Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A exclusão por trás do riso.

Exibindo página 1 de 3
Agenda 30/10/2023 às 19:43

O papel do Direito do Trabalho e do trabalho na construção da dignidade da pessoa com deficiência é analisado através do filme Freaks, demonstrando avanços legislativos, mas apontando a insuficiência da mera imposição legal para que esse grupo alcance oportunidades iguais de trabalho e crescimento profissional.

Resumo: O presente artigo trata sobre o papel do Direito do Trabalho e o próprio trabalho como ferramentas na construção da dignidade da pessoa com deficiência. Para tal tratativa, através dos métodos analítico e dialético, sendo o primeiro para analisar como referência e ponto inicial de reflexão o filme Freaks (1932), com seus aspectos textuais e imagéticos, filme este que expõe em seu roteiro a condição de vida e de trabalho das pessoas com deficiência no início do séc. XX nos chamados Freak Shows. Com o objetivo compreender e expor, através do método dialético, a situação de exclusão social e trabalhista que os deficientes vivenciam ao longo da história chegando até os dias atuais, e os desafios para superar a discriminação desse grupo minoritário de modo a gerar reflexões jurídicas sobre o tema. O presente estudo demonstra os avanços legislativos nacionais e internacionais sobre o tema da inclusão social das pessoas com deficiência evidenciando, ao mesmo tempo, aponta a insuficiência da mera imposição legal para que esse grupo alcance, no plano fático, oportunidades iguais de trabalho e crescimento profissional.

Palavras-chave: Pessoa com deficiência – Freak Show – Direito do Trabalho – Cinema –Dignidade da pessoa humana


A ciência jurídica, por se tratar de uma ciência humana, tem elevado grau subjetivo que ultrapassa o limitado campo do direito positivado (as demandas por respostas jurídicas, visto o Direito ser o norte do que seria devido ou não, se tornam cada vez maiores frente às realidades complexas da sociedade). Ao estudar os temas em que a ciência do Direito atua faz-se necessário um maior entendimento interdisciplinar da matéria, para que ele não se restrinja à letra da lei. É simples compreender que as relações humanas possuem nuances para além da norma, e nesse sentido busca-se por um Direito interdisciplinar (e que consiga dialogar entre seus próprios ramos).

O cinema, como uma das diversas expressões artísticas, possui papel fundamental para o referido estudo interdisciplinar do direito, visto que permite uma visão ampla e dinâmica de realidades diversas. Outro ponto de extrema relevância é sua acessibilidade para os mais diversos públicos, o que possibilita cada vez mais a democratização das reflexões jurídicas.

Pode-se mesmo afirmar que o cinema se coloca como um instrumento válido como ponto de partida para a sensibilização sobre questões sociais e de Direito Humanos, em função das diversas dimensões interpretativas que a Arte possui. A análise que ora se apresenta, parte desse pressuposto para encarar um problema aparentemente superado e até banalizado: o direito ao trabalho da pessoa com deficiência.

Em um primeiro momento o filme Freaks, como expressão artística que conta cerca de 90 anos da data de sua estreia, nos permite uma reflexão jurídica quanto à questão da pessoa com deficiência e a garantia de seus direitos fundamentais nos dias atuais. Através da obra com temática extremamente relevante e contemporânea, utilizando o método analítico de pesquisa, é possível refletir sobre meios para uma melhor inclusão social e trabalhista da pessoa com deficiência e compreender o papel importante do trabalho na construção da dignidade da pessoa humana.

A partir do filme Freaks, emblemática obra cinematográfica, o presente artigo volta-se para a temática dentro da ciência jurídica, e à luz da legislação constitucional e infraconstitucional, utilizando o método dialético de pesquisa, analisa os avanços históricos na questão e os papel fundamental do direito do trabalho para a garantia do respeito à dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, a principal questão analisada é a de se refletir se a pessoa com deficiência encontra hoje no mundo do trabalho um lugar onde pode se reconhecer como uma pessoa humana provida de dignidade, ou se ainda há um resquício de criação de guetos (ainda que simbólicos) no ambiente laboral.

Para responder essa questão o artigo primeiro esclarece as considerações pedagógicas e os potenciais do (ainda marginalizado ou subestimado) diálogo entre Direito e Arte, para então apresentar uma contextualização histórica sobre a pessoa com deficiência, nos aspectos gerais e nacionais. Após essa necessária incursão a análise se debruça sobre o filme e suas representações simbólicas, que trazem contribuições para reflexões tão atuais quanto possível. Por fim, analisam-se os principais obstáculos para a efetivação da dignidade por meio do trabalho das pessoas com deficiência. Nesse sentido a pesquisa se propõe a entender alguns efeitos gerados pela legislação nacional e a sua insuficiência frente à realidade ainda de exclusão vivenciada pela pessoa com deficiência.


Diálogos Entre o Direito e o Cinema

Para que o Direito não se restrinja à sua própria letra e atinja a sociedade do modo e nos meios em que ela precisa ser regulada é necessário que os juristas, desde o legislador até o aplicador da lei, tenham conhecimento das relações humanas que são afetadas pela ciência jurídica. Uma lei ou um preceito jurídico, desde sua criação até sua aplicação devem estar intrinsecamente ligados a consequência que gerarão na sociedade.

Quanto a isso, a Teoria Estética do Direito nos fala exatamente sobre tal harmonia necessária entre a disciplina jurídica e a realidade social, e essa harmonia revela a essência estética do Direito. Para tal teoria o Direito é composto pelo binômio do belo e do justo que quando se encontram em consonância garantem o funcionamento do ordenamento jurídico (PORTO, 1996).

O Direito do Trabalho, como ramo autônomo, possui um maior primor pela realidade material do que as demais áreas jurídicas. Ao priorizar a realidade material, o Direito do Trabalho imprime maior relevância ao conhecimento das relações em que o direito se insere.

Nesse aspecto é fundamental que o jurista esteja atento as demais áreas do conhecimento, para melhor compreender a sistemática das relações trabalhistas, relações essas que são um mero reflexo da sociedade em que se inserem.

A Arte é traduzida pelas mais diversas manifestações humanas (música, artes cênicas, pintura, escultura, arquitetura, literatura e cinema) através das quais o ser humano conhece e transforma o mundo em que vive (ALMEIDA, 2014). Ela, assim como outras áreas de conhecimento que extrapolam o campo do Direito, é um meio de se conhecer mais profundamente as relações humanas mais diversas. A Arte propicia um maior contato com as mais variadas culturas e pensamentos, ainda que essas culturas estejam completamente distantes daquele que a contata.

O Cinema é uma das manifestações da Arte de grande impacto ao espectador. Um filme proporciona a quem o assiste a possibilidade do entendimento, ainda que limitado, mas (potencial e vastamente) realista1, sobre determinada matéria. O Cinema oferece recursos mais dinâmicos como o movimento, o som e o enredo, que são teoricamente mais palatáveis ou mesmo sedutores que a Literatura, as Artes Plásticas, a Pintura ou a Escultura, por exemplo.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Além do papel transformador do cinema, ele também é uma forma de registro histórico das sociedades. Através dos filmes podemos ter um contato mais próximo com a vivência, conceitos e valores passados. Uma arte cinematográfica produzida em 1932 tem muito a dizer sobre uma época vivenciada anteriormente e, mas que fora fundamental para construção realidade atual, dos conceitos em voga e valores (NÓVOA, 1995).

A Sétima Arte2, como forma de registro, compõe um retrato pitoresco do próprio Direito do Trabalho e das relações que envolvem esse ramo. Como prova, basta destacar obras clássicas como “Tempos Modernos” (1932) de Charlie Chaplin, que remontam uma realidade trabalhista vivenciada nos séculos XIX, na Revolução Industrial, indo até filmes mais recentes como “O Diabo Veste Prada” (2006) de David Frankel, que revelam temas relevantes como o assédio moral e a lógica capitalista impressa nas atuais relações de trabalho.

Além de ser o retrato das relações humanas em seu conteúdo, a própria criação artística é uma expressão da sociedade que a compõe, na medida em que o artista colhe, controla e transforma suas experiências em memória e suas memória em expressão, fazendo criar a arte (FISCHER, 1976). É mesmo necessário reconhecer que o cinema, incluindo seus gêneros mais populares e comerciais, tem dialogado com os grandes sistemas filosóficos (como por exemplo, o legado de Spinoza, Kante, Hegel, Sartre, Nietzsche, entre outros) tornando-os acessíveis para grandes públicos (GUBERN, 2015).

Tal consideração é salutar numa época de quebra de paradigmas, podendo proporcionar ao jurista um entendimento que vai de encontro ao positivismo extremado do Direito. O conhecimento que a arte proporciona evita uma aplicação cega do texto legal, uma vez que essa constrói no jurista o entendimento social necessário para que ele entenda o desdobrar da aplicação da lei em um determinado grupo. Nesse aspecto, é valido reforçar:

Cabe, portanto, à arte reconhecer aspectos da realidade que o paradigma, ou que a Ciência do Direito não é capaz ou não se propõe a reconhecer. Para tanto, porém, se torna necessário superar a arte como mero entretenimento e reafirmá-la enquanto elemento analítico capaz de aproximar os sujeitos às mais diversas reflexões, e das formas mais sensíveis e profundas possíveis.” (PIANCASTELLI et al, 2009, p. 145).

Desse modo, o cinema revela-se de modo único, como experimentação particular a cada espectador e essa característica multifacetária deve ser aproveitada ao jurista que na maioria das vezes se vê adstrito a uma única face do Direito, a letra da lei3.

O filme “Freaks” (no Brasil traduzido como “Monstros”), abordado neste trabalho, produzido em 1932 e dirigido por Tod Browning, é um exemplo de cinema de espetáculo, produzido na época para fazer frente ao filme de sucesso do estúdio rival, a Universal Studios, que havia lançado “Frankenstein” (1931) de James Whale. Ainda que, na época, tenha sido uma produção com lógica mercantil, o conteúdo do filme e o próprio impacto que ele causou nos telespectadores, e que ainda causa, nos revela valores diversos sobre as relações humanas, que vão além da lógica em que o filme fora produzido (DIAS, 2013).

Freaks (1932) é um registro do meio de trabalho a que a pessoa com deficiência era obrigada a se submeter para garantir sua subsistência. Além disso, a própria rejeição que a produção sofreu na época de sua estreia, também registra a lógica social e os valores da sociedade deste tempo, devendo ser esse aspecto melhor abordado nos tópicos seguintes.

Por fim, a arte em suas diversas formas, aqui em destaque o cinema, deve ser utilizada como instrumento no estudo do Direito, para que a ciência jurídica ultrapasse a mera epistemologia positivista, para o entendimento não fragmentado da sociedade, compreendendo a realidade como um todo e a sociedade como um conjunto complexo e dinâmico de relações humanas (PIANCASTELLI et al, 2009).


Freaks e a Representação da Deficiência como Marginalização Social

Freaks é um filme do gênero terror lançado no ano de 1932, do Estúdio Metro- Goldwyn-Mayer, dirigido e produzido por Tod Browning (1880-1962), inspirada na obra de Tod Robbins (1888-1949). A obra se propõe a contar a realidade vivenciada nos chamados Freak Shows (Circo dos Horrores) que na época compunha um tipo popular de espetáculo nos Estados Unidos e na Inglaterra. Por ter seu elenco em sua maioria formado por atores portadores de alguma deficiência física que realmente trabalhavam nos chamados Freak Shows4 o filme causou grande impacto nos telespectadores de sua época.

O cinema nesse período abandonava lentamente a pantomima e passava a ser falado (FREIRE, 2013), logo o telespectador que ia ao cinema na época em que o filme fora lançado (ano de 1932) acostumava-se com o cinema belo e romantizado. Desta volta, o diretor do filme Freaks possuía a difícil tarefa de fazer com que o público criasse empatia com os personagens com algum tipo de deficiência, protagonistas da trama.

O filme inaugura-se com um texto autoexplicativo sobre o tratamento histórico dado a pessoa com deficiência e sobre a que se propõe. Em síntese, o texto conta que tudo o que destoasse do normal, em épocas passadas, era encarado como má sorte, representação do mal ou maldição dos deuses, sendo atribuído às pessoas com deficiência as injustiças e dificuldades da época5.

O texto introduz que o filme trata sobre um código de ética criado entre as pessoas com deficiência de modo a evitar os constantes abusos por eles suportados e sobre as consequências desse código.

A trama tem seu início pelo fim. A cena de abertura acontece em uma “feira de horror” onde o guia mostra ao público uma das “criaturas mais terríveis e indigestas” de sua feira, e a partir daí o guia passa a narrar a trama encenada no filme, a história da mulher conhecida como “A pavoa dos ares”.

Apesar do enredo ser repleto de personagens que tratam as pessoas com deficiências de forma coisificada, uma das cenas iniciais e que marca o filme é a dos personagens com deficiência brincando de roda e dançando em um dia de sol num campo. Essa cena é curta, porém, de suma importância para o restante do filme, porque ela humaniza o primeiro olhar do espectador em relação aos personagens tratados como “freaks” (expressão que pode ser traduzida para o português como aberração, monstros, entre outros).

Hans (Harry Earles), o protagonista da trama é um homem pequeno extremamente educado e elegante, e encontra-se noivo de Frieda (Daisy Earles) também uma pequena mulher adorável e refinada, ambos portadores de nanismo. O casal antagonista é formado por Cleópatra (Olga Baclanova), uma linda trapezista do circo, muito sedutora e ambiciosa e Hércules (Henry Victor) o homem mais forte e belo do circo, domador de animais e também muito ambicioso.

O ambiente circense se mostra claramente dividido entre as pessoas com e sem deficiência física. Aqueles que não possuem deficiência zombam rotineiramente dos demais, os chamando de “freaks”, já o outro grupo se mostra unido como forma de proteção a hostilidade daqueles. Essa divisão se mantém durante o enredo e cada vez mais se tenciona até romper-se no final da trama.

A trama nos apresenta diversos personagens e conta-nos suas histórias paralelas a dos protagonistas. A dona do circo, Madame Tetralini (Rose Dione), é uma doce senhora que se mostra cuidadosa e maternal com os seus atores com deficiência, principalmente em relação às personagens Elvira, Jenny-lee, e Schlitzey, três mulheres portadoras da microcefalia, doces e inocentes. A mulher barbada (Olga Roderick) que dá à luz em meio ao ambiente circense, o que se torna um verdadeiro evento entre o grupo dos atores do circo com deficiência, que se unem todos empolgados para ver a criança.

As irmãs Violet e Daisy Hilton, gêmeas xifópagas (siamesas) unidas por uma parte das costas, garantem a comicidade do filme. A gêmea Violet, mais temperamental e geniosa, vive a discutir com o noivo ciumento de sua irmã, Sr. Roscoe, acometido de disfemia (gagueira) que tem de suporta-la devido a sua condição física.

Além dos demais personagens que compõem a trama como Josephine-Joseph, metade homem, metade mulher; Half Boy (Johnny Eck), homem sem pernas; Koo koo, a garota-pássaro (Minnie Woolsey), afetada pela síndrome de Seckel; Prince Randian, homem sem pernas e braços; a mulher sem braços (Frances O’Connor); entre outros.

A história principal do filme se desenvolve em torno dos casais protagonista e antagonista. Hans desde o início se demonstra encantado pela bela trapezista Cleopatra, que sua vez passa a seduzi-lo devido aos caros presentes que recebe do pequeno homem apaixonado.

Hans, que se encontra noivo de Frieda, passa a deixá-la de lado por acreditar no amor da bela trapezista. Porém Cleo, na verdade o despreza e mantém um relacionamento amoroso com Hercules, fazendo com que Hans se torne motivo de piada entre o grupo de atores do circo sem deficiência que desdenham os chamados “Freaks”.

Apesar de tentar alertar Hans da situação, Frieda se vê cada vez mais ignorada por seu ex-noivo e em uma medida desesperada vai até Cleo para tentar convence-la a parar de iludir Hans. Em meio a conversa, Frieda acaba confidenciando que Hans é herdeiro de uma herança milionária, acreditando estar a trapezista ciente do fato.

Assim que os antagonistas descobrem a herança de Hans passam a tramar um plano para matá-lo de modo a perceberem toda a herança do pequeno homem.

Hans e Cleopatra decidem se casar, ele por estar apaixonado e ela pela herança. Na cena da festa do casamento encontram-se todos os atores apelidados como Freaks, cantando e comemorando juntos como uma verdadeira família.

A todo o tempo o filme mostra a independência dos atores do circo com deficiência. A mulher barbada que teve seu bebe, a mulher com má formação dos membros que bebe uma taça de vinho com os pés, o homem sem os membros que ascende seu próprio charuto.

A humanidade desses atores é cada vez mais exaltada no filme. Fica claro o senso de comunhão entre eles, o quanto eles se preocupam com o bem-estar um do outro e se protegem como uma verdadeira família. A anormalidade, o destoante, são características dos atores tidos como “normais”, que se mostram cruéis e ambiciosos.

A trama se desenvolve de forma que ao chegar na cena do casamento, o espectador já se encontra confortavelmente colocado no lugar da pessoa com deficiência, o público deixa de se identificar com o “belo” e passa a se identificar com o “humano”.

É na cena do casamento que os “freaks” passam a descobrir o plano de Cleopatra e Hercules, traçando o plano de vingança que desemboca no desfecho do filme. Ao final os chamados “freaks” colocam seu plano de vingança em prática transformando a vilã na “criatura mais terrível e indigesta”, que assim como eles passa a ter como único meio de vida a exposição de sua deformidade em uma Feira de Horror.


Olhar Histórico-Social sobre a Pessoa com Deficiência

O filme Freaks nos aproxima de uma realidade pouco experimentada por nós, a vivencia da pessoa com deficiência no início XX. Ele nos faz olhar de modo mais sensível ao espetáculo do Freak Show e põe-nos a refletir sobre as condições das pessoas com deficiência na contemporaneidade.

Refletir sobre a temática proposta pelo filme nos exige um maior entendimento sobre o tratamento histórico dado a pessoa com deficiência ao longo da trajetória das sociedades no tempo.

De início, é relevante entendermos que as deficiências e as doenças incapacitantes sempre existiram desde as sociedades pré-históricas, e o ser humano aprende a lidar com esses corpos diferenciados desde seus primórdios, apesar de não existir dessa época estudos e materiais contundentes sobre o tratamento dado às pessoas com deficiência.(OLIVEIRA, 2012).

Um Panorama na História Mundial.

Desde as polis Gregas a existência de deficiências físicas e sensoriais é externada em suas crenças mitológicas, a exemplo da figura dos deuses da Fortuna, do Amor e da Justiça, retratados como figuras que não possuem o sentido da visão. Nesse período também as deficiências já eram associadas a males e castigos, a exemplo das figuras mitológicas de Licurgo e Fineu, ambos tratavam-se de reis mitológicos castigados pelo Olimpo com a cegueira (SILVA, 1987).

Em Esparta, a pólis grega conhecida pela sua cultura de guerras, os bebês que nasciam com deficiência deveriam ser descartados e ofertados aos deuses por não possuírem serventia à formação militar (GURGEL,2008).

Portar algum tipo de deficiência nas sociedades Clássicas6, era um fato encarado com misticismo religioso, normalmente como uma forma de maldição dos deuses. O próprio filme Freaks (1932), inicia-se com um texto explicativo que expõe um pouco o tratamento dado às pessoas com deficiência na antiguidade.

Em tempos passados, tudo que destoava do normal era considerado um sinal de má sorte ou uma representação do mal. Deuses da desgraça e adversidade eram invariavelmente representados na forma de monstruosidades, e as ações de injustiça e dificuldade eram atribuídas aos muitos aleijados e deformados tiranos da Europa e Ásia.(...) O acontecimento de um nascimento anormal era considerado uma desgraça e crianças malformadas eram deixadas à mercê dos elementos para morrer. Se, por acaso, uma dessas aberrações da natureza sobrevivessem, ele seria sempre tratado com suspeita. A sociedade o evitaria por conta de sua deformidade e a família seria sempre envergonhada por conta da maldição nela inserida.

Nota-se que as pessoas com deficiência normalmente eram mortas em rituais aos deuses ou abandonadas por suas famílias por serem um sinal de vergonha nos meios sociais. Esse tipo de tratativa derivava principalmente da cultura das sociedades da antiguidade clássica, possuindo como destaque a cultura Romana e a Antiga Grécia.

A sociedade romana teve grande influência na formação e estruturação do direito na cultura ocidental. Por esse motivo é válido destacar que já no Direito Romano haviam leis que tratavam especificamente dos direitos dos recém-nascidos, estipulando como uma das principais condições para a negação desses direitos a vitalidade e a forma humana.

Como exemplo podemos mencionar que, tanto os bebês nascidos prematuramente (antes do 7º mês de gestação) quanto os que apresentavam sinais da chamada “monstruosidade”, não tinham condições básicas de capacidade de direito. Além de não encontrarmos uniformidade nos pontos de vista dos autores quanto aos requisitos básicos para o reconhecimento dos direitos de um ser humano recém- nascido, dentro do Direito Romano, os sinais indicativos da “monstruosidade” eram um fator decisório para a sua negação (SILVA, 1987, p. 91).

Nota-se que o Direito Romano negava às pessoas com deficiência desde o nascimento a capacidade de direitos, e sendo o direito uma expressão das regras basilares da sociedade, é por bem entendermos que nesse período a pessoa portadora com deficiência vivia à margem do direito e da sociedade.

As polis Gregas, por sua vez, são um marco relevante para o inicio do culto à beleza, ao corpo e à perfeição. Os jogos, as expressões artísticas e até as guerras da época ainda encontram-se enraizados nos preceitos da cultura ocidental contemporânea e tem como consequência a estranheza a tudo aquilo que destoa do padrão (MARTINS, 2010, p. 29-31).

O culto ao belo (entende-se por belo um padrão de estética e de comportamento intrinsecamente estabelecido pela sociedade) continuou com o passar da história chegando à Idade Média. A Idade Média, período de grande misticismo, preserva o culto ao belo vindouro das sociedades antigas, bem como a exclusão social dos portadores de deficiência. Neste período a deficiência inicialmente era associada a demônios e bruxaria. Porém esse quadro passou a se alterar com a expansão do Cristianismo para a Europa que exaltava a figura do homem como imagem e semelhança de um Deus perfeito. (GURGEL,2008).

O Cristianismo teve relevante papel na mudança de mentalidade no século IV por passar a primar também pelo direito à vida e condenar abertamente a morte de crianças não desejadas pelos pais devidos a deformações. Os preceitos cristãos ganharam ainda mais força na Europa no século XV ao XVII e alteraram toda a concepção da sociedade quanto ao que era divino e o que era profano. Esses preceitos, apesar de alterarem a visão social sobre a pessoa com deficiência, dando a ela caráter mais assistencialista e fraterno, ao mesmo tempo sufocou a sociedade por condenar condutas naturais do ser humano (LARAIA, 2009).

Apesar de ocorrer essa mudança propiciada pelo cristianismo é deste período que deriva o chamado “Circo dos Horrores”, retratado no filme Freaks. Essa prática de exposição da deficiência em eventos de entretenimento surgiu com a imagem do “bobo da corte”, que se tratava normalmente de uma pessoa com alguma deficiência física utilizada na Idade Média para divertir a nobreza em festas e eventos sociais (L.M.A, 2010).

O renascentismo veio para o homem da Idade Média como uma luz à cultura, à ciência e ao desconhecido e proporcionou às pessoas com deficiência avanços medicinais e invenções que facilitariam a sua inclusão social. O movimento renascentista via a pessoa com deficiência como mão-de-obra a ser habilitada para o trabalho, passou-se a buscar mecanismos que minorassem as dificuldades impostas pela deficiência e diversas invenções como a cadeira de rodas, as muletas, o sistema Braille, os coletes, as bengalas foram fundamentais para a mudança do papel da pessoa com deficiência na sociedade (LARAIA, 2009).

Mesmo havendo as evoluções medicinais propiciando alguma evolução na inclusão social da pessoa com deficiência, foi no período posterior ao renascimento, mais precisamente no séc. XIX, que o “Circo dos Horrores” passou a se popularizar principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Esse tipo de evento expunha pessoas com deficiências físicas, mentais, portadores de doenças graves, e animais com mutações em turnês mundiais (SILVA, 1987).

O Olhar Histórico na Realidade Brasileira.

No Brasil Colônia os deficientes, quando de famílias sem recurso financeiro, viviam em situação de total miserabilidade, eram figuras indesejáveis condenados à mendicância. Aqueles portadores de deficiências vindouros de famílias mais afortunadas estavam condenados a viver enclausurados em suas mansões sendo tratados como enfermos até mesmo quando a deficiência não era por todo incapacitante para o trabalho e para o convívio social devido à vergonha familiar (SILVA, 1987)

No Brasil Império a realidade não foi muito alterada, as pessoas acometidas de alguma paralisia, alguma deformação congênita ou sequelas traumáticas eram uma responsabilidade da própria família. Não havia nesse tempo preocupação estatal e tutela efetiva por parte do Estado em relação a essas pessoas com deficiência, o que acabava condenando os mais humildes a viver em condições desumanas.

Ainda com o advento da república, a tratativa estatal e social das pessoas com deficiência manteve-se quase que inalteradas. Alguns institutos criados no período do império, a exemplo do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, criado por Dom Pedro II em 1854, porém apenas a deficiência auditiva e a visual que recebiam maior subsídio e visibilidade estatal (LANNA JÚNIOR, 2010).

A partir de 1920 foram criadas organizações da sociedade civil que enfocassem outros tipos de deficiências. Nesse período os portadores de deficiências mentais ainda tratados como “loucos” e sujeitos a internações manicomiais e tratamentos desumanos em hospícios começaram a ser estudadas no Brasil, devido aos movimentos pestalozziano7 e apaeno8 (LANNA JÚNIOR, 2010).

Porém ainda que movimentos civis já lutassem pela melhora do tratamento dado às pessoas com deficiência mental, o modelo brasileiro de assistência psiquiátrica era embasado na Constituição Federal de 1934 e trazia como principal alternativa a hospitalização do doente mental em prol da ordem pública. Essa visão só veio a ser alterada com a reforma psiquiátrica que passou a ocorrer vagarosamente no Brasil a partir da década de 70 (GONÇALVES, SENA, 2001).

Desse modo, verifica-se que todas as mudanças quanto à inserção social dos portadores de deficiência foram ocorrendo de modo lento e em consonância com movimento de organizações da sociedade civil e de instituições estatais que trabalharam em prol dessa causa até desembocarem na atual legislação atual.

Por tudo exposto, com a breve analise da trajetória histórica da pessoa com deficiência é notório que, quando lhe dada a chance de viver, na maioria das vezes essas pessoas eram abandonadas a própria sorte, sem assistencialismo estatal ou cuidado familiar. Ainda que os movimentos em prol da pessoa com deficiência ganhassem cada vez mais voz ao logo da história muitas vezes esse grupo encontrava-se condenado a mendicância sem alternativas de trabalho.

A exibição das próprias deficiências, como uma atração de entretenimento, mostrava-se uma alternativa de trabalho a essas pessoas e de algum modo lhes proporcionava uma relativa inclusão social que a eles era rara, sendo esse um assunto a ser melhor explorado adiante.

Sobre a autora
Bianca Reitmann Pagliarini

Graduando em Direito, na Faculdade de Direito e Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAGLIARINI, Bianca Reitmann. A exclusão por trás do riso.: Uma análise sobre o direito ao trabalho da pessoa com deficiência no Brasil e o freak show. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7425, 30 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106765. Acesso em: 26 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!