Estabelece o Código de Processo Civil que o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações. Entende-se como “bens presentes” aqueles que o devedor possui no momento em que ele contraiu a obrigação – se ele, por ventura, dilapidar esse patrimônio com a intenção de não honrar a dívida, pode ser caracterizada fraude contra credores ou fraude à execução. E, por “bens futuros” entende-se como sendo aqueles que vierem a integrar o patrimônio do devedor após a dívida.
O artigo 790 do CPC traz as seguintes hipóteses de fraude patrimonial: fraude à execução e fraude contra credores.
FRAUDE CONTRA CREDORES
Prevista nos artigos 158 ao 165 do Código Civil, entende-se por fraude contra credores todo ato praticado pelo devedor com a finalidade de prejudicar os seus credores, privando-os de, legitimamente, haver o que lhe é devido e tem por objetivo a defesa e a preservação dos direitos e interesses de todos os credores quirografários, mas, para que seja reconhecida, necessita do ajuizamento de ação específica (ação pauliana), visando o pronunciamento judicial fundado no art. 487 do CPC, que a reconheça, decretando, consequentemente, o vício do negócio jurídico, em virtude do ato ter sido praticado fraudulentamente1.
O prazo do ajuizamento dessa ação denominada ação pauliana visando a anulação do ato é de 4 (quatro) anos.
Devem figurar no polo passivo da ação pauliana o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que agiram de má-fé, sob pena de nulidade da sentença.
Na ação pauliana o credor deve comprovar alguns requisitos. Vejamos.
O primeiro é o eventus damni, ou seja, a existência de prejuízo para o credor. Trata-se de um pressuposto objetivo em que ele deve provar que a alienação acarretou prejuízo, uma vez que não há outro bem que responda pela dívida e a venda causou insolvência do executado.
Também, o credor deve provar a consilium fraudis que é a intenção fraudulenta do adquirente. É um pressuposto subjetivo em que o credor deve provar que o adquirente agiu de má-fé e que ele tinha conhecimento do estado de insolvência do alienante. O credor deve prova a consilium fraudis somente em atos onerosos, sendo desnecessária a comprovação nos atos gratuitos, nos quais a má-fé se presume.
Ainda, para a configuração da fraude contra credores, o crédito deve ser anterior à realização do ato que causou a insolvência do devedor.
Por fim, o último requisito para o reconhecimento da fraude contra credores é a insolvência do executado. O credor deve comprovar, no momento do ajuizado da ação, que a insolvência do credor existe e que ela foi causada pela venda do bem.
Na hipótese de procedência da ação paulina, o bem retorna à esfera patrimonial do devedor e o credor realiza a penhora nas mãos do executado (não do terceiro adquirente). Caso haja saldo remanescente, o valor pertence ao executado.
FRAUDE À EXECUÇÃO
A súmula 375 do STJ prevê que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
Verifica-se que a súmula prevê duas hipóteses diferentes de configuração da fraude à execução.
A primeira é a existência de registro da penhora. Aqui, tem-se a chamada presunção absoluta em que não se admite prova em sentido contrário – pouco importa a produção de prova tentando indicar a boa-fé do adquirente, se houve a penhora e a averbação e, posteriormente, aconteceu a alienação, é reconhecida a fraude à execução.
Nesse mesmo sentido é o artigo 792, incisos I, II e III do CPC, os quais preveem que a alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver; II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828 ; III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial (por exemplo, a penhora) originário do processo onde foi arguida a fraude. Verifica-se que em todas essas hipóteses fala-se em averbação na matrícula do imóvel, portanto, presunção absoluta.
A segunda parte da súmula determina que a fraude à execução acontece quando há prova da má-fé pelo terceiro adquirente. Aqui não é necessária a averbação na matrícula, devendo o credor comprovar a má-fé do terceiro. Também é o que prevê o inciso IV do artigo 792 do CPC o qual determina que a alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência. Aqui, não há menção à averbação na matrícula do imóvel – cabe ao credor comprovar que havia ação pendente suficiente para gerar a insolvência do devedor e que o bem foi alienado para terceiro já tendo ocorrido a citação dessa ação ou que ele (terceiro) já possuía ciência inequívoca da existência da ação de alguma forma. É preciso analisar: o adquirente possuía forma de saber da existência da ação? Ele tirou certidão de existência de processos judiciais disponível no site do Tribunal em nome do devedor? Essas questões devem ser analisadas no caso concreto para a caracterização (ou não) da fraude à execução, sendo de extrema importância que o adquirente, antes de concretizar a compra, adote as cautelas necessárias para a aquisição providenciando as certidões pertinentes obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente, ou seja, uma vez comprovada a fraude, o credor penhora o imóvel “na mão” do adquirente e não do executado – o imóvel não retorna à esfera patrimonial do devedor. Na hipótese de saldo remanescente após a alienação, é de propriedade do adquirente.
O Enunciado 149 da II Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal (Brasília/DF, 13 e 14 de setembro de 2018) determina que “a falta de averbação da pendência de processo ou da existência de hipoteca judiciária ou de constrição judicial sobre bem no registro de imóveis não impede que o exequente comprove a má-fé do terceiro que tenha adquirido a propriedade ou qualquer outro direito real sobre o bem”.
O credor deve requerer na própria execução o reconhecimento da fraude e, antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias.
A Lei nº 13.097/2015 com as alterações da Lei nº 14.382/2022 trouxe mudanças em relação as normas de fraude à execução previstas no CPC.
O artigo 54 da referida lei traz o entendimento de que os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, de que a execução foi admitida pelo juiz ou de fase de cumprimento de sentença; III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência.
Conforme já mencionado acima, o artigo 792 do CPC, em seus três primeiros incisos, faz menção à fraude a execução quando há averbação na matrícula do imóvel (presunção absoluta) e, em seu inciso IV, traz a hipótese de presunção relativa, sem a necessidade de averbação na matrícula, quando a alienação aconteceu quando pendente processo judicial capaz de reduzir o devedor à insolvência. Portanto, na hipótese do inciso IV, de acordo com o CPC, não seria necessária a averbação na matrícula do imóvel da existência de demanda judicial para a configuração da fraude à execução.
Contudo, o inciso IV do artigo 54 da Lei nº 13.097/2015 alterada pela Lei nº 14.382/2022 diz que para ser fraude à execução na hipótese do inciso IV do artigo 792 deve estar averbado na matrícula a existência da execução ou outra ação capaz de levar o devedor à insolvência. Essa lei determina que o credor, ainda na fase inicial de uma demanda judicial, podendo ser um processo de conhecimento (não necessariamente um processo de execução ou cumprimento de sentença), requeira a expedição de uma certidão para averbar na matrícula a existência do processo.
Também, o § 2º do artigo 54 determina que para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis, ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas: I - a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433 (documento comprobatório do pagamento do ITBI, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais) e II - a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais.
Pela análise do artigo 54, entende-se que se o devedor vende um imóvel, este negócio jurídico será eficaz (não será fraude à execução) se a dívida cobrada judicialmente não foi registrada na matrícula do imóvel. Também, em relação ao terceiro adquirente, o artigo determina que ele não precisa sequer tirar as certidões referentes ao imóvel e ao vendedor antes da compra, uma vez que basta a matrícula do imóvel sem qualquer registro de demanda judicial para que ele seja considerado de boa-fé.
Portanto, basicamente o que diz a Lei nº 13.097/2015 é: só existe fraude à execução se houver averbação, ou seja, somente se o alienante figurar como réu em uma ação capaz de reduzi-lo à insolvência e se a demanda judicial estiver averbada na matrícula do imóvel. Na ausência de anotação da matrícula, a venda será considerada eficaz, contrariando, portanto, o disposto no CPC.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRUSCHI, Gilberto Gomes. Recuperação de Crédito. Prática e Estratégia. 3. ed. São Paulo, Ed. RT, 2021.
PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil. 32ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo / coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier – 1º ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Execução Civil, 7 ed. Ed. Forense, 2019.
BRUSCHI, Gilberto Gomes. Recuperação de Crédito. Prática e Estratégia. 3. ed. São Paulo, Ed. RT, 2021.︎