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Medidas despenalizadoras.

Intervenção estatal compatível com a reprovabilidade das infrações penais de menor potencial ofensivo

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Agenda 17/11/2007 às 00:00

2 Medida despenalizadora: aspectos e compatibilidade sistemática

A Lei n.° 9.099/95 surge em um período de contradição jurídico-penal: ao mesmo tempo em que cresce a criminalização de condutas, por vezes desrespeitando princípios constitucionais, surge, em contraposição, um Direito Penal minimizado, atuante em esfera de ultima ratio.

Enquanto o Direito Penal hipertrofiado exige mais rigor nas penas, o Direito Penal minimalista – trazido ao ordenamento pela Constituição Federal de 1988, que na filtragem constitucional e no fenômeno da recepção das leis não admite atentados à dignidade da pessoa humana e, dentre outros instrumentos, pela Lei dos Juizados Especiais Criminais – objetiva reduzir a atuação degradante sobre o homem, advinda da intervenção penal.

A referida lei introduz meios para o Estado atuar na repressão da infração de menor potencial ofensivo, sem fazer uso da pena restritiva de liberdade, deixando-a como medida de reserva quando e apenas para os casos nos quais houver necessidade. Coaduna a referida legislação com o principio da proporcionalidade, constituidor de um Estado Constitucional e Democrático de Direito. Os meios trazidos pela Lei n.° 9.099/95 são:

a)composição civil (viabiliza a extinção da punibilidade) – Arts. 72 e 74, parágrafo único;

b)transação penal – Arts. 76 e 84;

c)suspensão condicional do processo – Art. 89.

Tais mecanismos integram a sistemática consensual de solução de litígios, uma vez que há disponibilidade de um direito em razão da celebração de um acordo entre as partes do processo (Ministério Público e autor, na ação penal pública incondicionada, diretamente; e Ministério Público e autor, após e somente se inexitosa conciliação entre vítima e autor na ação penal pública condicionada ou na ação penal privada).

A consensualidade pode ser demonstrada com a participação da vítima na dinâmica penal e processual. Nas ações penais privadas, a vítima exerce o direito de ação e contribui para realização de atos essenciais, sob pena de perempção. Nas ações públicas condicionadas, o exercício do direito de representação exemplifica também a ingerência da vítima. Maior interferência dela tem-se na composição civil. Há doutrinadores que entendem a participação dela como uma redescoberta da vítima pelo sistema, seja pela reparação do dano que foi causado, seja pela possibilidade da extinção da punibilidade a partir da conciliação, na qual participa diretamente como sujeito desta relação:

a vítima, finalmente começa a ser redescoberta, porque o novo sistema se preocupou precipuamente com a reparação do dano. Em se tratando de infrações penais de competência dos Juizados Criminais, de ação privada ou pública condicionada, a composição civil chega ao extremo de extinguir a punibilidade (art. 74, parágrafo único). (GRINOVER, 2005, p. 50)

A utilização de meios adequados e úteis para repressão e prevenção da criminalidade, que encontra menor reprovabilidade social, positiva o princípio da proporcionalidade em âmbito penal. A reintegração social do agente e a reparação do dano encontram maior confluência com as infrações penais de menor potencial ofensivo do que a mera retributividade da pena. Os mecanismos supramencionados são instrumentos para atingir tal corolário.

Frustrada, por qualquer motivo, a aplicação de medida alternativa, retoma-se, no que for possível e legal, os procedimentos da sistemática processual tradicional. Após a regular tramitação poderá haver a absolvição ou restar uma condenação consistente em sanção penal restritiva de direitos ou até mesmo privativa de liberdade, que até então estava sendo evitada.

O sistema penal consensual não elimina a atuação do sistema penal tradicional, valendo-se, inclusive, deste em caráter de complementariedade, ou seja, não sendo possível a solução do conflito apresentado o próprio sistema penal consensual se integra, no que possível for, com a dinâmica daquele.

A transação penal, um dos institutos despenalizadores, somente pode ser oferecida caso não haja justa causa para arquivamento do termo circunstanciado que foi levado à análise ministerial. Se o fato narrado no termo circunstanciado de infração penal não constitui fato ilícito, penalmente punível, o agente ministerial manifesta-se pelo arquivamento do feito. O magistrado, acolhendo as razões da promoção ministerial, determina o arquivamento. Caso entenda não ser caso para tal, deve remeter ao procurador-geral de justiça para que este analise e tome as medidas que entender conveniente, nos termos do Art. 28 do Código de Processo Penal.

O termo transação significa, em termos comuns, negócio. A acepção jurídica consagra-o como ato jurídico que extingue obrigações através de concessões recíprocas das partes interessadas.

Em consonância com a origem do termo, a transação penal caracteriza-se por concessões mútuas condicionadas à realização de obrigações estabelecidas entre as partes que produzam, uma vez cumpridas, para ambos os lados, o encerramento ou a extinção de obrigações. O adjetivo "penal" determina espacialmente os efeitos, ou seja, as obrigações e os efeitos do cumprimento ou descumprimento delas atuam na seara penal.

A transação penal parte de um componente essencial que é a voluntariedade. De um lado, a manifestação da vontade é legal, concedida a legitimidade para o Ministério Público exprimi-la, sendo a vontade de solver o conflito. De outro, é daquele ao qual foi atribuída a autoria de um fato que lese bem ou interesse jurídico. Este manifesta pessoalmente sua vontade quanto à aceitação da proposta, constituindo esta uma manifestação essencial ao ato.

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A aceitação implica a assunção de responsabilidade em relação ao compromisso firmado e não em relação ao fato imputado. A assunção é livre, consciente e respeita formalidades, dentre elas a restrição a determinados tipos penais. Contudo, em momento algum há a admissão da culpabilidade penal, continuando o autor (e agora sujeito desta relação de direito) a ser considerado como inocente. (GRINOVER, 1999, p. 298)

A aplicação do instituto dá-se apenas após a realização do juízo de tipicidade da conduta, ou seja, após aferição normativo-penal do fato (típico, antijurídico, culpável, praticado por imputável).

Neste desiderato, a transação penal consiste num instituto do sistema penal consensual (em contraposição ao sistema penal tradicional), inserido no ordenamento jurídico nacional, formado por um acordo entre Ministério Público e autor, que cria obrigação de cumprimento das condições estabelecidas no acordo, objetivando a reparação do dano (quando possível) e a ressocialização por meio da não aplicação de pena restritiva de liberdade, tendo por conseqüência a extinção da punibilidade do autor. Vale-se de medidas alternativas, cumpridas sob custódia judicial, para solucionar a contenda levada à apreciação jurisdicional, promovendo, por fim, a pacificação social.

O conceito de delito não está adstrito apenas como infração à norma. A conduta típica ultrapassa o limite normativo de crime, deixando de ser mero pressuposto fático da norma e antecedente lógico da sanção.

A consciência de que o crime não se resume apenas a ser fato típico, antijurídico e culpável leva à busca de reações condizentes e plausíveis, ao enigmático problema social que é o delito. O reconhecimento de uma limitação no lidar com este fenômeno é o marco inicial da solução conflitiva penal.

Desta limitação extrai-se a necessária ponderação na utilização de meios para pretenso controle do fenômeno. Ponderação há de ser feita entre o custo social e a eficácia dos meios eleitos para se atingir a finalidade almejada.

A orientação da moderna Criminologia apresenta o crime, para além do simbólico enfrentamento entre lei e infrator, como um conflito interpessoal histórico, concreto, cotidiano, ou seja, um problema social, comunitário e também jurídico.

A sistemática consensual despenalizadora capta o conhecimento fornecido pela moderna Criminologia e o toma para si. Enquanto a Criminologia clássica contempla o crime como enfrentamento simbólico e formal entre o Estado e o infrator, tendo a pretensão punitiva do Estado como polarização e resposta esgotante ao fato delitivo, a moderna Criminologia, partindo de uma imagem complexa do acontecimento delitivo, atribuindo relevância aos diversos fatores e protagonistas do fenômeno, sugere uma atuação mais completa e dinâmica sobre estes elementos que seja, ao mesmo tempo, satisfatória e adequada para lidar com a conduta infracional e atender às exigências do Estado Social e Democrático de Direito – balizado na Constituição Federal de 1988.

O modelo de Estado referido, no tangente à intervenção penal, exige, já que esta se fez necessária, a dispensa de tratamento otimizador do pacífico convívio social. Assim, a ressocialização do infrator, a reparação do dano e a prevenção do crime são objetivos condizentes com a ideologia estatal.

A noção de que o instrumento dissuasório e contramotivador expressa fielmente a essência da prevenção (ameaça de castigo – prevenção geral) está presente no tratamento penal tradicional, materializando-se na pena. Não se nega a prevenção especial neste tratamento.

Nos mecanismos do sistema consensual há uma maior exaltação dos meios de prevenção especial. Este sistema vale-se dos mecanismos da prevenção secundária (tratamento penal legislado) para atingir objetivos que se inserem no plano da prevenção primária e terciária, ou seja, concebe-se como medida a ser aplicada ao autor de uma infração penal, a reparação do dano à vítima – quando possível – e a prestação de serviço à comunidade – ou qualquer restrição legal de direitos – enquanto meio para ressocialização, e, por conseqüência destes, a reinserção social do agente (prevenção terciária) que pode dar-se combinada com políticas públicas de prevenção da criminalidade – prevenção primária – como, por exemplo, as palestras, seminários sobre drogas, violência doméstica e no trânsito, ou ainda, oficinas culturais e outros.

No sistema consensual coloca-se a dissuasão pela pena como efeito inibitório em segundo momento ("soldado de reserva") e realçam-se os demais aspectos da prevenção. Consciente do custo social da intervenção penal, ele encontra nos mecanismos despenalizadores a afirmação do modelo teórico neoclássico de prevenção do delito.

Diferente do modelo clássico de prevenção do delito que polariza a suposta eficácia preventiva do crime em torno da pena e do seu rigor ou severidade, o modelo neoclássico, base para o sistema consensual despenalizador, confia mais no funcionamento do sistema legal, tal como ele é percebido pelo infrator potencial do que na severidade abstrata da pena. Neste, há um deslocamento do centro de atenção da lei para o sistema legal como um todo, ou seja, transfere-se o foco das penas classicamente contempladas à efetividade do ordenamento. (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, GOMES, p. 403).

Se maior efetividade encontrar o ordenamento por aplicação de medidas outras, diferentes da pena, razão não há para um atuar conservador, inibidor de atingimento do escopo pacificador.

A aplicação de uma pena exige, além da previsão legal da conduta como ilícito penal, uma substancialidade lesiva a bem ou interesse jurídico relevante; a não existência de excludente de ilicitude, ou também de tipicidade, condições prévias de punibilidade; processo constitucional e jurisdicional a atribuir a culpa ao suposto agente; e, ao final, a comprovação irrefutável de sua responsabilização penal. Uma medida despenalizadora, por não consistir em uma pena, exige menos, podendo ser aplicada sem ofensa ao princípio da presunção de inocência, como ocorre na transação penal, onde é utilizada como instrumento de política criminal.

Conforme a estrutura lógica garantista, somente há uma conduta normatizada e suficiente para aplicação de pena se existirem certas condições como a inexistência de causa de justificação da conduta, condições de punibilidade e procedibilidade e comprovação judicial do um delito. Assim, a pena só encontra justificativa preventiva geral de delitos e retributividade quando tenta suavizar as conseqüências e reduzir o cometimento de infrações, sem que almeje interferir no caráter pessoal do indivíduo, a não ser exercendo intimidação.

Desta forma, a aplicação de medida que, voluntariamente, possa incitar a prática, ao menos por aquele que infringiu norma penal, de ato que produza benefício para a sociedade ou determinado setor desta, encontra maior louvor na doutrina do que a aplicação de uma pena (FERRAJOLI, 2001, p. 368).


Considerações finais

A Constituição Federal de 1988, trabalhando a idéia da instituição de um Estado Social e Democrático de Direito introduziu novas formas de positivar a dignidade da pessoa humana na sociedade brasileira.

O reconhecimento da importância do Direito como instrumento a serviço da sociedade, disponibilizado para o fim de consecução do bem comum, exigiu adaptações substanciais deste instrumento, num processo de depuração das próprias normas compositoras do ordenamento jurídico pré-constitucional e na delimitação material da finalidade utilitarista do Direito, reclamando consonância de todas as normas jurídicas pós-constituição, com os valores, direta ou indiretamente, ressaltados no Diploma Maior.

Exigiu-se a conformidade dos ramos do Direito com os princípios constitucionais. O Direito Penal e o Direito Processual Penal, como os demais ramos, tiveram suas normas, editadas antes de 1988, depuradas pelo processo conhecido como "fenômeno da recepção". A conformidade normativa não cessou apenas neste fenômeno. O processo de filtragem constitucional cercou-se de meios para que toda norma editada posteriormente à Carta Constitucional de 1988 estivesse materialmente em conformidade com esta. Neste contexto, deu-se a edição da Lei n.° 9.099/95 que introduziu novos institutos (suspensão condicional do processo, transação penal e composição civil de danos), ressaltou a importância de medidas despenalizadoras e a conveniência de sua aplicação.

Após críticas positivas e negativas, essas medidas foram, ao longo do tempo, encontrando consolidação em sua aplicação.

Questionada a constitucionalidade de sua existência apresentaram, por defesa, fundamentos formal e material. A previsão de sua implementação constante no dispositivo que trata da implantação dos juizados especiais serviu de fundamentação formal. Mas a grande questão estava na sua fundamentação material, visto que muito do que está formalmente previsto na Constituição Federal de 1988 carece de fundamentação material. A justificativa material adveio da compreensão acerca da natureza, contextualização e interligação principiológica das medidas despenalizadoras.

As medidas despenalizadoras revelaram-se materialmente constitucionais ao apresentarem-se em consonância ímpar com o princípio da proporcionalidade, princípio este basilar do Estado Social e Democrático de Direito.

Sob direcionamento do princípio da proporcionalidade, o legislador concebeu a gradatividade da intervenção penal. Apropriou-se, o ordenamento jurídico pátrio, de concepções até então repudiadas na seara penal, sem que se produzissem prejuízos à intervenção penal. O que na verdade revelou-se nesta intervenção diferenciada e gradual foi um ganho não estimado estatisticamente, mas, qualitativa e institucionalmente positivador da eqüidade, através da dispensa de tratamento penal em proporcionalidade com a lesividade da conduta perpetrada.


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Sobre o autor
Valdeir Ribeiro de Jesus

advogado, aluno especial do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro (FUNDINOPI), integrada à Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Valdeir Ribeiro. Medidas despenalizadoras.: Intervenção estatal compatível com a reprovabilidade das infrações penais de menor potencial ofensivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1599, 17 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10672. Acesso em: 22 nov. 2024.

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