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Mãos para o alto: a presunção de inocência e o baculejo policial.

Resumo: Esse artigo tem como objetivo analisar uma das questões mais comuns no Direito Penal: a relação entre presunção de inocência e busca pessoal sem mandado judicial. Delimitamos o tema e consideramos aspectos bastante relevantes para enxergamos o problema por várias perspectivas: a Lei, decisões judiciais, doutrina, os princípios legais foram considerados para avaliarmos quando é legitimo o uso desse instituto por parte das forças policiais. Além de ponderarmos como o racismo estrutural influencia o dia a dia dos agentes no tocante a avaliação subjetiva do que seria fundada suspeita, na outra face, como a falta de condições de trabalho tem prejudicado, na prática, a atividade dos agentes de polícia.

Palavras-chaves: Busca pessoal, baculejo, direitos, Estado, polícia, policial, segurança.

1.Introdução

Considere que você é um homem, jovem, preto, morador da periferia de Natal. Em um dia de domingo resolve ir ao shopping com a namorada e amigos, detalhe, você é o único negro do grupo. Vocês vão ao passeio e próximo ao destino são parados por uma guarnição de policiais, por algum motivo, os agentes mandam você, de todo o grupo, colocar a mão na parede para te darem o famigerado “baculejo”. Mesmo constrangido pela quantidade de pessoas que estavam olhando a cena, obedece, o policial faz a busca pessoal e te libera. Bem, além da profunda vergonha que te causaram, você e seus colegas ficam se perguntado: por que te pararam e, mas, por que pararam só você. Essa historinha é hipotética, todavia, representa situações que acontecem diariamente na sociedade brasileira, e é sobre o que os policiais fizeram, busca pessoal sem mandado judicial, que vamos nos debruçar nesse artigo.

Esse tema bastante conhecido, diria que menos do ponto de vista jurídico e mais na prática. É relativamente comum vermos policiais dando o “baculejo” em cidadãos. Mas, qual o regramento legal que normatiza a busca pessoal, será que o policial pode revistar qualquer um do povo, há qualquer momento e hora? E a presunção de inocência, não é desrespeitada em situações como essas?

Nesse artigo vamos responder essas questões, além de fazer um apanhado sobre o que representa a “geral” para a população preta, pobre e periférica. Como o racismo estrutural influencia no momento dos agentes de segurança pública decidirem fazer uma busca pessoal em determinado indivíduo.

O que dispõe o art. 244, Código de Processo Penal, e entender como o dispositivo regula a ação policial, de modo que protege o cidadão das arbitrariedades do Estado que possui o monopólio da força. Em um sistema cada vez mais punitivista, a busca pessoal tem servido muitas vezes como um meio de patentizar os estereótipos e preconceitos sobre determinados grupos.

2. Desenvolvimento

2.1 Delimitação do que é busca pessoal

Encontramos em fonte primaria, o texto mais claro e taxativo quanto a busca pessoal, Código de Processo Penal, art.:244, in verbs:

Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

O artigo supracitado enseja a explicação de quando se dará a busca pessoal sem mandado judicial. Pois bem, existe três ocasiões em que esse instituto poderá ser usado (GOMES FILHO; TORON; BADARÓ, 2021):

Primeira hipótese:

A busca pessoal ocorrerá quando houver a prisão de alguém, ou seja, em decorrência do cumprimento de uma ordem de prisão temporária ou preventiva ou de um flagrante delito ou ainda de uma condenação definitiva. Assim sendo, a medida está justificada para evitar que o preso possa, de algum modo, colocar em risco a sua própria vida ou a integridade de outrem. Não obstante, por se tratar de uma restrição legítima ao direito de liberdade estaria descartada a ordem especial para a revista.

Segunda hipótese:

Na segunda hipótese, argumenta Gomes Filho, Toron e Badaró (2021), a busca pessoal sem mandado pode ser efetuada quando houver uma fundada suspeita de indivíduo que esteja na posse de armas proibidas ou de objetos e papéis que constituem o corpo de delito. É importante deixar esclarecido que para a busca pessoal não basta, por parte da autoridade, a simples desconfiança ou especulação sobre tal. É preciso que se tenha objetivamente, elementos fáticos que apontem para a considerável probabilidade de que sejam encontrados com o indivíduo os elementos mencionados pela lei. Nesta linha, revistar de modo generalizado e aleatório a população configura-se abuso de poder.

De forma geral, a busca pessoal se dará quando houver um mandado expedido previamente pela autoridade policial. O artigo 244 do CPP trata da exceção, que dispensa o mandado nos termos das hipóteses elencadas no dispositivo legal. A não exigibilidade do mandado prévio se dá, principalmente, porque nas situações arrolada não há tempo hábil pra se expedir o documento.

Quando o legislador abre exceção para a busca pessoal em situações que o indivíduo estiver em posse de “objetos ou papéis que constituam corpo de delito”, ele está se referindo aos elementos materiais ou vestígios que indicam a existência de um delito. Esses elementos são importantes para o deslinde de um crime.

O corpo de delito é o conjunto de vestígios materiais produzidos pelo crime, ou seja, é a sua materialidade, é aquilo que é palpável, que se vê, se ouve ou se sente, isto é, que é perceptível pelos sentidos. São os vestígios do crime, marcas, pegadas, impressões, rastros, resíduos, resquícios e fragmentos de materiais deixados no local, sendo instrumentos ou produtos do crime (GOMES, 2015).

Terceira hipótese:

E, na terceira hipótese conforme a última parte de artigo 244 do CPP, a busca pessoal será permitida sem mandado quando houver um contexto de busca domiciliar na condição de que haja grande possibilidade que o objeto procurado esteja na posse do morador.

Este artigo focara luz no escrutino da busca pessoal sem mandado. As questões subjacentes a abordagem policial, vulgarmente conhecida como “baculejo”,” enquadro”, “dura”, “geral”, “revista”, prática tão comum no dia a dia da sociedade brasileira, sobretudo para os cidadãos que estão nas regiões mais periféricas.

2.2 Jurisprudência e doutrina

O Habeas Corpus N°158580 - BA, que tem como relator o Ministro Rogério Schietti Cruz, votou pela ilegalidade da busca pessoal ou veicular sem mandado judicial sustentada apenas e tão somente na percepção subjetiva e genérica da polícia, quanto a provável comportamento ou ação suspeita de um indivíduo.

Em seu voto, o eminente relator, dispõe, entre outras questões, as que destaco, (CRUZ, 2021, pp.1-3):

a)Para que a busca pessoal esteja calcada na legalidade, é preciso que a justa causa tenha como base a relevante probabilidade, expressa de forma detalhada, demonstrada de modo objetivo e sua justificativa solidamente explicada em consonância com os indícios e circunstâncias do caso - a saber, a fundada suspeita de que o indivíduo tenha em sua posse drogas, armas ou quaisquer outros objetos ou papéis que constituem o corpo de delito, o que demonstraria cabalmente a urgência de ser efetuada a diligência.

b) Não obstante o artigo 244, CPP, não se limita, apenas, a necessidade que haja fundada suspeita, é exigido também uma relação com a posse de "arma proibida ou de objetos ou papéis que constituem corpo de delito". Estes caracteres afinam a abordagem policial, impedindo o famigerado fishing expeditions, ou seja, a busca pessoal com cunho meramente exploratório. De modo, que não há cabimento legal para a busca pessoal como sendo um hábito sem critérios da atividade policial, de cunho exploratório ou preventivo. Outrossim, O art. 244 do CPP dá azo para buscas pessoais que tenham como fim formação probatória ou motivação correlata.

c) Ainda segundo o Relator, denúncias anônimas de forma solitária ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, não fazem jus a exigência legal para a incursão de busca pessoal. Gestos, aparência, expressão corporal, a interpretação abstrata “não preenche o standard probatório de “fundada suspeita”. É necessário a presença de elementos concretos.

d) Se a autoridade policial realizar uma busca pessoal sem observar o regramento legal e, porventura, encontrar objetos ilícitos em posse do indivíduo, não será o suficiente para afastar a ilegalidade da busca. Se preteritamente à abordagem, não houve fundada suspeita, o descobrimento casual, durante a busca, dos elementos arrolados no artigo 244, não justificam a sua validade, pois tem uma motivação ilegal.

e) as provas obtidas por meio de uma busca pessoal ilegal, devem ser consideradas ilícitas, assim como qualquer prova que tenha origem em medida ilegal. Observa-se que os agentes públicos que realizaram a operação não devem sofrer qualquer prejuízo.

Ainda segundo o entendimento do Excelentíssimo Ministro Rogério Schietti Cruz, justifica-se a busca pessoal quando:

A permissão para a revista pessoal em caso de fundada suspeita decorre de desconfiança devidamente justificada pelas circunstâncias do caso concreto de que o indivíduo esteja na posse de armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência. É necessário, pois, que ela (a suspeita) seja fundada em algum dado concreto que justifique, objetivamente, a invasão na privacidade ou na intimidade do indivíduo. (CRUZ, 2021).

De há muito, o Supremo Tribunal Federal está pacificado sobre o tema:

A 'fundada suspeita', prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um "blusão" suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo (GALVÃO, 2002).

Em seu comentário sobre o Código de Processo Penal, Nucci dispõe:

Fundada Suspeita: é requisito essencial e indispensável para a realização da busca pessoal, consistente na revista do indivíduo. Suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de um revólver. Enfim, torna-se impossível e impróprio enumerar todas as possibilidades autorizadoras de uma busca, mas continua sendo curial destacar que a autoridade encarregada da investigação ou seus agentes podem – e devem – revistar pessoas em busca de armas, instrumentos do crime, objetos necessários à prova do fato delituoso, elementos de convicção, entre outros, agindo escrupulosa e fundamentadamente (NUCCI, 2005, p. 493).

2.3 Liberdade de locomoção

Busca pessoal e liberdade de locomoção são dois temas que estão umbilicalmente ligados, visto que ambos se relacionam, as vezes restringindo, por vezes, fazendo valer as garantias fundamentais. Ir, vir ou permanecer, o chamado direito de locomoção está subscrito na nossa Carta Magna, art. 5°, inciso XV, in verbis:

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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XV - e livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. (BRASIL, 1988).

No âmbito da liberdade de locomoção, Moraes (2003, p. 106) ensina o seguinte:

Ressalte-se que a Constituição Federal, expressamente, prevê a liberdade de locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens (CF, art. 5.°, XV).

O eminente doutrinador, ainda faz uma referência ao direito natural do ser humano à liberdade:

O direito à liberdade de locomoção resulta da própria natureza humana, como já salientado por Pimenta Bueno, em comentário à Constituição do Império, no qual ensinava que, "posto que o homem seja membro de uma nacionalidade, ele não renuncia por isso suas condições de liberdade, nem os meios racionais de satisfazer a suas necessidades ou gozos. Não se obriga ou reduz à vida vegetativa, não tem raízes, nem se prende à terra como escravo do solo. (MORAES, 2003, p. 108).

Quando a polícia faz uma busca pessoal, o agente cerceia o direito de locomoção da pessoa, ou seja, o indivíduo tem seu direito restringido, momentaneamente, pelo Estado.

Sim, nessa perspectiva se interpõe um conflito entre duas garantias fundamentais, o direito de locomoção que é cerceado pela ação do agente de polícia, em contraponto ao direito à segurança pública, que neste caso estaria sendo garantido pelo agente público.

Em casos como esse, o que deve se buscar é ajustar os direitos, ponderando sempre o bem mais relevante, o interesse particular sob o bem público. O famigerado “baculejo” deve ser tratado dentro das raias da necessidade, proporcionalidade e adequação, que servirão de aio para que o policial não extrapole os limites legais que adequam sua conduta. Caso o agente público não haja de forma proba, respeitando os limites que balizam suas ações, ele estará legalmente desautorizado a proceder com a busca pessoal, se prosseguir de forma alienígena a sua competência estará pondo uma nódoa de ilegalidade no standard probatório.

2.4 Princípio da Legalidade

Hodiernamente, o princípio da legalidade está vinculado a dois entendimentos: a) Condições de possibilidade de exercício de poder. b) Sua própria delimitação. Portanto, esse princípio serve como um mecanismo que restringe o poder estatal, limitando-o para evitar eventual abuso de poder por parte do Estado, de maneira que, noutro giro, também assegura aos cidadãos proteção dos seus direitos e liberdades fundamentais. Em suma, o princípio da legalidade delimita a ação estatal e garante os direitos do indivíduo.

Os professores Pedron e Nunes (2020) ensinam o seguinte sobre o princípio da legalidade:

Dessa forma, estamos no cerne do próprio conceito do Estado de Direito (seja como Rule of Law, seja como Rechtsstaat).[3] Afinal, persiste a ideia de que ao Estado moderno, somente é possível agir nos limites do fixado pelo ordenamento jurídico constitucional; toda e qualquer omissão legislativo-constitucional, representará clara proibição. Por isso mesmo, é um princípio que não está restrito à seara de um ramo qualquer do Direito, sendo aplicável a todo o universo do Direito. (PEDRON; NUNES, 2020)

A legalidade funciona como um anteparo entre o cidadão e Estado que possui o monopólio da força, obrigando-o a sujeitar-se ao império da lei, de maneira que não permite usar de suas prerrogativas para perseguir, punir, condenar, cercear direitos do cidadão de forma arbitraria. O ente estatal só pode agir dentro de suas delimitações e de maneira previsível, essa previsibilidade dos atos por parte do Estado confere segurança jurídica, componente elementar para que a sociedade se organize dentro do Estado Democrático de Direito.

A Constituição Cidadã de 1988, em seu art. 5°, inciso II, reza o seguinte “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, (BRASIL, 1988), o que dá lastro normativo ao princípio da legalidade. Contudo, o referido princípio vem sendo aludido em diversas constituições, desde a Constituição de 1824, com exceção da Carta de 1937, todas as outras trazem em seu texto dispositivos que subscrevem ao Estado o dever da legalidade, (PEDRON; NUNES, 2020).

Dizemos que o princípio da legalidade tem alcance em duas dimensões uma negativa e outra positiva. A primeira está relacionada ao fato do cidadão poder fazer tudo aquilo que a lei não o proíba de fazer. Um exemplo, simplório, é ingerir bebidas alcoólicas na calçada de casa, não há nem um dispositivo em esfera municipal, estadual ou federal que proíba o cidadão de tal comportamento. Já a dimensão positiva diz respeito as cercas postas na ação estatal que restringe sua atuação dentro dos parâmetros que a lei o autoriza, ou seja, o Estado ´só pode fazer aquilo que a lei permite fazer.

Deste modo, a busca pessoal tem sua legalidade calcada nos respectivos artigos, 240, § 2° e 244, Caput do Decreto-Lei n° 3.689, de 3 de outubro de 1941, a saber, o Código de processo Penal.

Os dispositivos acima citados autorizam a administração restringir o direito de locomoção do particular, em benefício da coletividade, qual seja, a segurança pública. Contudo, é preciso seguir exatamente o que a norma autoriza, qualquer desvio de finalidade enseja agravo ao princípio da legalidade.

2.5 Direito a presunção de inocência

O princípio da presunção de inocência confere ao individuo, acusado de um delito, o direito de ter sua inocência fiada até que se prove o contrário dentro do devido processo legal, de maneira que ninguém pode ser considerado culpado antes de uma sentença penal condenatória transitada em jugado.

O referido princípio não é uma ideia nova. A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seu art. 9°, já reza que “todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei”. (NACIONAL, 1789).

Na mesma direção, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado no Brasil pelo Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, dispõe em seu art. 14°, item 2, que “toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. (REPÚBLICA, 1992).

No item 5 do seu art. 14°, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos estabelece o direito do acusado recorrer de condenações, ao positivar que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei”, (REPÚBLICA, 1992).

Percebe-se com a leitura dos dispositivos supracitados que o entendimento vai no sentido da culpabilidade do acusado, quando condenado, mesmo que seja possível recorrer a instancias superiores. De maneira que é cabível, no que ficou consignado no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aportar a presunção de culpa, em detrimento da presunção de inocência, já com uma decisão em primeira instância, ainda que haja fases recursais.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, em seu art. 8º, item 2, ratificou que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”, o que corrobora os diplomas internacionais já citados. (REPÚBLICA, 1992)

Se cotejarmos nossa Constituição de 1988 com os demais documentos internacionais supramencionados, constataremos que o constituinte ampliou o alcance da presunção de inocência. No art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, o qual estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, o que significa dizer que no Brasil nenhum acusado de cometer um delito terá sua presunção de inocência suprimida, sem que haja o trânsito em jugado, como normatiza o artigo 5°, inciso LVII, da Constituição Federal, “ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em jugado de sentença penal condenatória'. Digo, o indivíduo só é considerado culpado quando todas as possibilidades de recurso tiverem se esgotado, no caso pátrio são quatro instâncias.

Inscreve-se a conexão do princípio da presunção de inocência com o instituto da busca pessoal, na corrente que o indivíduo objeto da abordagem do agente de segurança pública, tem como prerrogativa normativa o direito de ser considerado inocente, inclusive na forma de tratamento, até que se prove o contrário com decisão transitada em jugado.

Assim sendo, o policial não tem a competência constitucional de aferir um juízo de valor reputando culpa aos indivíduos que em sua percepção estão sob “suspeição”, considerando o que já expomos de forma prodiga, todas as pessoas, sem nenhuma distinção, gozam da presunção de inocência.

Veja o que diz Guilherme Nucci sobre o tema:

Tem por objetivo garantir, primordialmente, que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa. As pessoas nascem inocentes, sendo esse o seu estado natural, razão pela qual, para quebrar tal regra, torna-se indispensável que o Estado-acusação evidencie, com provas suficientes, ao Estado – juiz a culpa do réu. (NUCCI, 2008, p.34).

Nesse sentido, não pode o Estado, na pessoa do agente de segurança pública, fazer qualquer juízo de valor no que concerne a culpabilidade da pessoa abordada, pois a presunção de inocência é direito, presente na norma pátria, de todas as pessoas.

2.6 Baculejo e racismo estrutural

O componente racial é um preponderante elemento nas abordagens policiais, em especial nas buscas pessoais – enfoque desse artigo. Em um país de profunda desigualdade social, onde a maior parte da população é pobre, preta e periférica, vivendo as margens dos centros sociais e econômico, tornam-se vítimas do abuso do poder estatal e reféns de um racismo que remontam um abjeto e asqueroso perfil racista da sociedade brasileira do século XVI. O professor Silvio de Almeida conceitua o racismo nos moldes brasileiros da seguinte forma:

O racismo é uma decorrência da própria estrutura social ou seja do modo “normal” com que se constituem as relações políticas econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nenhum desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção, o racismo é parte de um processo social que "ocorre pelas costas dos indivíduos, ele parecem legado pela tradição". (ALMEIDA, 2018, pp. 38 e 39)

Não é possível refletir sobre a ação policial na busca pessoal, sem que consideremos sobre e origem da polícia e os sucos desse racismo estrutural que permeia o amago desse braço do poder estatal.

A Guarda Real de Polícia foi a primeira força policial ostensiva do Brasil, data de 1889, ou seja, um ano depois da chegada de D. João VI, em terras brasileiras. Essa força tinha como função precípua controlar a “circulação da massa escrava”. (CASARA, 2025, p. 28).

Veja, segundo o autor a polícia tinha como função uma atividade essencialmente racista. Nessa linha, observa Jacqueline de Oliveira Muniz sobre as atividades da primeira polícia no Brasil “sufocar os agitadores republicanos, conter as capoeiras, disciplinar os escravos de ganho e normatizar o comportamento público” (MUNIZ, 1999, p.54-55). Fica nítido a construção, desde sua fase embrionária, de uma mentalidade racista da polícia, como instrumento nas mãos dos poderosos para repressão e supressão dos mais vulnerais, que no caso brasileiro, são os pretos, pobres e periféricos.

Essa formação escravista, racista, elitista do Brasil, onde a plutocracia usa dos poderes que tem para vilipendiar a dignidade dos menos favorecidos, deve ser o ponto de partida e fundante para analisarmos de maneira proba e justa, do ponto de vista histórico, como o racismo estrutural tem afetado na forma como as polícias, sobretudo a polícia ostensiva, tem abordado as pessoas na rua.

É largamente reconhecido o lugar de marginalização que o negro foi jogado com o fim da escravidão, em vez de liberdade e igualdade, os agora libertos foram transformados em páreas sociais, sem nenhuma melhora nas condições de vida, o negro passa da condição de “liberto do senhor da senzala” para condição de “escravo de um sistema” racista, criminoso, injusto, desigual e perverso, tanto quanto o senhor de outrora.

A estigmatização do negro como sendo sempre um suspeito, fora da lei, são traços vergonhosos do lado pobre da identidade nacional, o Brasil é um país racista na sua estrutura, o que reverbera na organização e atuação estatal, inclusive da polícia. Os agentes de segurança pública, ainda que de forma tácita, são usados para controlar os corpos negros no seio social, a polícia como repressora desses sempre suspeitos de malfeito e ‘vadiagem’. Quiçá, essa suspeição fosse lastreada em fatos concretos, mas, para nossa vergonha, em pleno século XXI, os abordados, no dia a dia das ruas, não precisam ter elementos que justifiquem a fundada suspeita para serem objetos do “baculejo”, basta quem tenham a pele preta, sejam periféricos e origem pobre. Os suspeitos têm cor, região geográfica e classe social que os tornam as principais vítimas desse racismo estrutural.

O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC, apontou, em pesquisa feita na cidade do Rio de Janeiro, o forte viés racial nas abordagens policiais. A pesquisa demostra que 48% da população carioca é formada por pretos e pardos, no entanto esse grupo representa 63% das abordagens de policiais militares. Pretos e pardos são 79% daqueles que tiveram suas moradias revistadas pela polícia. 74% dizem ter um parente ou amigo morto por um agente de segurança pública. E representam 71% das pessoas abordadas no transporte público (JANSEN, 2022).

O quadro aprensentado na pesquisa do CESeC não está restrito a capital carioca, mas está demostrado faustamente em enumeras outras pesquisas que o racismo estrutural revelado nas abordagens policiais está capilarizado por todo o país. Há, sem sombras de dúvidas, uma seletividade dos agentes públicos em priorizar os pretos, pobres e periférico como alvos da busca pessoal. Para citar outra fonte, uma pesquisa feita na cidade de Brasília, demostrou que dos abordados em via pública 25% são brancos, enquanto os pretos e pardos representam 66% (CRUZ, 2021, p. 19).

Podemos constatar assim que além do elemento “proteger a sociedade” a polícia ainda carrega na sua maneira de agir o racismo e preconceito que desde a fundação caracteriza suas atividades. O ‘baculejo” justificado com o pretexto de diminuir a criminalidade, na verdade é um disfarce para que se continue reprimindo e constrangendo a população, em especial a população pobre, preta e periférica.

2.7 Busca pessoal em mulher

Uma das questões mais levantadas em relação a abordagem policial é se um policial homem pode fazer uma busca pessoal numa suspeita mulher. Bem, o art. 249 do Código de Processo Penal reza que “A busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência” e no Código de Processo Penal Militar, art. 183 ratifica “A busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência”, ou seja, conforme o dispositivo legal, sim, é possível que um agente de segurança pública do sexo masculino faça uma busca pessoal numa suspeita mulher. Todavia, usualmente isso não é o recomendado, a priori, é indicado que uma mulher seja revistada por uma policial do mesmo sexo.

Sendo assim, o texto normativo é bastante claro em permitir que o policial homem faça revista em mulher, desde que não tenha possibilidades da abordagem ser feita por uma policial do sexo feminino, na condição de não causar prejuízos a diligência feita pelos agentes de segurança pública.

Nunca é demais ressaltar, que esse “baculejo” deve estar embasado na “devida suspeita”, conforme ordena o CPP, art. 244. Não cabe a mera desconfiança do policial em relação ao individuo, é preciso haver elementos concretos que indiquem que a mulher “esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”.

2.8 Responsabilidade do Estado, cautela nas ações policiais

O Estado tem o dever de preservar a ordem pública, zelar pela segurança das pessoas e do patrimônio. Para isso o Estado dispõe de muitos órgãos, entre eles estão as forças policiais, que devem agir para garantir aqueles que estão sob jurisdição estatal, o direito a segurança pública.

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

VI - polícias penais federal, estaduais e distrital. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 104, de 2019). (BRASIL, 1988).

A polícia tem a prerrogativa legal do uso da força quando essa for necessária para cumprimento do seu dever legal, uso da força deve obedecer aos limites legais postos em lei. O policial não pode agir à revelia daquilo que o texto normativo lhe permite fazer, se ultrapassar as fronteiras da lei o agente de segurança pública estará sujeito ao cometimento de atos arbitrário que são inadmissíveis em um Estado Democrático de Direito, e o Estado, por sua vez, suscetível a responsabilização pela infração cometida por seu agente.

O Estado tem responsabilidade objetiva, em situações em que o administrado se sinta prejudicado pela ação estatal, basta que demostre o nexo de causalidade existente entre o dano e o ato praticado.

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (BRASIL, 1988).

Dada a responsabilidade do Estado e seus agentes, o policial deve agir com prudência e bom senso no momento antes, durante e depois das abordagens, a vida de terceiros e dos próprios profissionais são colocadas em risco durante as operações, de maneira que as ações ostensivas devem ter respaldo legal, mas também estarem fundamentadas em procedimentos operacionais adequados para cada situação.

A polícia militar do rio Grande do Norte, por exemplo, através de portaria normatizou o Procedimento Operacional Padrão (POP), para mitigar possíveis infrações, como também dar mais segurança aos policiais e os cidadãos durante as operações de combate à criminalidade.

O COMENDANTE DA POLÍCIA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, no uso de suas atribuições que lhe confere o art. 4° da lei Complementar Estadual n° 090, de 04 de janeiro de 1991 e

CONSIDERANDO que o Procedimento Operacional Padrão (POP) é instrumento documental utilizado para alcançar os melhores resultados no esforço operacional das Corporações, tendo ainda, por finalidade, a satisfação de seus integrantes e dos usuários do serviço de segurança pública;

CONSIDERANDO a necessidade de padronização das condutas policiais militares direcionadas às atividades operacionais, a fim de assegurar a unicidade do treinamento dos profissionais, o que permitirá a identificação de erros e acertos procedimentais na realização do trabalho rotineiro, resultando, assim, na minoração da ocorrência de equívocos eventualmente cometidos no exercício da profissão, com consequente melhoria na qualidade dos serviços prestados ao cidadão;

CONSIDERANDO que o POP é um documento que descreve as atividades recorrentes, atribuo responsabilidade aos operadores que estão exercendo seus deveres no âmbito operacional, desse modo, resguardado juridicamente e tecnicamente os aplicadores da lei, tendo, ainda, como propósito, garantir a legalidade e qualidade na execução dos procedimentos;

CONSIDERANDO que o POP deve ser elaborado com base nas leis infralegais, na jurisprudência, na doutrina e na experiencia profissional, visando detalhar rotinas especificas da atividade policial, devendo, para tanto, descrever passo a passo, por intermédio de um formulário padronizado, os requisitos técnicos, normativos e/ou doutrinários a serem observados, informações essas necessárias para garantir a fidelidade do processo e dos resultados;

CONSIDERANDO que a padronização dos procedimentos operacionais é imprescindível para alcançar os níveis desejáveis de qualidade, produtividade, controle dos processos e segurança no ambiente e serviço operacional, possibilitando minimizar o cometimento de ações isoladas, improvisadas ou individualizadas, que possam culminar na responsabilização cível, penal ou administrativa por parte do policial militar; e

CONSIDERANDO que a proposta da normatização do procedimento operacional padrão (POP), apresentada por meio do Trabalho de Conclusão de Curso no X CSP/PMRN, foi devidamente revisada por um Comissão de Normatização de Procedimentos Operacionais Padrão (POP), no âmbito interno da instituição, designada pelo Subcomandante e Chefe do EMG PMRN;

RESOLVE:

Art. 1° Aprovar, no âmbito da Polícia militar do estado do Rio grande do Norte (PMRN), a Normatização do Procedimento Operacional Padrão, na forma do anexo Único desta Portaria Normativa.

Art. 2° Incumbirá à Diretoria de Ensino:

I - Fomentar a capacitação e o treinamento de Oficiais e Praças, visando a formação de agentes multiplicadores de conhecimento, relacionado à elaboração de POPs, cabendo a esses a responsabilidade pela difusão da doutrina desenvolvida, assim como pela implementação dos novos conceitos na cultura organizacional da PMRN.

Art. 3° A coordenação e fiscalização da implementação da doutrina criada por meio de POP ficará a cargo da 3° seção do Estado-Maior Geral, competindo-lhe, ainda:

I - Instituir um plano de ação para fins de treinamento e capacitação de todo o efetivo da Corporação, com base na conformidade e na abrangência do POP que vieram a ser aprovado;

II – Propor à Diretoria de Ensino a implementação de disciplina própria, correlata com algum POP que vier a ser aprovado, nos currículos dos diversos cursos oferecidos pela instituição., quando for o caso;

III – Instituir mecanismos consistentes de registro, controle e avaliação dos resultados operacionais obtidos com emprego dos POPs em vigor;

IV - Fomentar, nas Unidades PM, a difusão e prática dos procedimentos estabelecidos por meio de POPs, de forma rotineira e constante, para fins de capacitação e qualificação do efetivo;

V – Realizar, periodicamente, em oportunidade ao ciclo de melhoria contínua, as avaliações do emprego dos POPs em vigor na corporação; e

VI - Catalogar os POPs com o objetivo de reunir, organizar, controlar e arquivar os procedimentos operacionais já conclusos. (BRASIL, 2022).

Outra face da segurança pública é a precarização da estrutura de trabalho das polícias. As condições que o Estado entrega aos servidores públicos para combaterem o crime, é notoriamente insuficiente. Salários defasados, equipamentos insuficientes e sucateados são só alguns exemplos dos enormes desafios que o policial tem que enfrentar diariamente, além da criminalidade.

Veja o que disse Vanessa Gomes, uma das organizadoras do movimento “Luta dos Familiares de Policiais Militares do Estado de São Paulo”:

Em 2017, foram 27 casos de suicídios de policiais militares no Estado de São Paulo. No mesmo período, 6 policiais foram mortos em confrontos.

Para manter a rotina de atividades, em diversos batalhões, de acordo com Vanessa, os polícias pedem colaboração financeira de moradores e comerciantes. Essa prática é chamada, entre os oficiais, de “bater caneco”, em alusão ao modo como os presos utilizam copos de metal ou outros objetos para bater na grade das celas e chamar a atenção dos carcereiros. (BARCELLOS, 2018)

“Isso virou moda entre os oficiais. Quando os policiais batem de porta em porta para pedir ajuda, para consertar uma viatura quando dá problema ou dar uma assistência, eles dizem que o policial foi 'bater lata', ou seja, comparam o policial com um presidiário. É humilhante”, ressalta Gomes. (BARCELLOS, 2018)

As foçar policiais são uma das frentes mais importantes para a manutenção da ordem pública, sem a polícia seria impossível o Estado combater todos aqueles que de algum maneira vilipendiam o bem jurídico, sobretudo os mais importantes, como a vida e segurança. Todavia, para que o profissional desenvolva uma atividade a altura do que a sociedade espera e dentro da legalidade, é fundamental que tenha as condições minimamente favoráveis para executar seu ofício.

Conclusão

Por tudo que foi demostrado nesse artigo podemos concluir que a busca pessoal, para que aconteça respeitando a legalidade, a presunção de inocência, precisa considerar o que reza o artigo 244° do CPP:

Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

Os elementos presentes no art. 244°, CPP, não é mera ficção jurídica, o dispositivo precisa ser respeitado por todos, desde o Estado e seus agentes, até o cidadão comum que é, na grande maioria das vezes, objeto da busca pessoal. Caso o referido artigo, e demais normas que regulam a busca pessoal, sejam desrespeitados, o policial estará incorrendo em infração, que poderá gerar a nulidade das provas, se porventura conseguir obtê-las, por terem sido granjeadas em busca ilegal, como também dar azo a responsabilização do Estado pela ação ilegítima do seu agente. As forças policiais não têm prerrogativa para a qualquer momento, qualquer hora, por elementos subjetivos proceder com uma busca pessoal. O elemento “fundada suspeita” é sine qua non, nesse caso, para que a ação aconteça dentro da legalidade. Não basta que o profissional de polícia justifique o “baculejo” com argumentos do tipo “pela minha experiencia”, “o elemento tinha andar de vagabundo”, “o sujeito estava passando em uma rua escura e deserta”, ou qualquer outro argumento que não seja um sinal fático, concreto que aquela pessoa estivesse portando “arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.

O agente de segurança pública não pode usar o instituto da busca pessoal como uma espécie de “rede lançada ao mar” para ver se pescam algum criminoso. A fundada suspeita como critério da ação policial nos moldes do art. 244 não dá brecha para que a polícia justifique suas ações com elementos subjetivos ou quase que tentando adivinhar quem porta droga, armas ou provas de um crime.

Outra perspectiva interessante sobre o tema é a questão racial. Como vimos no texto, o Brasil é um país estruturalmente racista, o que desponta, inclusive na ação estatal, e de modo mais revelador na ação da polícia, como demostramos nas pesquisas arroladas. Infelizmente, a população negra ainda sofre com um racismo que remonta o período colonial e escravista brasileiro. Aquele “espírito” fundante da primeira polícia do Brasil, ou seja, a função de controlar a “massa negra” ainda se perdura, de modo velado, nas ações policiais dentro das favelas, barracões e periferias espalhados por todo país. O destoante índice de negros abordados pelos agentes de segurança pública em relação ao número de brancos abordados, proporcionalmente, é indicador do racismo estrutural presente na sociedade brasileira e, por extensão, na polícia. Por isso, é tão importante observamos a exigibilidade da “fundada suspeita” para proceder com a “geral”.

Não obstante, é mister ponderar as condições precárias de trabalho das polícias no Brasil. Baixos salários, falta de treinamento, excesso de carga horária, falta de equipamento, pressão da mídia publicando, não raramente, fake news e distorções sobre as operações policiais, são alguns componentes que contribuem para ações atabalhoada ou mal-entendidas. O policial põe a própria vida em risco para proteger a sociedade, e em situações de tenção a que constantemente são expostos no dia a dia, se não houver mínimas condições para que o agente realize o trabalho de forma segura, ele estará vulnerável a tomar decisões açodadas que transgredem o texto normativo e errar, o que na verdade é reflexo da vontade de cumprir seu dever legal, mesmo sem as condições necessárias para tal. De certa forma, o profissional é tão vítima quanto o cidadão comum, pois ele depende que o Estado cumpra com sua responsabilidade e ofereça condições necessárias para um serviço público de qualidade.

Em suma, é necessário que o Estado policial atue no combate à criminalidade, entregando a sociedade o direito constitucional à segurança pública que possui todo cidadão. Contudo, não é permitido ao poder estatal transgredir com a norma constitucional que também garante ao cidadão o direito à presunção de Inocência. É permitido que o policial proceda com a busca pessoal, dê o “baculejo”, faça uma “geral” no cidadão, desde que e somente quando observado o que dispõem o texto normativo, o que está expresso na Constituição Federal, nos códigos, na jurisprudência e na doutrina, que de forma concomitantes apontam para a fundada suspeita como elemento chave para esse tipo de ação. Todo cidadão é considerado inocente, até que se prove o contrário, portanto, todos, sem exceção, desde o morador da favela, até o que reside na zona economicamente mais abastada, o negro ou branco, homem ou mulher, limpo ou sujo, com ou sem teto, menor ou maior de idade estão protegidos pelo art. 244 do CPP e só podem ser alvos do “baculejo” se tiverem características em curso com o dispositivo.

Referências

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CASARA, Rubens, R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2025, p. 228.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL (Estado). Portaria nº 051/2022-CG/PMRN, de 04 de abril de 2022. Aprova a normatização do Procedimento Operacional Padrão (POP) no âmbito da Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte. Portaria Normativa. Rio Grande do Norte, RN.

BARCELLOS, Jorge Alfredo Pacheco de. Policiais militares sofrem com "mordaça", baixa remuneração e equipamento precário: corporativismo e hierarquia impõem silêncio que adoece os trabalhadores da segurança pública. Corporativismo e hierarquia impõem silêncio que adoece os trabalhadores da segurança pública. 2018. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/12/21/policiais-militares-sofrem-com-mordaca-baixa-remuneracao-e-equipamento-precario. Acesso em: 12 out. 2023.

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GALVÃO, Min. Ilmar. STF - Habeas Corpus | HC 81305. 2002. Disponível em: https://www.escavador.com/jurisprudencia/acordaos/287189/hc-81305-stf-go-habeas-corpus-hc-81305. Acesso em: 12 out. 2023.

JANSEN, Roberta. Negros são os mais abordados pela polícia no Rio, afirma pesquisa. 2022. Disponível em: https://www.estadao.com.br/brasil/negros-sao-os-mais-abordados-pela-policia-no-rio-afirma-pesquisa/. Acesso em: 08 out. 2023.

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Sobre os autores
Rilawilson José de Azevedo

Dr. Honoris Causa em Ciências Jurídicas pela Federação Brasileira de Ciências e Artes. Mestrando em Direito Público pela UNEATLANTICO. Licenciado e Bacharel em História pela UFRN e Bacharel em Direito pela UFRN. Pós graduando em Direito Administrativo. Policial Militar do Rio Grande do Norte e detentor de 19 curso de aperfeiçoamento em Segurança Pública oferecido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública.

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