministro da Justiça, Danton envolveu-se em corrupção, repetidamente, tirando proveito econômico nas negociações com a nova burguesia que fazia fornecimentos para os serviços públicos.
Havia mesmo uma consciência comum, que hoje está apoiada em documentos históricos, de que o grande revolucionário era corrupto.
Não obstante isso – e também o fato de que a corrupção foi o fundamento para a execução de Danton, aos 34 anos – Paris e a França inteira estão cheias de homenagem a ele, desde a estátua no já referido Carrefour de l'Odéon, perto do restaurante Le Procope, que ele gostava de frequentar (um dos mais antigos do mundo, pois funciona desde 1686, e onde o revolucionário está também homenageado), até ruas, bistrôs e outros restaurantes, na capital e no interior, que usam seu nome.
Em contrapartida, Robespierre, que foi executado três meses depois de Danton, não tem nenhum monumento em Paris nem empresta seu nome para qualquer logradouro.
No entanto, ele era – sendo esse o seu apelido público – “O Incorruptível”.
Apenas no número 400 da Rue Saint-Honoré consta uma pequena placa metálica informando que ali residiu Maximilien de Robespierre de 1791 até sua morte em 1794.
Para que não se diga que a memória do principal revolucionário jacobino tenha sido apagada, no subúrbio de Montreuil, arredores de Paris, existe a Rue Robespierre, onde há uma estação do metrô que serve a periferia da capital, com o seu nome. É tudo.
5. É verdade que há outras versões sobre Danton. Uma das mais simpáticas a ele consta no filme do excelente diretor polonês Andrzej Wajda (‘Danton - O Processo da Revolução’), apresentando a trama de uma luta pelo poder, sendo que Robespierre representa um radicalismo que beira a insanidade, movido por certezas políticas em grau superlativo e práticas insensíveis de uma violência preservadora da pureza revolucionária, enquanto Danton incorpora o negociador, o político flexível que, confabulando com os novos atores políticos que haviam surgido com a própria revolução, pretende dar fim à sua fase de rupturas e perseguições.
Como quer que seja, tanto aquele que ganhou fama de corrupto e, comprovadamente, tirou proveito pessoal da queda do Ancien Régime, quanto “O Incorruptível”, com uma diferença pouco maior que três meses, foram levados para a Conciergerie, uma zeladoria provida de grades, que antes da Revolução havia servido de adega e depósito de provisões no antigo Palácio dos Reis (e hoje é um museu dentro do complexo do Palácio da Justiça).
As celas em que ficaram estão identificadas.
Dali saíram em seguida para a guilhotina.
Danton foi julgado, Robespierre não.
No ato final, Danton se despediu da vida com sarcasmo e, ao carrasco, recomendou que não esquecesse de erguer sua cabeça para a multidão, pois ela era bela.
Já Robespierre morreu em silêncio. Havia recebido um tiro no rosto, dado por um cadete de 17 anos, que lhe quebrou a mandíbula, no momento da prisão, no interior do que hoje é o “Hôtel de Ville”, a sede da prefeitura de Paris.
Portava uma atadura improvisada para prender o maxilar. Seu companheiro de cela e de despedida foi o jovem Saint-Just, então com apenas 26 anos, admirado tanto por sua beleza como pela oratória incisiva e apelidado “O Anjo da Revolução”. Para os desafetos, “O Anjo do Terror”.
Há um registro, em que o elemento ficcional talvez nunca venha a ser bem aferido, sobre o que conversaram enquanto aguardavam a execução.
Pela glosa histórica, Saint-Just teria perguntado ao companheiro que chefiara o governo jacobino “Afinal, o que ficará?”, e, como havia uma cópia da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, colada na parede por alguém que já partira para a desdita, a resposta de Robespierre, com dificuldade para falar, foi apenas erguer o braço e apontar para ela.
6. Assim somos catapultados para a época presente. Não que aqui tenhamos grandes teorias revolucionárias ou teses sobre a melhor praxis para transformar o mundo posta na mesa da nossa realidade, sobre as quais possamos nos debruçar com aquela esperança, a intensa curiosidade e o espírito de invenção que tem animado os grandes transformadores através da História.
Também não temos grandes personagens, nem convenções, comitês de salvação pública ou velhos regimes a enterrar. E, sejamos honestos, mal sabemos a quem salvar, pois – se não fomos educados para fazer crônicas audaciosas – só recebemos incentivos para salvar a nós mesmos.
Nossas tendências políticas não incluem jacobinos ou girondinos, mas corruptos em escala nacional, estadual e municipal, e - em escala também mais próxima do nosso círculo de relações e familiar – pois todos vemos profissionais à nossa volta, colegas que outrora pareceram promissores, antigos amigos que viraram estranhos ou nos hostilizam hoje, todos seduzidos pela adesão aos novos “padrões”. E o que ficou padronizado é que não existem mais vantagens indevidas, o que existe é a conversão delas em vantagens devidas, e o instrumento da ‘transformação’ passou a ser o lobby.
Os que se mostraram incorruptíveis estão defenestrados.
Pelo menos – seja reconhecido – já não são guilhotinados.
Aguardam resignadamente por continuadores.
Por enquanto – e tomando os devidos cuidados –, estão preservados em suas vidas das turbas e das milícias, mas isso é sabidamente temporário. Todos têm a exata expectativa de um próximo ataque.
Para entender essa estranha ‘preservação’ do interesse sobre a política emancipatória, é a história da França que ainda nos ajuda.
Depois da execução de Robespierre, o país foi governado por um Diretório presidido por Paul de Barras, um político inescrupuloso, antigo visconde, que fez a corrupção de Danton parecer um deslize típico da mera contravenção.
O governo Barras durou de 1794 (morte de Robespierre) a 1799, quando Napoleão – que o odiava intensamente – deu um golpe de estado e investiu-se como cônsul e, em 1804, como imperador.
Para nossa observação: se Danton é muito lembrado pelos franceses e Robespierre é uma referência quase perdida, Barras foi inteiramente esquecido. Mas dessa ‘ordem de mérito’ nada resulta que seja propriamente animador.
O sarcasmo de Danton na sua recomendação ao carrasco desapareceu como ‘audácia’ diante do que Alexandre Dumas registrou sobre a pacífica morte de Barras em 1829, quando já nem mesmo Napoleão sobrevivia.
Disse o ‘visconde da corrupção’ Barras aos presentes em seu entorno naquela ocasião:
“Sabem o que eu meti nestas caixas que serão abertas pelo Conselho de Ministros? Todas as minhas contas de lavanderia durante trinta e cinco anos! Ah! Eles terão de correr cifras e mais cifras, pois eu sujei muita roupa do 9 termidor até hoje!
Ditas estas palavras, soltou uma gargalhada tão irresistível e gostosa que acabou desfalecendo. À noite, estava morto.”
Com uma retórica própria da profissão, o “Ancien Grand Bâtonnier” (Antigo Grande Baluarte, como é chamado quem foi presidente da ordem dos advogados francesa) Henri Robert, na sua obra “Os Grandes Processos da História”, acrescentou para melhor compreensão da cena:
“O homem sem fé, sem escrúpulos, sem probidade, que passara a vida a zombar e a escarnecer de todas as coisas respeitáveis, o Visconde Paul-François-Jean-Nicolas de Barras entregou sua alma vil ao diabo numa gargalhada!”
7. A República Francesa desde então experimentou avanços e retrocessos, nenhum avanço tão grande que se inspirasse na audácia preconizada por Danton. Já os retrocessos foram humilhantes.
Quando a primeira república terminou em 1799, com Napoleão, seguiu-se o império até 1814. A restauração dos Bourbons veio depois de Waterloo e durou até 1830, quando uma peculiar revolução instituiu como ‘rei-cidadão’ Louis Philippe, da família D’Orléans, descendente do irmão do rei-sol Louis XIV.
Com a onda revolucionária de 1848 (ano do Manifesto Comunista), que varreu a Europa, Louis Philippe abdicou e a república foi restabelecida (chamada de Segunda República), até o golpe de Louis Bonaparte em 1851, quando ele iniciou o segundo império como Napoleão III.
Sua derrubada veio com a invasão prussiana em 1870, seguida da Comuna de Paris em 1871 e, novamente, reapareceu a república (a Terceira República).
Quando da ocupação alemã na II Guerra, a França teve um hiato, a chamada “República de Vichy”, pois sua capital era nesse balneário no interior, e o território administrado pelo governo do marechal colaboracionista Henri Pétain abrangia apenas a metade sul do país.
Depois da última guerra mundial, a França ainda contabilizou duas repúblicas, uma delas marcada pela ingovernabilidade, já que o país havia saído do conflito libertado por forças estrangeiras, com uma participação menor dos próprios franceses, tanto da Resistência como das tropas dos generais De Gaulle e Leclerc, e sem formar uma unidade política interna, minimamente coesa, que desse sustentação a um governo estável.
8. Aliás, deve ser dito a título comparativo, que tal situação não é muito diferente da que o Brasil vive hoje, quando vigora a segunda Constituição mais extensa do mundo e que ainda está ‘minada’ por nada menos do que 131 emendas, em apenas 35 anos. Mas elas prosseguirão, pois conseguimos inventar algo realmente peculiar: a Constituição móvel.
Os Poderes e órgãos ministeriais funcionam como ‘capitanias’, o interesse público é insultado todos os dias e a audácia só é vista no crime organizado, que se desdobra num amplo leque, de modo que o Visconde de Barras deveria ser melhor estudado em nosso país.
Sua ‘conta de lavanderia’ aqui seria imensamente grande... e não só por lavar a roupa suja dos trinta e cinco anos desde o Termidor francês, que coincidem com o tempo de vida da nossa Carta, mas para “lavar” o próprio dinheiro, em quantias tão vultosas que foi cogitado criar a nota de 200 reais, há dois anos, quando se concluiu pela desistência, pois isso somente serviria para favorecer a propina e os pagamentos criminosos in specie...
A via crucis institucional francesa só acabou em 1958, quando iniciou a Quinta República, sob a égide do general Charles de Gaulle, herói de duas guerras mundiais que ainda enfrentou a descolonização, com os conflitos armados que resultaram na independência do Vietname e da Argélia.
De Gaulle mandou elaborar um projeto de constituição e o submeteu a plebiscito (não houve constituinte). O texto vigora até hoje.
O velho general, que deixou do poder diante das revoltas de 1968, por estar inconformado com elas, ferido em seu arraigado senso conservador e o sentimento profundo do dever de preservá-lo, não quis monumentos ou o Panthéon.
Seu corpo repousa sob uma lápide simples na aldeia de Colombey-les-Deux-Églises, onde tinha um pequeno apartamento numa construção coletiva campestre.
Seu nome foi dado ao principal aeroporto de Paris e ao entroncamento de ruas que forma a “estrela” no Arco do Triunfo.
Embora não tenha renunciado em 68, e mesmo haja conseguido fazer sucessores de sua preferência, De Gaulle resolveu retirar-se para sempre da vida pública, pois a audácia de sua vida foi a de estabelecer uma identidade de personificação com a França, bem como conservar o que de melhor a República, assim reconhecida por ele, tinha lá alcançado.
Na mensagem de Ano Novo, em 1968, ele ainda concitou os franceses a permanecerem no caminho da paz, da conquista da prosperidade e da defesa, pela continuidade, do seu modo de vida.
Enquanto o general acreditava nisso, o redator-chefe do jornal Le Monde parecia perceber muito bem que os costumes tinham mudado e havia um cansaço dessas fórmulas, tanto que escreveu na primeira página do prestigioso jornal um dos textos mais estudados da história do jornalismo, a respeito do outro sentimento que o ano de 1968 então trazia: “Quando a França se entedia”.
9. A crise institucional no Brasil prossegue. Todos os governos federais eleitos do país desde que iniciou este século – e dele já transcorreu mais da quinta parte – foram e continuam sendo corruptos. O que tem variado são os ‘alvos preferenciais’ do populismo. A formação de ‘clientelas’, no entanto, persiste há mais de duas décadas.
Não temos como enfrentar isso, a não ser no campo da ação, pois faz parte do jogo sujo apresentar todas as considerações, por mais verdadeiras que sejam, como conjecturais.
Precisaríamos ter sido melhor educados para a audácia. Audácia, bem entendido, para restaurar padrões que brasileiros ilustres já fixaram. Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Hollanda, Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Evaldo Cabral de Mello, Tobias Barreto, Tarsila do Amaral, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Bertha Lutz, Cesar Lattes, Anita Malfatti, Carlos Drummond de Andrade, Anísio Teixeira, Cecília Meireles, Cândido Portinari, Heitor Villa Lobos, José Murilo de Carvalho, Oswaldo Cruz, Burle Marx, Carlos Chagas, Mário de Andrade... já nos ensinaram muito, nós é que não aprendemos o suficiente.
Juristas de meia-tigela, literatos de meia-pataca, filosofistas de meia-água, arquitetos de meia-colher e políticos espectrais da meia-noite roubaram nosso sonho de ter um país.
Não somos uma nação solidária e não temos a ousadia de sê-lo.
Não fomos educados – e, portanto, não aprendemos – a ter audácia.
Nada sabemos de rupturas e de como procurar formas de expressão fora do establishment, como os beatniks e a lost generation se arriscaram a mostrar.
10. Não prezamos dar mergulhos para conhecer a intimidade das coisas, nem queremos nos expandir por outras órbitas de entendimento, que nos levem para além de um quotidiano sem grandeza.
O requisito para chegar à grandeza é a humildade, pois só ela descortina o aprendizado, enquanto que a soberba, o status, a nomenklatura, o apparatchik, a retórica, o voluntarismo, a reivindicação de identidades estrambóticas extraídas a fórceps de uma História imaginária e delirante... esses vícios todos de convivência só conduzem ao embrutecimento social, político e intelectual.
Está seguidamente em bocas rudes e aparece em repetições irracionalistas o preceito do Evangelho, lançado pelo apocalíptico João: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.
Do ponto de vista religioso, isso pode bastar e ser considerado verdadeiro em-si, por caracterizar o que a filosofia grega já considerava apodítico, uma vez que a palavra ‘verdade’, no texto referido, tem o sentido de ‘revelação’, aquilo que se demonstra pelo próprio enunciado.
Estamos num plano mais baixo, no vasto mundo dos seres humanos em plena ‘Era do Precariado’, em que a preciosa verdade tem de ser descoberta por uma busca febril e incessante, obstinada, combativa e que nos acompanha até o último suspiro.
Os citados políticos da meia-noite, os juristas de meia-tigela, os cínicos impenitentes que seguem (ainda que sem saber) o modelo de Barras e tratam de celebrar seus roubos com a mesma e derradeira gargalhada... nenhum deles agora se ‘revela’.
Outra idiossincrasia do nosso tempo está em que tudo é velado, e por ser velado é que – afinal - se descobre. Mas a descoberta é ilusória, pois quando acontece já está desatualizada.
Na verdade, o que estamos vendo ser escrito no Parlamento, no Judiciário, nas cúpulas de comando desses poderes e das grandes potências empresariais privadas e públicas, é um volumoso alfarrábio que bem mereceria ombrear com as “Institutas” de Caio, o jurista romano. Mas são as Institutas da corrupção política, matriz de todas as outras.
Sim, deveríamos ter sido educados para fazer crônicas mais audaciosas, mas para isso teríamos de ter reconhecido e praticado desde cedo a nossa própria audácia.
Saberíamos, então, que essa preciosa palavra é como o fermento do pão, que não pode ser amassado, não cresce e não nos alimenta sem ele.
Luiz Fernando Cabeda
16.10.2023