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Da judicialização da saúde sob a luz dos direitos humanos e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Agenda 26/10/2023 às 16:23

Sumário: RESUMO. INTRODUÇÃO. 1. DO DIREITO À SAÚDE COMO REFLEXO DOS DIREITOS HUMANOS. 1.1 Do conceito de direitos humanos. 1.2 Das gerações/dimensões dos direitos humanos. 1.3 Do direito à saúde nas Constituições Brasileiras. 1.4 Conteúdo jurídico do direito à saúde. 2. DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE. 2.1 Do conceito e precedentes históricos. 2.1.1 Da evolução histórica da saúde pública no Brasil. 2.1.2 Da prestação de saúde ao brasileiro condicionada ao surgimento do Sistema único de Saúde (SUS). 2.2 Das perspectivas sócio-histórica do processo de judicialização da saúde. 2.3 Dos desdobramentos da judicialização da saúde. 2.3.1 Poder Judiciário e o seu desempenho no cumprimento do direito fundamental à saúde. 2.3.2 As barreiras diante a efetivação do direito à saúde: orçamento público e a reserva do possível. 2.4 Da responsabilidade civil do Estado. 2.4.1 Definição e elementos da responsabilidade civil. 2.4.2 Da responsabilidade civil do Estado no fornecimento de medicamentos. 3. JUDICIALIZAÇÃO DA SÁUDE NO CONTEXTO DO STF. 3.1 Da prestação jurisdicional. 3.1.1 Do direito à saúde do indivíduo x o direito à saúde da coletividade. 3.1.2 Do fornecimento ideal de saúde aos cidadãos. 3.2 Do processo da judicialização da saúde comparada ao direito americano. 3.3 Da judicialização da saúde nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal. 3.3.1 Da medida cautelar ao tema 1.234 do STF. 3.3.2 Da ADPF 45 e os recursos extraordinário 855.178, 657.718 e 566.471. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

DAIANY BONFIM XAVIER1

  1. Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Faculdade de Direito (FADIR).

BRUNO MARINI

RESUMO:

O presente artigo abordará o dilema da aplicação simultânea de direitos conflitantes, especialmente os relacionados às garantias fundamentais, na judicialização das políticas públicas, com foco na área da saúde. Isso ocorre quando o Poder Judiciário intervém para garantir direitos que deveriam ser implementados pelo Legislativo e Executivo. A judicialização tem um papel positivo na efetivação de direitos fundamentais, que muitas vezes não são garantidos de maneira espontânea em diversas sociedades, mas é importante impor limites para evitar desequilíbrios entre os poderes públicos. O objetivo da pesquisa é esclarecer essa tese, examinando princípios dos direitos humanos, definindo garantias fundamentais e analisando a interpretação dos tribunais superiores, em especial, a do Supremo Tribunal Federal, nos casos em que os órgãos estatais falham em cumprir sua obrigação: a de assegurar o direito à saúde e outros direitos sociais. Quanto à metodologia, optou-se pelo método dedutivo, com base em análise de fontes bibliográficas, legislativas e jurisprudenciais.

PALAVRAS-CHAVES: Judicialização da Saúde. Direito à Saúde como Direito Humano e Fundamental. Posicionamento do Supremo Tribunal Federal.

ABSTRACT:

This article will address the dilemma of the simultaneous application of conflicting rights, especially those related to fundamental guarantees, in the judicialization of public policies, with a focus on the health area. This occurs when the Judiciary intervenes to guarantee rights that should be implemented by the Legislative and Executive branches. Judicialization plays a positive role in making fundamental rights effective, which are often not guaranteed spontaneously in many societies, but it is important to impose limits to avoid imbalances between public powers. The aim of this research is to clarify this thesis by examining human rights principles, defining fundamental guarantees and analyzing the interpretation of the higher courts, especially the Supreme Court, in cases where state bodies fail to fulfill their obligation to ensure the right to health and other social rights. As for the methodology, we opted for the deductive method, based on an analysis of bibliographical, legislative and jurisprudential sources.

KEYWORDS: Health Judicialization. The Right to Health as a Human and Fundamental Right. Position of the Federal Supreme Court.

INTRODUÇÃO

Existe uma ampla variedade de direitos inerentes à condição humana, pelos quais as pessoas batalham para assegurar e exercer seu direito de desfrutá-los. No entanto, entre esses direitos, destacam-se o direito à saúde e à vida como garantias fundamentais para todos, essenciais não apenas para a existência de outros direitos, mas também para a preservação da liberdade, pois servem como alicerces para a existência de outros direitos.

Conforme estabelecido na Constituição Federal Brasileira, é incumbência do Estado assegurar todas as pessoas tenham acesso aos cuidados de saúde, e esse direito é consagrado por meio de políticas sociais e econômicas que têm como objetivo promover e restaurar o bem-estar dos indivíduos. No entanto, ao examinar o fenômeno da judicialização da saúde no contexto brasileiro, percebe-se que essa prerrogativa não tem sido implementada de maneira

precisa, dada a elevada quantidade de litígios relacionados ao tema supracitado.

Este fenômeno reflete a crescente intervenção do Poder Judiciário na garantia do acesso a tratamentos médicos, medicamentos e procedimentos de saúde, quando os demais poderes do Estado falham em assegurar esses direitos fundamentais. A efetivação do direito à saúde é uma demanda crucial em sociedades modernas, e a sua judicialização desempenha um papel essencial na busca pela plena realização dos princípios dos direitos humanos.

Neste contexto, o Supremo Tribunal Federal, como a mais alta corte de justiça no Brasil, desempenha um papel fundamental na definição de precedentes e na interpretação da Constituição Federal, influenciando diretamente a condução da judicialização da saúde no país. Este tribunal tem sido chamado a deliberar sobre questões complexas que envolvem a alocação de recursos, a equidade no acesso aos serviços de saúde e a relação entre direitos individuais e a sustentabilidade do sistema de saúde público. Além disso, busca-se compreender, neste artigo, as decisões e interpretações do Supremo Tribunal Federal em casos emblemáticos relacionados à saúde, contribuindo para a compreensão deste fenômeno sob uma perspectiva jurídica e de direitos humanos.

Portanto, esta pesquisa pretende lançar luz sobre as implicações da judicialização da saúde e seu impacto na concretização dos direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que reconhece a necessidade de equilibrar essa prática para preservar o Estado Democrático de Direito e a harmonia entre os poderes públicos.

  1. DO DIREITO À SAÚDE COMO REFLEXO DOS DIREITOS HUMANOS

É de entendimento geral, e de direito já constitucionalizado, que o indivíduo desfruta de direitos sociais, civis e políticos. Nesse diapasão, verifica-se que a saúde está inserida no âmbito de um amplo conjunto de questões que abrangem o bem-estar e a qualidade de vida, assim como os vários pilares dos direitos humanos, os quais se encontram em uma intricada teia de conexões e interdependências. A saúde não pode ser analisada separadamente da existência das pessoas e da sociedade em geral, uma vez que quando se examina os direitos humanos essenciais, nota-se que a relação com a saúde transcende a simples redução da vulnerabilidade em termos de problemas de saúde e fatores de risco, posto que o conceito de saúde e o reconhecimento do direito à saúde não permaneceram estáticos ao longo da história. Há sete décadas da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e é essencial compreender que a concepção de saúde, assim como outros direitos humanos, tem evoluído ao longo do tempo.

1.1 Do conceito de direitos humanos

Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, os direitos humanos são direitos inalienáveis do ser humano que possuem uma série de princípios universais que reconhecem e salvaguardam a dignidade intrínseca de cada indivíduo. Eles não só orientam a conduta das pessoas em sociedade, mas também regulam a forma como os seres humanos interagem entre si e estabelecem um padrão para as relações entre os cidadãos e o Estado, delineando as obrigações que o Estado deve cumprir.

No mesmo sentido, a partir do dimensionamento da importância do conteúdo em questão, o doutrinador Cleyson de Moraes Mello explica que:

Os direitos do homem seriam aqueles direitos naturais inerentes à essência humana, que deveriam ser reconhecidos em todos os tempos e em todos os povos e nações do planeta, projetando a imagem de que tais direitos independem de expressa formulação positivada, bem como representam paradigmas de direitos imanentes, de todo e qualquer ser humano, cujas ordens jurídicas, nacionais e internacionais, deveriam reconhecer, eis que valores cravados pelo direito natural. (MELLO, 2021, p. 131-132)

Para bem alcançar o conceito e as garantias fundamentais aproveitadas nos dias de hoje, os ideais de direitos humanos tiveram que atravessar um duradouro caminho até atualidade. Constata-se que no passado, em especial na Idade das Trevas, ou como é comumente chamada de Idade Média, prevalecia a crença na existência de direitos fundamentais que se erguiam acima de todos os outros, fundamentados em mitos e ligados à natureza humana e à fé em divindades. No entanto, ao longo do tempo, a Escola do Direito Natural assumiu o lugar anteriormente ocupado pela cosmologia, trazendo uma perspectiva secular ao campo do jusnaturalismo.

Essa teoria sólida e inabalável sustentava que certos direitos decorrem diretamente da natureza humana, ou seja, não são criados ou concedidos, mas sim identificados por meio da auto-observação dos indivíduos. Essa abordagem desempenhou um papel crucial na consolidação dos direitos das pessoas, com um foco principal nas necessidades fundamentais dos seres humanos. É digno de nota o papel das declarações nacionais que, de acordo com seu significado literal, proclamaram os direitos essenciais dos indivíduos, como o notável exemplo da Declaração Francesa de 1789, que marcou um ponto de viragem histórico nas garantias humanas.

As leis dos direitos humanos, se modificaram e se atualizaram ao longo dos anos. É notável e de grande valia, as consequências da Declaração Francesa para promulgação das garantias fundamentais, entretanto fora com o marco mundial que constituiu diretrizes gerais para a proteção aos direitos da pessoa humana, a chamada Declaração Universal dos Direitos Humanos, que iniciou-se as deliberações de uma série de exigências aos governos, ao mesmo tempo em que estabeleceram restrições rigorosas sobre suas ações. Paralelamente, os cidadãos também carregam consigo responsabilidades inerentes: ao exercerem seus próprios direitos humanos, passou a ter o dever fundamental de respeitar e considerar os direitos de seus semelhantes.

Assim, nenhum governo, grupo ou indivíduo está autorizado a empreender ações que comprometam os direitos de outrem. Essa interligação entre direitos e responsabilidades forma um alicerce crucial para a convivência pacífica e justa na sociedade, assegurando que cada indivíduo seja tratado com dignidade e igualdade, sem qualquer concessão para a violação dos direitos fundamentais de outras pessoas.

Conclui-se, então, pela relevância dos direitos humanos notada, não só, pela grandiosa evolução histórica do Direito, mas por todas as garantias conquistadas pelo labor e luta de várias criaturas ao longo desse processo histórico. O indivíduo, ao longo da busca pela garantia de sua própria existência e pelo progresso da evolução da espécie, estabeleceu normas inalienáveis para a preservação de sua humanidade. Assim, essas diretrizes fundamentais têm como objetivo defender e endossar o respeito mútuo entre os indivíduos, refletindo assim a dignidade inerente à pessoa humana.

1.2 Das gerações/dimensões dos direitos humanos

No que toca definição das dimensões dos Direitos Humanos, foi Karel Vasak o responsável pela primeira citação à ideia de gerações dos direitos humanos. Foi em sua aula inaugural em Estrasburgo, no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem (VASAK, Karel, 1984), que o jurista tcheco-francês elaborou, com base na bandeira francesa, a qual representa a liberdade, igualdade e fraternidade, a divisão das três dimensões dos direitos humanos.

Vasak idealizou a evolução das dimensões de forma gradativa e consensual. O jurista buscou nortear diferenças relevantes que pudesse ser marcadas em cada geração, a fim de delimitar o seu início e fim. George Marmelstein, explicou o significado e o marco simbólico que Karel Vasak utilizou em cada geração, analise:

A primeira categoria de direitos abrange os direitos civis e políticos, fundamentados na ideia de liberdade (liberté), e teve sua origem nas revoluções burguesas. A segunda geração de direitos engloba os direitos econômicos, sociais e culturais, baseados no princípio da igualdade (égalité) e impulsionados pela Revolução Industrial, bem como pelas questões sociais decorrentes desse período. Por fim, a terceira geração compreende os direitos de solidariedade, destacando-se o direito ao desenvolvimento, à paz e à preservação do meio ambiente. Essa tríade é coroada pelo princípio da fraternidade (fraternité), que recebeu proeminência após a Segunda Guerra Mundial, principalmente com a adesão da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 (2008, p. 42).

Desse modo, as liberdades negativas clássicas, assim como são conhecidos os direitos de primeira geração, tratam dos princípios da liberdade, os quais moldam os direitos civis e políticos – direito à vida à liberdade, à propriedade, à liberdade de expressão e de religião etc. Emergiu nos últimos anos do século XVIII e representou uma reação do Estado liberal ao regime Absolutista. Estes princípios dominaram grande parte do século XIX, marcando o início do constitucionalismo no mundo ocidental. Originados das revoluções liberais, como as ocorridas na França e nos Estados Unidos, esses princípios refletiam a busca da burguesia pela preservação das liberdades individuais e pela limitação dos poderes absolutos do Estado - “são poderes de agir reconhecidos e protegidos pela ordem jurídica a todos os seres humanos” (FERREIRA FILHO, 2016, p. 44).

Já a segunda dimensão dos direitos humanos, carrega os direitos econômicos e sociais, que se manifestam na capacidade de reivindicação. Nas palavras de Mello, “a concretização dos direitos de segunda dimensão pressupõe ações positivas do Estado, não bastando a postura meramente absenteísta como na primeira dimensão” (MELLO, 2021, p. 138). Nesse contexto, merece destaque a Constituição Alemã de 1919, também conhecida como a Constituição de Weimar. É crucial ressaltar, nesse ponto, a relevância da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 no que diz respeito à consolidação das duas primeiras gerações e como ponto de partida para a terceira geração. Esta declaração, promulgada pela Organização das Nações Unidas, condensou os direitos fundamentais mínimos para a existência humana em escala global.

Por fim, a terceira geração dos direitos humanos que é conhecida como a dimensão dos direitos de solidariedade abrange um âmbito amplo e crucial no direito internacional. Essa dimensão pode ser vista como uma categoria em evolução, pois sua consolidação como tal ocorreu na modernidade, notadamente com a mencionada Declaração de 1948. Essa declaração introduziu um conjunto de direitos ainda conceituais, mas que refletem a aspiração por uma melhor qualidade de vida e um senso de fraternidade entre os indivíduos. Em linhas gerais, os direitos de solidariedade englobam diversas prerrogativas fundamentais, tais como o direito à autodeterminação dos povos, direito à paz, o direito ao desenvolvimento, o direito ao meio ambiente de qualidade, entre outros. Esses direitos visam, não apenas, à proteção individual, mas também à promoção do bem-estar coletivo e à busca por um mundo mais justo e equitativo.

Portanto, em resumo, as gerações ou dimensões dos direitos humanos representam a evolução dinâmica e progressiva das garantias fundamentais ao longo da história, abrangendo aspectos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Essas dimensões são pilares essenciais para a promoção e proteção dos direitos humanos em busca de uma sociedade mais justa e igualitária.

1.3 Do direito à saúde nas Constituições Brasileiras

Para que nos dias de hoje a saúde pudesse ser um direito constitucionalizado, foi necessário percorrer caminhos laboriosos e austeros. Nem sempre o indivíduo gozou de um sistema “igualitário” de saúde, as mazelas enfrentadas ao longo do Brasil Império, e até mesmo nos tempos posteriores, foram rijos e dificultosos para a população de baixa renda, mais precisamente os negros, pobres, prisioneiros e indígenas.

No contexto histórico do Brasil, até as primeiras décadas do século XX, a assistência médica estava predominantemente vinculada a relações privadas, uma vez que a disponibilidade de profissionais de saúde era escassa. Como resultado, o acesso aos serviços de saúde estava reservado à elite, restrito a instituições particulares como hospitais, clínicas e consultórios médicos. Isso, por sua vez, criou uma disparidade significativa no acesso à saúde, com a maioria da população brasileira incapaz de arcar com os custos desses serviços.

Consequentemente, para aqueles que não tinham recursos financeiros, uma parcela considerável da população brasileira, a busca por cuidados de saúde muitas vezes envolvia a utilização de práticas locais, como o curandeirismo. Essas práticas tradicionais de cura desempenhavam um papel importante no atendimento às necessidades de saúde das comunidades, oferecendo alternativas acessíveis e culturalmente relevantes para aqueles que não podiam pagar pelos serviços médicos privados.

Desse modo, a fim de alcançar a saúde como um direito positivado, foi essencial que mudanças ocorressem nas legislações do país. Assim, as Constituições Brasileiras refletiram, ao longo dos anos, a preocupação do Estado brasileiro em garantir o acesso a serviços de saúde adequados e de qualidade para todos os seus cidadãos. O direito à saúde no Brasil está enraizado na Constituição Federal de 1988, que representa a atual Constituição do país, mas também é importante entender como esse direito evoluiu ao longo do tempo nas constituições anteriores.

Ao longo do tempo, o Brasil contou com algumas Constituições que tiveram papel fundamental para a consolidação do que hoje está consolidado e constitucionalizado na Carta Magna de 1988. Assim, a primeira Constituição do Brasil como nação independente, foi a Constituição de 1824, embora não tenha mencionado especificamente o direito à saúde, estabeleceu a base para o sistema de saúde ao atribuir ao Imperador a responsabilidade de cuidar da saúde pública e da beneficência. Posteriormente, em 1891, o Estado brasileiro contou com a primeira Constituição republicana, essa não mencionou explicitamente o direito à saúde, mas tratou de questões de saúde pública, como a competência dos estados para legislar sobre saúde e a criação do cargo de Diretor Geral da Saúde Pública. Foi só com a Constituição em 1934, que houve, verdadeiramente, a menção acerca do direito à saúde. Assim, o artigo 138 deste diploma legal estabeleceu que: “a saúde e a assistência pública são deveres do Estado” (PLANALTO, 2023), marcando um passo importante na evolução dos direitos relacionados à saúde.

Já as constituições de 1937, promulgada durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, a de 1946, marcada pela queda do Estado Novo, e a de 1967 a qual fora registrada em pleno regime militar, não trouxeram nenhuma novidade significativa no que diz respeito ao direito à saúde, mantendo o artigo 138 da Constituição de 1934, reafirmando o papel do Estado na promoção da saúde e assistência pública. Enfim, foi somente com a Constituição de 1946 que a saúde pública começou a ser tratada de maneira mais sistemática, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e a formulação de políticas de saúde mais abrangentes. A Constituição de 1967, por sua vez, estabeleceu a saúde como um direito social, e a de 1988 consolidou essas conquistas ao criar o Sistema Único de Saúde (SUS), que se tornou um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo.

Nesse contexto, foi, somente, com a Constituição de 1988 que houve avanços consideráveis em relação ao direito à saúde. Tal mudança já é evidenciada no artigo 196 desta Constituição onde estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (PLANALTO, 2023). A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) também foi um marco importante na garantia desse direito, assim se confirma os estudos de Fernando Mussa Abujamra Aith acerca do direito e relevância da saúde, veja:

O entendimento de que a saúde foi reconhecida no Brasil, como um Direito humano social, dotado de disposição constitucional nos artigos 6º e 196, mas também sujeito a disposição do artigo 5º, §2º da Carta Magna, que esclarece: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa seja parte (AITH, FERNANDO MUSSA ABUJAMRA, 2006).

Assim, o direito à saúde nas Constituições Brasileiras representa um compromisso histórico e progressivo do Estado com o bem-estar e a qualidade de vida de seus cidadãos. Contudo, apesar dos avanços legislativos, ainda existem desafios a serem superados para efetivar plenamente o direito à saúde no Brasil. Questões como a desigualdade no acesso aos serviços de saúde, a falta de investimento adequado e a burocracia no sistema de saúde continuam a ser obstáculos para a concretização desse direito.

Em conclusão, o direito à saúde nas Constituições do Brasil representam um marco importante na história do país, refletindo o compromisso do Estado com a saúde e o bem-estar de seus cidadãos. No entanto, para que esse direito seja plenamente realizado, é necessário um esforço contínuo de todos os setores da sociedade, bem como uma vigilância constante sobre o cumprimento das políticas de saúde estabelecidas. Somente dessa forma se pode alcançar um sistema de saúde verdadeiramente eficiente e igualitário para todos os brasileiros.

2 Conteúdo jurídico do direito à saúde

Ao passo do que contorna o conteúdo jurídico do direito à saúde, como parte dos direitos fundamentais do ser humano, possui um sólido conteúdo jurídico que se baseia não apenas em preceitos constitucionais, mas também em tratados internacionais e leis infraconstitucionais. No contexto brasileiro, o direito à saúde é reconhecido como um dos pilares do sistema de proteção social, sendo garantido principalmente pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990).

A lei 8.080 regula, em todo o território do país, as atividades e cuidados relacionados à saúde, realizados de forma individual ou colaborativa, de maneira contínua ou ocasional, por indivíduos ou organizações com personalidade jurídica, sejam elas de natureza pública ou privada. In verbis traz o artigo 2°, § 1º e 2º desse diploma legal, as considerações e fundamentos do direito à saúde:

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.

Esses dispositivos estabelecem a obrigação do Estado de promover políticas públicas que visem à prevenção, promoção, recuperação e reabilitação da saúde, assegurando o acesso integral e gratuito a serviços de saúde, atrelado, ainda, ao que é posto no diploma legal de 1988. Nesse sentido, foi essencial a formação do Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Carta Mãe e regulamentada pela Lei nº 8.080/1990, é o principal instrumento jurídico que concretiza o direito à saúde no Brasil.

O SUS é um sistema público de saúde que visa garantir o acesso universal e igualitário a ações e serviços de saúde, financiado com recursos públicos e gerido de forma descentralizada, em parceria com os estados e municípios.

Além das normas constitucionais e da legislação específica, o direito à saúde no Brasil também é fortalecido pela adesão a tratados internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Esses tratados estabelecem que o direito à saúde é parte integrante dos direitos humanos e que os Estados têm a responsabilidade de garantir sua efetivação.

Desse modo, deve ser apreciado, também, conforme salientado por Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo, valendo-se das contribuições de João Loureiro, a saúde é reconhecida como um interesse tutelado pelo ordenamento jurídico, revelando-se por meio dos atributos a seguir delineados:

[...] uma forte interdependência, que aponta tanto para a existência de zonas de convergência e superposição com outros bens (direitos e deveres) que constituem também objeto de tutela autônoma (privacidade, moradia, trabalho, alimentação, entre outras), mas que também reclama seja considerada tanto a existência de uma fronteira (seguramente não estanque) entre os diversos males que afetam a saúde (ações da própria pessoa e de terceiros, riscos coletivos provocados pelo Homem e catástrofes naturais) e as medidas para conservação e proteção (poderíamos acrescentar aqui a promoção) da saúde (SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner, 2007, p. 198).

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Já para o doutrinador Schulze, é dever do Estado o cumprimento de determinados mandamentos referentes ao direito à saúde, bem como:

i) o princípio da dignidade humana; ii) o direito ao mínimo existencial em saúde, que se refere a “um conjunto de bens indispensáveis para satisfação dos seus direitos fundamentais primários”; iii) a vedação do retrocesso social, que impede que haja redução da atuação estatal que já tenha sido consolidada socialmente; e iv) o dever de progresso, que diz respeito à melhoria qualitativa e quantitativa das prestações de saúde (SCHULZE, 2019, p. 29).

O conteúdo jurídico do direito à saúde, portanto, abrange, não apenas, o acesso a serviços médicos, mas também engloba ações de prevenção, promoção e proteção da saúde, a garantia de medicamentos e tratamentos necessários, o respeito à dignidade humana no atendimento à saúde, a universalidade e a equidade no acesso aos serviços de saúde, entre outros aspectos.

Em resumo, o conteúdo jurídico do direito à saúde no Brasil é robusto e abrangente, refletindo o compromisso do Estado com o bem-estar e a qualidade de vida de seus cidadãos. No entanto, a efetivação desse direito requer não apenas uma base legal sólida, mas também a implementação de políticas públicas eficazes e o monitoramento constante para garantir que todas as pessoas tenham acesso adequado aos serviços de saúde, independentemente de sua condição social, econômica ou geográfica.

3 DA JUDICIALIZAÇÃO DA SÁUDE

O procedimento da judicialização da saúde no Brasil obteve maior destaque e funcionalidade, com a Constituição de 1988 que marcou um aumento notável da intervenção do Poder Judiciário em relação ao acesso à saúde no país. Isso se traduziu em uma crescente utilização de mandados judiciais para garantir a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos, consultas médicas, internações hospitalares e o fornecimento de insumos médicos e cirúrgicos. Portanto, a judicialização da saúde busca pelo reconhecimento da saúde como um direito fundamental, recorrendo ao Poder Judiciário para garantir a efetivação desse direito por meio de decisões judiciais.

3.1 Do conceito e precedentes históricos

A judicialização da saúde é um fenômeno complexo e multifacetado que tem ganhado destaque nas discussões jurídicas e de políticas públicas nas últimas décadas. Ela se refere ao uso frequente do sistema judicial por indivíduos e grupos que buscam garantir o acesso a tratamentos médicos, medicamentos, procedimentos cirúrgicos e outros serviços de saúde que, por diversos motivos, não foram disponibilizados de forma adequada pelo sistema público ou privado de saúde.

Porém, a complexidade e extensão do procedimento de judicialização da saúde, traz a necessidade de uma ferramenta legítima para garantir o acesso à saúde, especialmente em casos de extrema necessidade, em que a vida e a dignidade dos pacientes estão em jogo. Assim, nas palavras do doutrinador Luís Roberto Barroso evidencia-se que:

A judicialização é um fato, uma circunstância do desenho institucional brasileiro. Já o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente, ele se instala – e este é o caso do Brasil– em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. (...) o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo regras específicas de conduta a partir de enunciados vagos (princípios, conceitos jurídicos indeterminados) (BARROSO, 2018, p. 235)

Nesse sentido, esse fenômeno reflete uma série de desafios enfrentados pelo sistema de saúde, seja ele público ou privado, em diferentes países, incluindo o Brasil. Entre os principais fatores que contribuem para a judicialização da saúde estão a escassez de recursos, a falta de acesso a tratamentos de alto custo, a demora no atendimento, a má gestão de recursos públicos e a necessidade urgente de tratamento de determinadas doenças.

Explorando a evolução histórica da judicialização da saúde, é importante observar que não existe um consenso sobre o momento exato em que esse fenômeno teve origem. No entanto, é evidente que sua trajetória está intrinsecamente ligada ao surgimento do Estado de Bem-Estar Social. Nota-se que até a Primeira Guerra Mundial, o Estado mantinha uma postura de intervenção mínima nas relações privadas, mas foi com a chegada do Estado de Bem-Estar Social que os direitos sociais passaram a ser implementados de forma mais expressiva.

Por outro lado, foi possível acompanhar que a largada dada para um futuro conhecimento sobre a procedimentalização da judicialização da saúde só foi provável na década de 1970, quando emergiu o movimento da reforma sanitária. Este movimento ganhou força no contexto da luta contra a ditadura no início da década de 1970 e foi rotulado como o conjunto de ideias voltadas para as mudanças e transformações necessárias no campo da saúde. É importante ressaltar que essas mudanças não visavam apenas a reforma em todo o setor de saúde, mas concentravam-se principalmente na melhoria das condições de vida da população brasileira.

Em suma, as ações resultantes dessas ideias tiveram um impacto significativo, culminando na inserção do direito à saúde como um dos pilares da Constituição de 1988. Dessa maneira, entende-se que a judicialização da saúde é um fenômeno complexo que reflete as lacunas e desafios do sistema de saúde. Portanto, encontrar um equilíbrio entre o direito à saúde e a sustentabilidade dos sistemas de saúde é fundamental para garantir que todos os cidadãos tenham acesso a tratamentos médicos necessários e para promover a justiça social no âmbito da saúde.

3.1.1 Da evolução histórica da saúde pública no Brasil

É de compreensão geral que assuntos como saúde e bem-estar social nunca foram pautas tão relevantes em determinados governos brasileiros. São 518 anos de história brasileira, contada a partir da chegada dos grandes navios portugueses no território nacional. Antes da chegada dos europeus ao território brasileiro, há centenas de anos, os povos indígenas já o habitavam. Embora já enfrentassem enfermidades, a situação se agravou, consideravelmente, com a colonização portuguesa, especialmente devido ao fenômeno amplamente estudado conhecido como “doença de branco”.

Grande era o medo e o pensamento de não conseguir explorar e colonizar essa terra, que tentaram utilizar de diversas práticas e ideias que pudessem auxiliar na cura dessas mazelas. Veja o que diz Bertolli Filho:

A guerra, o isolamento e a doença colocavam em perigo o projeto de colonização e exploração econômica das terras brasileiras. Diante do dilema sanitário, o Conselho Ultramarino português – órgão responsável pela administração das colônias – criou ainda no século XVI os cargos de físico- mor e cirurgião-mor. Seus titulares foram incumbidos de zelar pela saúde da população sob domínio lusitano. Essas funções, no entanto, permaneceram por longos períodos sem ocupantes no Brasil. Eram raros os médicos que aceitavam transferir-se para cá. Desestimulados pelos baixos salários com os perigos que enfrentariam (BERTOLI FILHO, 2008, p. 5)

Ao longo dos 389 anos que compreenderam o período colonial e imperial, observa-se uma negligência significativa no que diz respeito à saúde pública. Não existiam estratégias de políticas de saúde bem definidas, nem sequer a construção de instalações médicas voltadas para a população. Além disso, o acesso a tratamentos e cuidados médicos estava estritamente relacionado à estratificação social: aqueles em situação de pobreza e escravizados enfrentavam condições de vida extremamente precárias e tinham poucas chances de sobreviver às doenças que assolavam a época. Em contraste, as pessoas abastadas e colonizadores brancos que possuíam terras e propriedades desfrutavam de acesso mais amplo a médicos e medicamentos da época, o que aumentava suas perspectivas de sobrevivência.

Seguindo nesse sentido, a evolução histórica da saúde pública no Brasil é uma narrativa marcada por desafios e avanços significativos ao longo dos séculos. Destaca-se os principais marcos dessa trajetória:

- Império (1822-1889): Iniciou-se a construção da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1808, onde marcou o início da formação de profissionais de saúde no Brasil. No entanto, a atenção à saúde pública permaneceu precária e voltada principalmente para a elite.

- República Velha (1889-1930): Durante esse período, surgiram as primeiras iniciativas de saúde pública, incluindo campanhas de vacinação e medidas de saneamento. No entanto, o sistema de saúde continuava desigual e subfinanciado.

- Era Vargas (1930-1945): Estabeleceu o Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1930, consolidando a preocupação com a saúde pública. Foram implementadas políticas de saúde mais abrangentes e a criação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) em 1940.

- Pós Segunda Guerra Mundial (1945-1964): Houve um aumento significativo nos investimentos em saúde, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS, estabelecido em 1988, é um marco importante, garantindo o acesso universal e gratuito aos serviços de saúde.

- Reforma Sanitária (1970): Foi um marco na evolução da saúde pública no Brasil. Representou um movimento que buscou a reestruturação do sistema de saúde, com ênfase na universalidade, integralidade e equidade no acesso aos serviços de saúde. Surgiu durante a luta contra a ditadura no início da década de 70, e foi o movimento essencial para a criação do Sistema Único de Saúde. A expressão foi utilizada para descrever um conjunto de ideias voltadas para reformas essenciais na área da saúde, principalmente na melhoria das condições de vida da população brasileira.

- Décadas mais recentes: O país enfrentou desafios significativos, incluindo epidemias como o HIV/AIDS e a dengue, além de questões de infraestrutura e financiamento insuficiente. No entanto, houve avanços notáveis, como a expansão da atenção básica e a implementação de políticas de combate à desnutrição e ao tabagismo.

- Desafios atuais: O SUS continua a enfrentar desafios relacionados à infraestrutura, financiamento e desigualdades regionais no acesso aos serviços de saúde. Além disso, a pandemia de COVID-19 revelou lacunas na preparação do sistema de saúde.

Em resumo, a evolução da saúde pública no Brasil é uma jornada complexa, marcada por desafios persistentes e avanços significativos. A criação do SUS em 1988 foi um passo crucial para garantir o acesso à saúde para todos os cidadãos, embora desafios atuais e futuros exijam contínuos esforços de aprimoramento do sistema de saúde do país.

3.1.2 Da prestação de saúde ao brasileiro condicionada ao surgimento do Sistema único de Saúde (SUS)

No que concerne à prestação de cuidados de saúde à população brasileira, é evidente que um marco fundamental ocorreu na época da promulgação da Constituição de 1988. Nesse momento, foi estabelecido o modelo básico de organização para os serviços de saúde pública no Brasil. Esse modelo adotou um sistema único, caracterizado pela descentralização, com a responsabilidade de garantir de forma abrangente o acesso à saúde, conforme estabelecido nos incisos I a III do artigo 198 da Constituição do Brasil:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Parágrafo único – o sistema único de saúde será financiado, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes (PLANALTO, 2023).

Frente a essa necessidade, foi imperativo estabelecer regulamentações que delineassem as responsabilidades previstas na Constituição Federal, detalhando o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Em consonância com as disposições do Artigo 200 da CF, em 1990, a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990) foi promulgada, fornecendo um arcabouço específico para a proteção, promoção, recuperação, organização e operação das atividades relacionadas à saúde.

Esclarece a funcionalidade do Sistema único de Saúde no art. 200 da CF, explicando que:

Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;

III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;

IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico;

V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico;

VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;

VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;

VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

A criação do Sistema Único de Saúde, teve seu surgimento graças a diversos processos e lutas históricas, mas, principalmente, pelo movimento de reforma sanitária que ocorreu no ano de 1970. O marco desse movimento foi gigante, e permitiu que estudos e procedimentos posteriores pudessem constitucionalizar esse sistema, e em seguida promulgar uma lei própria de definição a ele – Lei Orgânica de Saúde (LOS) 8.080/90. Aprecie o que diz Maria Valéria Costa Correia:

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi resultado de lutas sociais engendradas, na época, pelo Movimento da Reforma Sanitária, que trazia bandeiras contrárias ao “modelo médico assistencial privatista da previdência social que beneficiava o setor privado e só garantia o direito à saúde a quem trabalhava com carteira assinada”. (CORREIA, 2015).

Enfim, a saúde pública no Brasil se constitui em um complexo sistema de ações e serviços prestados por entidades de esfera federal, estadual e municipal, todas sob a responsabilidade do Estado. No entanto, é inegável que a saúde pública brasileira enfrenta desafios significativos, incluindo a escassez de recursos financeiros, a falta de leitos, a limitação na quantidade de médicos e profissionais de saúde em relação à demanda, entre outros problemas. Porém, tem se buscado, incessantemente, cumprir os princípios fundamentais de promoção, proteção e recuperação da saúde, visando garantir o acesso equitativo e igualitário a todos os cidadãos brasileiros, através do desenvolvimento de ações voltadas para esse fim. Em virtude disso, qualquer indivíduo possui o direito de buscar atendimento no sistema público de saúde do Brasil.

3.2 Das perspectivas sócio-histórica do processo de judicialização da saúde

É notável que o processo de judicialização da saúde no país se tornou mais proeminente nas últimas décadas, desencadeando uma série de desdobramentos que abrangem diversos aspectos do sistema de saúde e do sistema jurídico do país.

Abordar o fenômeno da judicialização da saúde requer, invariavelmente, uma análise aprofundada da interação entre o Estado e a sociedade civil, com ênfase na salvaguarda dos direitos humanos, englobando direitos civis, políticos e sociais. No contexto específico deste estudo, é necessário explorar como tem se desenrolado o acesso aos serviços de saúde, em especial a disponibilidade de medicamentos e tratamentos médicos.

Conforme mencionado anteriormente, nas décadas mais recentes, certas doenças tomaram proporções grandiosas, as quais fizeram com que o país e seu governo se voltassem para uma análise sobre a funcionalidade da prestação de saúde no Brasil. Evidencia-se a relevância dessa questão durante a década de 1990, quando pessoas afetadas pelo vírus do HIV iniciaram demandas judiciais em busca de acesso a medicamentos e procedimentos médicos, confrontando as instituições públicas.

Tal acontecimento merece ser abordado, visto que este movimento, impulsionado por pacientes com HIV/Aids, foi respaldado pela Constituição, que estabelece o direito fundamental à saúde e atribui ao Estado a responsabilidade de fornecer assistência médica gratuita, seguindo os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), que incluem igualdade, universalidade e integralidade. Além disso, essa circunstância permitiu a divisão de responsabilidades entre as três esferas governamentais: União Federal, Estados e municípios, conforme contido no diploma legal de 1988. Assim, justificou-se o entendimento e a necessidade dessa repartição nos seguintes termos:

Nos primeiros anos da década de 1990, para assegurar o direito à saúde, a grande procura do Judiciário se dava em função do acesso aos medicamentos como os antirretrovirais. Essa busca provocou no poder público a criação da política pública de distribuição gratuita de medicamentos. Com o surgimento da Lei nº 9.313/96, criada para garantir a distribuição gratuita e universal de antirretrovirais, esperava-se a diminuição da discricionariedade dos juízes e, consequentemente, a diminuição da interferência do Poder Judiciário no campo da saúde. No entanto, o que se observou foi justamente o oposto. Se, antes, o artigo 196 era considerado uma norma programática, a partir do ano de 1997, o mesmo texto passou a ser reconhecidamente uma norma constitucional de plena eficácia. Isso, no entanto, não é um consenso no meio jurídico (OLIVEIRA, et.al, 2015, p. 526).

Nesse sentido, é crucial examinar como as decisões judiciais afetam o sistema de saúde, incluindo seus recursos financeiros e sua capacidade de atender às necessidades da população. Além disso, é importante refletir sobre as possíveis consequências de longo prazo da crescente judicialização da saúde, tanto em termos de custos quanto de acesso equitativo aos serviços médicos.

Tal preocupação deve ser levada a sério, uma vez que a concretização de um aspecto específico do direito à saúde através de ações judiciais de pessoas com HIV/Aids, e o sucesso dessas ações, incluindo avanços nas políticas públicas de assistência a esse grupo, tornou-se um modelo para a sociedade civil. Isso resultou em um notável aumento no número de processos judiciais relacionados à saúde, abrangendo tanto questões individuais quanto coletivas. Dessa maneira, é evidente que, após a promulgação da Constituição de 1988, o poder judiciário desempenhou um papel mais proeminente na afirmação de direitos sociais. Neste sentido, Anota Vânia Morales Sierra destaca que:

A Constituição de 1988 atendeu a esta demanda ao incorporar recursos, como a ação civil pública, o mandado de segurança, o mandado injunção, que podem ser utilizados para pressionar o governo e executar medidas em favor do cumprimento da lei (SIERRA, 2011, p.258).

A análise do fenômeno da judicialização da saúde vai além das questões legais. Avaliar essa dinâmica implica considerar não apenas as demandas legais que surgem, mas também as implicações mais amplas para a sociedade e o Estado.

Portanto, a análise do processo de judicialização da saúde não se limita à esfera legal, mas abrange uma avaliação completa das dinâmicas sociais, políticas e de saúde que moldam essa questão complexa e em constante evolução.

3.3 Dos desdobramentos da judicialização da saúde

Ao se questionar sobre os desdobramentos do processo de judicialização da saúde, são vários os questionamentos que são tragos à tona. O principal deles que merece ser elucidado, diz respeito as diferentes visões e entendimentos que os doutrinadores e historiadores possuem sobre o assunto.

Por se tratar de um tema discutível, alguns literatos como Sônia Fleury (2012), enfatiza que até o momento, a judicialização da saúde no Brasil foi percebida como uma intervenção inadequada na capacidade de planejamento e execução do Poder Executivo, bem como uma potencial ameaça às ações dos administradores locais. A autora argumenta que essa perspectiva está ficando obsoleta e sustenta que, na atualidade, a judicialização se apresenta como uma importante aliada do Sistema Único de Saúde (SUS).

Por outro lado, há doutrinadores que acreditam que o processo da judicialização dificulta e gera uma luta desleal, se vista pela ótica daqueles que não usufruem da procedimentalização legal, e que aguardam, muitas vezes, pelo atendimento inicial para tratar o seu problema. No posicionamento de Miriam Ventura (2010), esse procedimento questiona a validade dos princípios de universalidade e equidade. Isso acontece porque a ferramenta em questão não garante um acesso verdadeiramente universal, pois tende a priorizar as necessidades de alguns em detrimento das de outros, sem levar em devida consideração as diferentes circunstâncias individuais. Dessa forma, o princípio da equidade, responsável por orientar as ações e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), tende a ser questionado e desafiado, já que não cumpre com seu papel fundamental.

Miriam Ventura, levanta uma questão de grande valia, posto que tenta buscar uma tática a fim de conciliar os direitos fundamentais constitucionalizados, com o acesso coletivo a prestação de saúde, para que assim não apresente uma discrepância evidente entre o aumento contínuo das demandas na área de saúde e a escassez de recursos disponíveis a nível estadual para atender às necessidades dos cidadãos. Apresenta a autora que:

O grande desafio é pensar na judicialização da saúde como estratégia legítima, porém a ser orquestrada com outros mecanismos de garantia constitucional de saúde para todos. As demandas judiciais não podem ser consideradas como principal instrumento deliberativo, pois, de fato, para o alcance da justiça, deve ser adotado um conjunto de ações por meio das quais se busque implementar as diretrizes constitucionais (VENTURA et al, 2010, p.96).

De modo geral, os autores acreditam, em consenso, que a ideia da judicialização da saúde reserva alguns problemas, já que não atende às demandas e aos indivíduos de maneira igualitária. Nesse sentido, acreditam que:

De maneira geral, os estudos sobre a judicialização da saúde enfatizam mais fortemente os efeitos negativos deste tipo de demanda na governabilidade e gestão das políticas e ações de saúde. Uma das principais justificativas é que este tipo de intervenção no SUS aprofundaria as iniquidades no acesso à saúde, privilegiando determinado segmento e indivíduos, com maior poder de reivindicação, em detrimento de outros, na medida em que necessidades individuais ou de grupos determinados seriam atendidas em prejuízo a necessidades de outros grupos e indivíduos (BARATA; CHIEFFI, 2009; MARQUES; DALLARI, 2007; VIEIRA; ZUCCHI, 2007 apud VENTURA et al, 2010).

É de conhecimento de muitos, principalmente pela exposição midiática, que no Brasil a preponderância de ações judiciais na esfera da saúde está vinculada, sobretudo, à assistência farmacêutica e aos procedimentos médicos. Tais litígios surgem principalmente por dois motivos distintos: o primeiro deles consiste na busca pela inclusão de um medicamento específico na lista do SUS, enquanto o segundo está relacionado à situação em que um medicamento já faz parte dessa lista, mas, devido a falhas na gestão, não é disponibilizado à população.

Nesse sentido, no intuito de diminuir os problemas enfrentados com a judicialização em razão da deficiência e defasagem encontrada no campo da saúde, foram empreendidas iniciativas visando apoiar a reestruturação e reorganização do SUS, como a realização da Audiência Pública da Saúde nº 04 em 2009, convocada pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Essa audiência permitiu a participação de diversos segmentos, incluindo a sociedade civil organizada -representantes de usuários e profissionais de saúde, bem como instituições de ensino e pesquisa, gestores da saúde, operadores de direito e outros interessados, com o propósito de apresentar diversas perspectivas sobre o fenômeno da judicialização da saúde.

Como resultado dessa audiência, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu uma recomendação no ano seguinte, fornecendo orientações aos tribunais brasileiros sobre como o sistema judiciário deve abordar os casos relacionados à saúde. Por fim, é notória a necessidade de tais recomendações, posto que há uma árdua sobrecarga no sistema judiciário, já que necessitam de soluções eficazes que requerem políticas transparentes, eficiência na gestão de recursos, e diálogo entre todas as partes envolvidas, a fim de equilibrar direitos individuais e a sustentabilidade do sistema de saúde.

3.3.1 Poder Judiciário e o seu desempenho no cumprimento do direito fundamental à saúde

O Poder Judiciário brasileiro desempenha um papel crucial na garantia do direito fundamental à saúde, assegurado pela Constituição Federal de 1988. Esta importante atribuição inclui a resolução de conflitos relacionados ao acesso a tratamentos médicos, medicamentos e serviços de saúde. O desempenho do Poder Judiciário nesse contexto é multifacetado e apresenta desafios e benefícios.

Um dos principais méritos do Judiciário na proteção do direito à saúde é a sua capacidade de oferecer uma via de recurso para indivíduos que se sentem prejudicados pela falta de acesso aos cuidados médicos. Isso possibilita que cidadãos recorram aos tribunais quando confrontados com negativas de planos de saúde, atrasos no fornecimento de medicamentos ou a falta de acesso a procedimentos médicos essenciais. Essa atuação contribui para corrigir desigualdades e pressionar os órgãos públicos e privados a cumprir suas obrigações na área da saúde.

Em contrapartida, o uso excessivo de ações judiciais para obter tratamentos médicos e medicamentos pode sobrecarregar o sistema de saúde e gerar desigualdades na alocação de recursos. Isso ocorre porque nem todos os cidadãos têm recursos para ingressar com ações judiciais, criando uma disparidade no acesso à justiça e aos cuidados médicos.

O desempenho do Poder Judiciário na área da saúde também pode ser influenciado por questões políticas e orçamentárias. Os tribunais dependem de recursos públicos para operar eficazmente, e a falta de financiamento pode prejudicar a capacidade do Judiciário em lidar com questões de saúde de forma eficiente. Assim, para otimizar o desempenho do Poder Judiciário no cumprimento do direito fundamental à saúde, é essencial uma abordagem equilibrada. Isso inclui medidas como a promoção da conciliação e da mediação para resolver conflitos antes que cheguem aos tribunais, a garantia de financiamento adequado para o sistema judiciário e a revisão constante das políticas de saúde para evitar a judicialização excessiva.

Em resumo, o Poder Judiciário desempenha um papel fundamental na proteção do direito à saúde, oferecendo um recurso para indivíduos que enfrentam obstáculos no acesso aos cuidados médicos. No entanto, é necessário equilibrar essa atuação para evitar o excesso de judicialização e garantir a eficiência do sistema de saúde como um todo.

2.3.2 As barreiras diante a efetivação do direito à saúde: orçamento público e a reserva do possível

No que tange a efetivação do direito à saúde, o Brasil tem enfrentado desafios complexos sendo dois deles particularmente cruciais: o orçamento público e o princípio da reserva do possível. Esses elementos frequentemente se interligam na busca por garantir o acesso universal a serviços de saúde de qualidade.

O orçamento público é um fator central na efetivação do direito à saúde. O Estado é o principal provedor de serviços de saúde e, para oferecer um sistema de saúde abrangente, precisa alocar recursos financeiros adequados. No entanto, muitas vezes, o orçamento destinado à saúde é insuficiente para atender às crescentes demandas da população, especialmente em países com sistemas de saúde subfinanciados.

Em contrapartida, em diversas circunstâncias, o Estado argumenta que os recursos obtidos são limitados, o que restringe as opções e a capacidade de atuação do governo em setores específicos, assim isso têm resultado na priorização de alguns direitos em detrimento de outros. Nesse contexto, surge a concepção de um sistema que o autor Scaff (2018) caracterizou como "vasos comunicantes". Nesse sistema, os recursos arrecadados estão disponíveis para os governantes, que tomam decisões sobre as principais prioridades no uso dos gastos públicos por meio da legislação orçamentária.

Seguindo o apresentado, é atrelado a todo rol orçamentário o princípio da reserva do possível, que nada mais é do que uma doutrina jurídica importante que reconhece que os recursos do Estado são limitados. Isso significa que o Estado não pode ser obrigado a realizar gastos excessivos em detrimento de outras áreas igualmente importantes. A reserva do possível reconhece que há uma limitação prática na capacidade do Estado de atender todas as demandas por serviços de saúde, educação e outros direitos sociais de forma imediata e plena.

Assim, as demandas sociais devem estar em consonância com a capacidade orçamentária do país e sua disponibilidade de recursos, de modo que, como afirmado por Scaff (2018, p. 296), "a reserva do possível é considerada como uma limitação prática e real à realização de determinado direito ou desejo". É nesse contexto que a questão se torna mais complexa, quando a disponibilidade financeira se torna um obstáculo à aplicação da norma constitucional.

No que diz respeito ao conceito desse princípio, se evidencia que a disponibilidade dos recursos financeiros do Estado para efetivar a concretização dos direitos sociais depende das escolhas políticas, que são organizadas no contexto do orçamento público. Sobre esse assunto, Barcellos (2011, p. 277) oferece uma explicação adicional:

De forma geral, a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. (...) a reserva do possível significa que, para além das discursões sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta –, é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos.

Flavio Martins, traz ainda:

A reserva do possível passa a ser essencialmente entendida como constituindo essa limitação imanente a este tipo de direitos: mesmo quando a pretensão de prestação é razoável, o Estado só está obrigado a realizá-la se dispuser dos necessários recursos, daí a designação mais expressiva de reserva do financeiramente possível. [...] a reserva do possível invade o próprio plano jurídico, é o direito que está intrinsecamente condicionado pela ‘reserva do possível’ e não apenas as condições da sua efetividade social ou da sua realização otimizada. E a reserva do possível invade o próprio plano normativo do direito social quando seu objeto a título principal se traduza, como dissemos, numa prestação financeira ou numa prestação fática direta e imediatamente convertível em prestação financeira (MARTINS, 2020, p. 185).

Desse modo, então, se nota que há algumas barreiras, e essas podem criar tensões significativas entre o direito à saúde e as restrições financeiras do Estado. Por um lado, a falta de financiamento adequado pode resultar em sistemas de saúde sobrecarregados, falta de recursos médicos e longos tempos de espera para tratamentos. Por outro lado, a pressão para alocar recursos adicionais para a saúde pode competir com outras necessidades sociais, como educação, segurança e infraestrutura.

Enfim, a busca por um equilíbrio entre a efetivação do direito à saúde e as restrições orçamentárias é um desafio contínuo para os governos. Para enfrentar essa questão, é essencial uma abordagem estratégica que envolva a alocação eficiente de recursos, a priorização das necessidades mais urgentes e a busca por fontes alternativas de financiamento, como parcerias público-privadas.

3.4 Da responsabilidade civil do Estado

A responsabilidade civil do Estado no âmbito da judicialização da saúde envolve o dever do Estado de fornecer serviços de saúde adequados e, quando necessário, arcar com os custos associados a ações judiciais. Para lidar com essa questão complexa, é essencial encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais à saúde e a sustentabilidade do sistema de saúde como um todo, através de políticas públicas eficazes e medidas de prevenção de litígios excessivos.

Assim, é importante destacar que a judicialização da saúde pode criar um dilema para o Estado, pois, por um lado, busca atender às necessidades individuais dos requerentes, mas, por outro, enfrenta desafios orçamentários e de alocação de recursos. Desse modo, então, isso pode resultar em tensões financeiras significativas e impactar a capacidade do Estado de atender a todas as demandas por serviços de saúde.

3.4.1 Definição e elementos da responsabilidade civil

Entende-se por responsabilidade civil como um princípio legal que implica que uma pessoa ou entidade é obrigada a arcar com as consequências legais de suas ações ou omissões quando estas causam danos a terceiros. Em outras palavras, quando alguém comete uma ação que resulta em prejuízo a outra pessoa ou propriedade, essa pessoa pode ser responsabilizada civilmente e, assim, deve compensar a parte prejudicada pelos danos causados. É uma parte fundamental do sistema jurídico que busca garantir que as vítimas recebam uma reparação justa por perdas e danos.

Venosa aplica seus conhecimentos na ideia que a responsabilidade civil infere-se:

Em princípio, toda atividade que acarreta prejuízo gera responsabilidade ou dever de indenizar […] O termo responsabilidade é utilizado em qualquer situação na qual alguma pessoa, natural ou jurídica, deva arcar com as consequências de um ato, fato ou negócio danoso (VENOSA, 2020, p. 1)

Dessa forma, a responsabilidade civil é um pilar fundamental do sistema jurídico que estabelece a obrigação de uma pessoa ou entidade compensar os danos causados a terceiros devido a ações ou omissões indevidas. Para que a responsabilidade civil seja configurada de acordo com a lei, vários elementos devem estar presentes e são essenciais para uma análise completa do caso. Estes elementos incluem:

- Conduta do agente: refere-se às ações negligentes, imprudentes ou deliberadas do agente que causam danos a outra parte. É o ponto de partida para determinar a responsabilidade.

- Dano: envolve a existência de prejuízo real, como perda material ou lesões pessoais, resultantes da conduta do agente. É o impacto causado à parte prejudicada.

- Nexo causal: estabelece a relação direta entre a conduta do agente e o dano. É necessário provar que a ação ou omissão do agente foi a causa do dano para estabelecer a responsabilidade civil.

- Culpa: ocorre quando alguém não age com a devida atenção ao realizar uma ação, podendo manifestar imperícia, imprudência ou negligência. Além da conduta negligente ou imprudente, é necessário mostrar que o agente agiu com conhecimento do risco de causar dano e mesmo assim agiu de forma irresponsável.

Assim, a responsabilidade civil é um conceito legal complexo que envolve diversos elementos interligados, como conduta do agente, dano, nexo causal e culpa. Assim, a responsabilidade civil do Estado diante da judicialização da saúde é uma questão complexa e desafiadora. Embora os cidadãos tenham o direito de buscar reparação quando não recebem tratamentos médicos adequados, essa prática pode criar tensões financeiras e administrativas para o Estado.

Dessa maneira, então, é nítido que há uma responsabilidade do Estado no processo de judicialização da saúde, é dele o dever de arcar com os danos causados a terceiros devido a ações ou omissões indevidas acarretadas pela saúde pública. Em contrapartida, o Estado busca soluções diferentes para lidar com esse imbróglio, uma vez que para arcar com essas questões é necessário dispor de recursos financeiros altíssimos, o que foge do orçamento estatal muitas vezes. Notado isso, o Estado têm buscado dividir essa responsabilidade com munícipios, governos estaduais e com a União, a fim de minimizar os gastos, e não prejudicar os demais orçamentos da receita brasileira

Nesse sentido, Áquilas Mendes (2003, p. 115), há dez anos atrás já conseguiu entendeu que:

O gasto em saúde deve estar ligado ao planejamento, como um instrumento que baliza o orçamento. Se o gasto é caracterizado por um dispêndio de recursos, representado por uma saída de recursos financeiros, esse só pode ser viabilizado se estiver em acordo com o que foi planejado e orçado. É importante assinalar que nenhum gasto deverá ser realizado sem que haja disponibilidade de recursos orçamentários e financeiros. Para tanto, é importante que se resgate o planejamento como primeira função da gestão orçamentário-financeira.

Enfim, é necessário encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais à saúde e a sustentabilidade do sistema de saúde, e isso requer políticas públicas eficazes, alocação transparente de recursos e a promoção de medidas alternativas para a resolução de conflitos. É um desafio contínuo em busca de um sistema de saúde acessível e funcional para todos os cidadãos.

3.4.2 Da responsabilidade civil do Estado no fornecimento de medicamentos

O fornecimento de medicamentos se trata de uma questão relevante e complexa que, muitas vezes, envolve o papel do governo na garantia do acesso a tratamentos médicos essenciais. Nesse contexto, discute-se a responsabilidade legal e moral do Estado em fornecer medicamentos aos cidadãos quando necessário.

Como já evidenciado nos trechos anteriores, em muitos países, a saúde é considerada um direito fundamental e, portanto, o Estado tem a obrigação de garantir o acesso igualitário a serviços de saúde, incluindo medicamentos. Isso é geralmente respaldado por constituições, leis de saúde e tratados internacionais. Diante disso, o fornecimento de medicamentos é uma parte crítica dos serviços de saúde. O Estado geralmente é responsável por fornecer medicamentos essenciais à população, seja por meio de programas de saúde pública, hospitais públicos ou sistemas de seguros de saúde.

De acordo com o previsto na Constituição Federal, mais especificamente no artigo 196, a responsabilidade pelos cuidados com a saúde é atribuída à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Essa atribuição pode ser cumprida de forma independente ou coordenada, desde que estejam estritamente em conformidade com os princípios e limites estabelecidos na própria Constituição. Nesse contexto, tanto os tribunais quanto a doutrina convergem no entendimento de que “todos os entes federativos compartilham a responsabilidade solidária pelo fornecimento gratuito de medicamentos” (PLANALTO, 2023).

É válido lembrar a que responsabilidade civil do Estado no fornecimento de medicamentos pode surgir em várias situações, bem como em situações de negligência, erro médico, pela falta de medicamentos, pela defasagem no acesso equitativo, e dentre outras maneiras. Entretanto, o Estado busca um linear de defesa em relação a essa problemática, uma vez que não há um orçamento vasto e robusto para arcar com todos aqueles medicamentos que são solicitados pelos cidadãos, deve haver uma organização sistemática e segura para essa providência.

Em resumo, a responsabilidade civil do Estado no fornecimento de medicamentos é uma questão jurídica e ética complexa. Embora o Estado tenha a obrigação de garantir o acesso a medicamentos essenciais, a determinação de sua responsabilidade em casos específicos depende de fatores legais, como negligência, erro médico e falta de acesso equitativo. É importante que o Estado mantenha políticas de saúde eficazes e que os cidadãos tenham meios legais para buscar compensação em caso de falhas no fornecimento de medicamentos.

4 JUDICIALIZAÇÃO DA SÁUDE NO CONTEXTO DO STF

É de conhecimento de muitos, que o Supremo Tribunal Federal (STF) é a mais alta instância do sistema judiciário brasileiro, e tem sido frequentemente chamado a decidir sobre casos relacionados à saúde. Isso ocorre porque os cidadãos buscam garantir o acesso a tratamentos, medicamentos ou procedimentos médicos que não estão prontamente disponíveis no sistema público de saúde ou não são cobertos pelos planos de saúde privados.

No contexto da judicialização da saúde o STF lida com várias questões fundamentais. É dele o dever, muitas vezes, de equilibrar o direito fundamental à saúde, previsto na Constituição Brasileira, com os recursos limitados disponíveis para a saúde, tal como é designado a ele, de mesmo modo, a função de racionalizar os recursos com a necessidade de decidir se os recursos públicos devem ser alocados para atender a demandas individuais por tratamentos caros ou se devem ser aplicados de forma mais ampla em benefício da população, bem como, também, a incumbência de avaliar se as políticas de saúde do governo são constitucionais e se cumprem os princípios de universalidade, equidade e integralidade estabelecidos na Constituição.

Enfim, o papel do STF é essencial para equilibrar os direitos individuais dos cidadãos com as responsabilidades do Estado na prestação de serviços de saúde.

4.1 Da prestação jurisdicional

A prestação jurisdicional do Estado no contexto da judicialização da saúde é um tema crucial que envolve o papel do sistema judicial em garantir o acesso à saúde e a resolução de conflitos relacionados a tratamentos médicos. Esse processo implica uma série de considerações legais e éticas.

Fato é que a prestação jurisdicional do Estado, por meio dos tribunais, desempenha um papel crítico na judicialização da saúde seja ele na garantia de direitos, na resolução de conflitos e até mesmo no monitoramento das políticas públicas.

No entanto, a prestação jurisdicional da saúde, também, enfrenta desafios significativos quando colocados a prova, tal como os impactos orçamentários, as disparidades visualizadas na preservação da equidade e universalidade, e também a incessante busca pela estabilidade de políticas públicas, onde os tribunais devem equilibrar as decisões judiciais com as políticas públicas de saúde existentes.

4.1.1 Do direito à saúde do indivíduo x o direito à saúde da coletividade

No contexto da judicialização da saúde, emerge um intricado conflito entre o direito à saúde do indivíduo e o direito à saúde da coletividade. Esta questão envolve uma complexa teia de considerações éticas, legais e pragmáticas que desafiam a busca por um equilíbrio sensato entre os interesses individuais e o bem-estar geral.

De modo geral, se entende por direito à saúde do indivíduo como um princípio inalienável, consagrado em direitos fundamentais e constitucionais. Cada pessoa tem o direito de procurar tratamento médico adequado e ter acesso a intervenções de saúde que atendam às suas necessidades específicas. Por outro lado, o direito à saúde da coletividade refere-se ao princípio de que a saúde e o bem-estar de toda uma sociedade devem ser protegidos e promovidos. Ele se baseia na ideia de que a saúde não é apenas uma preocupação individual, mas também uma questão de interesse público. A sobrecarga causada pela judicialização pode resultar em atrasos no atendimento e em uma distribuição desigual de recursos.

Nesse diapasão, elucidar acerca do que se refere ao que é direito individual, e o que trata da coletividade é de fundamental importância, porém é fundamental assegurar que ambos os direitos são protegidos pela Constituição Federal. Fato é que tais direitos está garantido a todos os indivíduos, independentemente de sua necessidade, quando se trata da preservação de sua integridade física, indo além do âmbito individual. Entretanto, a conscientização da reserva orçamentária do país, estado ou munícipio deve ser levada em consideração, para que prejuízos à larga escala não sejam fornecidos aos cofres do Estado brasileiro. Nesse sentido, Dalmo Dallari diz:

Outro ponto importante a ser considerado, na tomada de decisões políticas, é a conciliação entre as necessidades dos indivíduos e as da coletividade. Reconhecendo o indivíduo como o valor mais alto, em função do qual existem a sociedade e o Estado, pode parecer natural dar-se preferência, invariavelmente, às necessidades individuais. É preciso ter em conta, no entanto, que o indivíduo não existe isolado e que a coletividade é a soma dos indivíduos. Assim, não se há de anular o indivíduo dando precedência sistemática à coletividade, mas também será inadequada a preponderância automática do individual, pois ela poderá levar à satisfação de um indivíduo ou de apenas alguns, em detrimento das necessidades de muitos ou de quase todos, externadas sob a forma de interesse coletivo (DALLARI, 2011, p.131).

Seguindo o apresentado, e considerando as ponderações anteriores, Mariana Filchtiner Figueiredo e Ingo Wolfgang Sarlet, vai destacar que a macrojustiça não pode existir sem a microjustiça. A resolução de questões individuais no sistema judicial desempenha um papel fundamental na concretização das condições necessárias para a dignidade humana em toda a sociedade. As múltiplas decisões judiciais individuais fornecem os alicerces essenciais para a macrojustiça. Discorrem os autores que:

Se, por um lado, é inquestionável que o direito à saúde é direito de todos, não se pode, por outro, agasalhar a tese de que se cuida de um direito coletivo e que, por ser direito coletivo, não poderia ser objeto de dedução individualizada em Juízo, especialmente para além das hipóteses previamente previstas na legislação infraconstitucional. Com efeito, tanto é equivocada a tese de que os direitos sociais são em primeira linha direitos coletivos, quanto é de ser afastada a tese de que não cabem demandas individuais. Em primeiro lugar, o fato de todos os direitos fundamentais (e não apenas os sociais) terem uma dimensão transindividual (coletiva e difusa) em momento algum lhes retira a condição de serem, em primeira linha, direitos fundamentais de cada pessoa, ainda mais quando a própria dignidade é sempre da pessoa concretamente considerada. Pela mesma razão, não se poderia afastar a possibilidade da tutela individual, o que não significa dizer que existem problemas a serem enfrentados e que em muitos casos (mas não em todos!) a tutela judicial mais adequada e efetiva deva ocorrer de modo coletivo. Os direitos sociais – o que sempre tivemos o cuidado de enfatizar - são sempre também individuais e, portanto, direitos de todos e de cada um, o que assume particular relevância no campo da saúde. (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 16)

Portanto, é fundamental encontrar um equilíbrio entre esses direitos. Isso envolve a promoção de políticas de saúde eficazes que minimizem a necessidade de ações judiciais, bem como a implementação de mecanismos de revisão e controle para garantir que a judicialização não prejudique a capacidade do sistema de saúde de atender às necessidades da coletividade. O desafio está em assegurar que o direito individual à saúde seja protegido sem comprometer o direito coletivo ao acesso igualitário e eficiente aos serviços de saúde.

4.1.2 Do fornecimento ideal de saúde aos cidadãos

No que se refere a ideia de uma prestação de serviço adequada e eficiente a população brasileira, traz à tona o fato dessa questão tratar de um aspecto crucial para o bem-estar e desenvolvimento de uma sociedade. Para entender melhor essa sistemática, é necessário abordar diversos aspectos, incluindo políticas de saúde, acesso à assistência médica, qualidade dos serviços e financiamento. O fornecimento ideal de saúde aos cidadãos é um objetivo fundamental para qualquer nação, refletindo diretamente na qualidade de vida de sua população. Para alcançar esse objetivo, são diversas as atitudes e sistemas que devem ser plantado para a eficácia do Sistema único de Saúde.

O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece uma ampla gama de serviços que vão além do simples tratamento de pacientes doentes. Ele se estende até as residências das famílias para identificar problemas de saúde de forma preventiva e compreender a realidade de cada indivíduo, direcionando-os para os recursos públicos necessários. Este sistema faz parte da rede pública e tem como principal propósito fornecer assistência à saúde de maneira gratuita a todos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2023).

Uma base essencial para o fornecimento ideal de saúde é o acesso universal aos serviços de saúde. Isso significa que todos os cidadãos devem ter a oportunidade de receber assistência médica de qualidade, independentemente de sua condição financeira, geográfica ou social. Dessa maneira, deve ser colocado em pauta, a qualidade dos serviços prestados, posto que não basta, apenas, oferecer acesso, a qualidade dos serviços de saúde é igualmente importante. Isso envolve a disponibilidade de profissionais qualificados, instalações bem equipadas, medicamentos eficazes e um sistema de saúde que promova práticas baseadas em evidências.

Diante do apresentado, é válido tomarmos por base o que ensina Lenir Santos. A autora pondera de forma clara e concisa, acerca da universalidade e integralidade do acesso à saúde, em especial, da realidade brasileira com Sistema Único de Saúde. In verbis, relata a doutrinadora que:

O SUS destina-se a todos, mas todos que optaram pelo sistema público com seus regramentos administrativos, técnicos e sanitários. A universalidade não é uma porta aberta, mas sim uma porta ordenada e por si só não pode transformar o SUS num balcão de mercadorias e procedimentos concedidos a qualquer tempo, de qualquer modo à pessoa que não entrou no SUS pelas suas regras. (SANTOS, 2014; 149)

À vista disso, é crucial que o fornecimento de saúde seja equitativo e justo. Isso significa que grupos marginalizados ou desfavorecidos devem receber atenção especial para eliminar desigualdades em saúde. Fato a ser demonstrado como exemplo, está reservado na lista de transplante do SUS, essa qual segue um padrão organizado e rigorosamente regulamentado com base em critérios técnicos específicos para determinar a ordem de prioridade dos pacientes. Esses critérios incluem a triagem sanguínea, compatibilidade de peso e altura, compatibilidade genética e critérios de gravidade distintos para cada órgão em questão.

Em conclusão, a busca pelo fornecimento ideal de saúde aos cidadãos é um desafio complexo e multifacetado. Envolve a necessidade de garantir o acesso universal a serviços de saúde de qualidade, bem como a promoção da prevenção e cuidados de saúde eficazes. No entanto, essa busca deve ser equilibrada com a realidade dos recursos limitados e a necessidade de alocação eficiente desses recursos. Além disso, a participação ativa da sociedade e a fiscalização adequada são cruciais para assegurar que as políticas de saúde atendam às necessidades da população. Em última análise, o fornecimento ideal de saúde requer um compromisso contínuo com a melhoria do sistema de saúde, considerando as necessidades individuais e coletivas, a justiça social e a eficácia dos serviços de saúde.

4.2 Do processo da judicialização da saúde comparada ao direito americano

A procedimentalização da judicialização da saúde no direito comparado refere-se ao processo pelo qual questões relacionadas à saúde são levadas aos tribunais e ao desenvolvimento de procedimentos legais específicos para lidar com essas demandas. Em diferentes países, esse processo pode variar, mas geralmente envolve a análise de casos individuais que buscam garantir o acesso a tratamentos médicos, medicamentos e serviços de saúde.

Tomando por base o direito estadunidense, é notória as diferenças significativas nos sistemas jurídicos e na abordagem para questões de saúde. Conforme elucidado anteriormente, o Brasil conta um sistema de saúde público, que visa garantir o acesso universal à saúde. No entanto, a demanda por serviços de saúde muitas vezes supera a capacidade do SUS, levando à judicialização, o que se analisado pela perspectiva comparada não consegue visualizar tal sistema no âmbito estadunidense, posto que tal país americano não conta, em sua maioria, com um sistema público de saúde.

Os Estados Unidos têm um sistema de saúde predominantemente privado, onde o acesso aos cuidados de saúde muitas vezes depende do seguro de saúde. A judicialização da saúde nos EUA é mais centrada em questões de negligência médica e acesso a tratamentos. Diferentemente do Estado Brasileiro, que enfrenta diversos problemas judiciais envolvendo a solicitação de medicamentos fora da lista do SUS e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), bem como também, problemas de litígios por negligência médica, os Estados Unidos é campeão nas disputas de seguro de saúde.

Os litígios médicos nos EUA podem ser extremamente caros, com prêmios de seguro médico e custos legais elevados, contribuindo para o alto custo geral do sistema de saúde. Embora, os Estados Unidos liderem em investimentos per capita na área da saúde, com uma média de US$ 10 mil despendidos anualmente por habitante, curiosamente, cerca de 30% da população norte-americana adiaria algum tipo de tratamento alegando falta de recursos financeiros para arcar com os custos (CREPALDI; MORAES, 2018). No entanto, essa situação não resulta em um aumento substancial de ações judiciais em busca de assistência médica, ao contrário do cenário brasileiro.

No Brasil, o investimento anual em saúde por paciente é consideravelmente menor se comparado a outras nações, o que coloca o país em uma posição desfavorável na lista de 20 países em termos de gastos. Surpreendentemente, o Brasil enfrenta um aumento significativo na judicialização da saúde, onde em média 80% dos processos que chegam aos tribunais são decididos favoravelmente aos requerentes (Edição Setor Saúde, 2018).

Essa disparidade entre os Estados Unidos e o Brasil é notável. Enquanto os Estados Unidos ostentam altos investimentos em saúde, a judicialização não é um fenômeno expressivo. Por outro lado, no Brasil, onde o financiamento em saúde por paciente é consideravelmente menor, a judicialização emerge como uma maneira atípica e não oficial de suprir as deficiências das políticas públicas de saúde. Essa complexa interação entre financiamento, acesso aos cuidados de saúde e judicialização demonstra como as dinâmicas na área da saúde podem variar amplamente entre os países.

Em resumo, a judicialização da saúde é um fenômeno presente tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, mas suas dinâmicas e motivos variam devido às diferenças nos sistemas de saúde e nas leis.

4.3 Da judicialização da saúde nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal

A judicialização da saúde nos julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) é um fenômeno intrinsecamente ligado à busca pela efetivação do direito fundamental à saúde no Brasil. Este tema suscita uma reflexão profunda sobre a interseção entre o sistema de saúde, o Poder Judiciário e a concretização dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos, visto que, nas últimas décadas, o Brasil testemunhou um aumento notável no número de ações judiciais relacionadas à saúde.

As sentenças emitidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desempenham um papel crucial na padronização da jurisprudência, especialmente em temas como a disponibilização de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a utilização de medicamentos experimentais e a definição da responsabilidade solidária entre os diversos níveis de governo.

Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição Federal, tem desempenhado um papel fundamental na interpretação das questões jurídicas envolvendo a saúde no país. Suas decisões influenciam diretamente a jurisprudência e as políticas públicas relacionadas ao setor. Enfim, a judicialização da saúde levanta questões complexas e multifacetadas, envolvendo não apenas a disponibilidade de recursos e o acesso a tratamentos, mas também questões éticas, econômicas e de equidade.

4.3.1 Da medida cautelar ao tema 1.234 do STF

A fim de tratar sobre o tema 1.234 do Supremo Tribunal Federal, é imprescindível, que em um primeiro momento, que se relate o que vem a ser o tema:

TEMA 1234 - Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, mas não padronizados no Sistema Único de Saúde – SUS (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2023).

O tema apresentado em questão, teve decisão liminar do ministro Gilmar Mendes, em abril deste ano. A liminar concedida determina que até que o Recurso Extraordinário (RE) 1366243, um caso de grande relevância conhecido como Tema 1.234, seja julgado de forma definitiva, as ações judiciais relacionadas a medicamentos não incluídos no rol do Sistema Único de Saúde (SUS) devem seguir sendo analisadas e decididas pelo tribunal (seja ele estadual ou federal) ao qual foram inicialmente apresentadas pelos cidadãos.

Durante o período que antecede o julgamento final desse recurso, que envolve a discussão sobre se a União deve ser solidariamente responsável pelo fornecimento desses medicamentos, fica proibida a transferência da competência para outro tribunal ou a inclusão da União como parte requerida nas referidas ações judiciais. Tal medida é aplicada, também, aos processos que envolvem a aplicação do Tema 793, no qual o STF determinou que os entes federativos compartilham responsabilidade solidária em relação a demandas de natureza assistencial na área da saúde.

A decisão tomada em questão relata grandiosa relevância, uma vez que há uma demonstração do Supremo em não retroceder em suas jurisprudências, posto que as demandas judiciais envolvendo medicamentos ou tratamentos padronizados devem incluir no grupo de réus os responsáveis pelo fornecimento de acordo com as normas do Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de não retroceder a jurisprudência atual.

Quando se trata da responsabilidade solidária do Estado no fornecimento de medicamentos, essa abordagem oferece uma perspectiva mais ampla sobre o uso dos recursos públicos. No entanto, é importante notar que esse entendimento pode impor ônus substanciais aos entes federativos, dada a multiplicidade de suas obrigações. Como resultado, foi necessário criar leis que segmentassem esse tipo de responsabilidade, com o objetivo de garantir que tais normas fossem respeitadas, evitando assim possíveis prejuízos para a sociedade como um todo. Isso ocorre quando se tenta atender às necessidades individuais de um único cidadão ou mesmo de uma minoria (SANTOS, 2011).

Fato é que dentro das indústrias farmacêuticas há um mercado extremamente dinâmico e expansivo. Desse modo, é notória a grande pressão farmacêutica para medicamentos que agreguem novas tecnologias, mais avançadas, e que muitas vezes, possuem um custeio exacerbado devido à dificuldade em encontrar tais medicamentos, e até seus insumos de produção. Nesse liame, reforça Dino (2020):

Dentro da área de farmácia, existem vários tipos de fármacos para várias situações e casos diferentes e, assim, é possível dividir não só pela sua finalidade ou suas substâncias, mas também por serem medicamentos especiais ou medicamentos comuns. (DINO, 2020, p. 2).

Evidenciou-se no Brasil, diante tais acontecimentos, um aumento considerável no número de processos judiciais relacionados à área da saúde, com ênfase na assistência farmacêutica e em procedimentos médicos. Essas demandas judiciais relacionadas a medicamentos podem ser atribuídas a duas principais razões. A primeira delas é a busca pela inclusão de um medicamento específico na lista de medicamentos fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A segunda ocorre quando o medicamento já está listado no SUS, mas, devido a falhas na gestão, não é disponibilizado de maneira eficaz para os cidadãos. Devido a problemática em questão, o pais se vê por enfrentar debates judiciais que o desgasta e abarrota o orçamento do Estado, conforme aduz Brauner (2011):

[...] o aumento das ações judiciais acaba por desvirtuar a destinação de recursos provenientes do governo para as áreas prioritárias de atendimento. As distorções provocadas por processos judiciais em que há a exigência de compra de medicamentos de alto valor, que não estão incluídos na lista elaborada pelos gestores de saúde acabam por comprometer a atual política da saúde pública (BRAUNER; CIGNACHI, 2011, p.37).

Em conclusão, o fornecimento de medicamentos fora da lista do SUS e da Anvisa no Brasil é um desafio complexo, que envolve questões de acesso à saúde e disponibilidade de recursos. A judicialização tem sido uma via frequentemente utilizada para buscar a inclusão desses medicamentos, entretanto têm causado lacunas grandiosa no orçamento fiscal, destacando a necessidade de um debate amplo e aprofundado sobre como equilibrar o direito à saúde com a capacidade financeira do sistema de saúde público.

4.3.2 Da ADPF 45 e os recursos extraordinário 855.178, 657.718 e 566.471

Diante dessa situação complexa, o sistema judicial tem se esforçado para estabelecer critérios que determinem as condições sob as quais as solicitações de medicamentos e tratamentos devem ser acatadas. O Supremo Tribunal Federal (STF) desempenhou um papel fundamental ao analisar essas ações em instâncias recursais. Alguns dos vereditos proferidos por essa Corte ilustram sua postura em relação a essa questão.

No proeminente caso, a Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional nº 45 (ADPF 45), o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que no caso de falha por parte dos órgãos estatais em garantir os direitos humanos de segunda geração, como o direito à saúde e os direitos sociais, é responsabilidade do Poder Judiciário garantir esses direitos aos cidadãos. Nessa decisão, a tese da Reserva do Possível foi derrotada, devido à natureza jurídica dos direitos em questão.

Apesar de ter sido proferida como uma decisão monocrática pelo Ministro Celso de Mello, desempenha um papel de significativa relevância na discussão sobre direitos sociais, o conceito do mínimo existencial e a teoria da reserva do possível. Mesmo que a ação tenha sido posteriormente considerada prejudicada, a análise dela continua a ser importante, uma vez que o Ministro Celso de Mello aborda e discute questões cruciais.

No decorrer do julgamento da ADPF 45-MC/DF, pode-se extrair o seguinte entendimento:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).” (ADPF 45 MC, Relator: Ministro CELSO DE MELLO, julgado em 29/4/2004, publicado em DJ 4/5/2004. Informativo n. 345-STF, grifo nosso).

Já no que tange aos recursos extraordinário, o Supremo Tribunal Federal tem adotado decisões brilhantes a fim de apaziguar os litígios judiciais. No Recurso Extraordinário (RE) 855.178, originado no Estado de Sergipe, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu a responsabilidade solidária entre os entes federativos no cumprimento das obrigações decorrentes das demandas relacionadas à saúde. A Corte determinou que a incumbência de direcionar o ente responsável pelo cumprimento da ordem judicial cabe ao magistrado responsável pelo caso.

É valido lembrar, que o tema da responsabilidade solidária traz à tona o tema 793 do STF “Responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar assistência à saúde” (Supremo Tribunal Federal, 2023), já que o tema se encontra suspenso a fim de ser julgado posteriormente. A responsabilidade solidária é necessária, entretanto não é viável pesar estados, municípios e a União a fim de resolver demandas judiciais que, muitas vezes, o próprio ente em questão consegue arcar. Além de atrasar a disponibilidade do medicamento, equipamento hospital ou qualquer outra demanda solicitada pelo cidadão, ocasiona em um abarrotamento gigante no Poder Judiciário.

Enfim, a responsabilidade solidária entre os entes federativos na saúde significa que União, estados e municípios compartilham a obrigação de fornecer tratamentos e medicamentos quando requisitados judicialmente. O STF determina, caso a caso, levando em consideração critérios como a disponibilidade do medicamento ou tratamento no âmbito do SUS, a localização do demandante e outros fatores pertinentes, assim se evidencia qual ente deve arcar com o cumprimento da ordem. Isso garante o acesso à saúde, mas também gera desafios financeiros.

Já o Recurso Extraordinário (RE) de n°. 657.718, originário do Estado de Minas Gerais, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que, em princípio, o poder público não possui a obrigação de fornecer medicamentos sem registro na ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) quando estes são de caráter experimental. No entanto, foi estabelecida uma exceção a essa regra, na qual o fornecimento de medicamentos sem registro pode ser determinado, desde que se cumpram três requisitos específicos:

- A existência de um pedido de registro do medicamento no Brasil, exceto para medicamentos órfãos destinados ao tratamento de doenças raras e ultrarraras.

- A comprovação de que o medicamento possui registro em renomadas agências reguladoras no exterior.

- A inexistência de um substituto terapêutico com registro no Brasil.

O Recurso Extraordinário 657.718 já passou por julgamento e teve seu acórdão oficializado. Inicialmente, teve o ministro Marco Aurélio como relator, porém, em razão de sua aposentadoria, a relatoria para o acórdão passou para o ministro Luís Roberto Barroso. Vale ressaltar que ainda não houve o trânsito em julgado deste processo.

Neste caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou a questão da constitucionalidade de o Poder Judiciário determinar que o Estado forneça medicamentos que não possuam registro na ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), e definiu que tais ações devem ser direcionadas exclusivamente contra a União Federal, estabelecendo-a como a responsável pelo fornecimento desses medicamentos em casos excepcionais que atendam aos critérios mencionados.

O acórdão do tribunal de origem, que deu origem ao recurso extraordinário, foi assim sumarizado:

SUS FORNECIMENTO PELO ESTADO DE MEDICAMENTO IMPORTADO AUSÊNCIA DE REGISTRO NA ANVISA IMPOSSIBILIDADE. Não se recomenda o deferimento de pedido de medicamentos não aprovados na ANVISA Conclusão aprovada por maioria no 1º Curso do Fórum Permanente de Direito à Saúde, realizado no dia 9 de agosto de 2010 neste Tribunal. Se o medicamento indicado pelo médico do agravante não possui registro na ANVISA, não há como exigir que o Estado o forneça, já que proibida a sua comercialização (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2023. Recurso Extraordinário. Recorrente: Alcirene de Oliveira. Recorrido: Estado de Minas Gerais. Relator: Ministro. Marco Aurélio, julgado em 22/05/2019).

Após a conclusão do julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) deliberou, por maioria, que, em geral, não é cabível que o Poder Judiciário determine ao sistema público de saúde o fornecimento de medicamentos que não estejam registrados na ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Essa regra tem como exceção os casos em que ocorra uma demora injustificada na análise do pedido de registro por parte da agência pública.

Adicionalmente, ficou estabelecido que medicamentos experimentais, que ainda não tenham comprovação de eficácia e que estejam em fase de pesquisa, não podem, em nenhuma circunstância, ser objeto de ordem judicial para fornecimento pelo SUS:

DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. MEDICAMENTOS NÃO REGISTRADOS NA ANVISA. IMPOSSIBILIDADE DE DISPENSAÇÃO POR DECISÃO JUDICIAL, SALVO MORA IRRAZOÁVEL NA APRECIAÇÃO DO PEDIDO DE REGISTRO. [...]. Provimento parcial do recurso extraordinário, apenas para a afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido de registro (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2023. Recurso Extraordinário. Recorrente: Alcirene de Oliveira. Recorrido: Estado de Minas Gerais. Relator: Ministro. Marco Aurélio, julgado em 22/05/2019)

Por fim, o Supremo decidirá, ainda, acerca do RE 566.471 que traz em seu corpo sobre a obrigação do Estado em fornecer medicamentos de alto custo a indivíduos portadores de doenças graves que não possuem recursos financeiros para adquiri-los. Refere-se ao Recurso Extraordinário (RE) 566.471, originado no Estado do Rio Grande do Norte e com relatoria originária do ministro Marco Aurélio.

O acórdão proferido pelo tribunal de origem, que resultou na interposição do recurso extraordinário, apresentou a síntese do caso da seguinte maneira:

CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. TUTELA ANTECIPADA. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. TRANSFERÊNCIA PARA O MÉRITO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO. RECUSA DO ESTADO EM FORNECÊ-LO. IMPOSSIBILIDADE. AFRONTA A DIREITOS ASSEGURADOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. OBRIGAÇÃO DO ESTADO APELANTE EM PROMOVER O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO IMPRESCINDÍVEL AO TRATAMENTO DE SAÚDE DA APELADA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE 1º GRAU. PRECEDENTES DESTA EGRÉGIA CORTE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO (CONJUR, 2023. Recurso Extraordinário. Recorrente: Estado do Rio Grande do Norte. Recorrido: Carmelita Anunciada de Souza, julgado em 11/03/2020).

Na situação específica, o ministro reconheceu a inconstitucionalidade de determinar ao Estado o fornecimento de tratamento não registrado. Ele argumentou que permitir que o Judiciário tomasse essa decisão poderia colocar em risco a saúde do paciente, uma vez que "concordar com o contrário seria sancionar experimentos laboratoriais, terapêuticos, com benefícios clínicos e custos de tratamento fora de controle pelas autoridades públicas". Ele concluiu destacando que, em última análise, isso significaria "autorizar o experimentalismo farmacêutico à custa da sociedade, que financia a saúde pública por meio de impostos e contribuições", conforme exposto nas fls. de 12 a 15 do julgado em questão.

Tal situação bate frente a frente com o que está constitucionalizado na CF/88, posto que abarca a ideia do princípio da solidariedade expresso no art. 3º, inciso I, da própria Constituição:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da república Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (PLANALTO,2023).

Em suma, os julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) em casos de judicialização da saúde têm sido cruciais para definir os limites e as diretrizes desse fenômeno no Brasil. A corte tem buscado equilibrar o acesso à saúde com a responsabilidade fiscal e a necessidade de critérios claros para a concessão de tratamentos e medicamentos não disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). Esses julgamentos refletem a complexidade do tema, onde direitos individuais se confrontam com recursos limitados do Estado. Portanto, a jurisprudência do STF continua a desempenhar um papel fundamental na definição dos parâmetros legais que regem a judicialização da saúde, buscando garantir o acesso à saúde sem comprometer a sustentabilidade do sistema de saúde público brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo exposto, conclui-se que a judicialização da saúde, quando analisada à luz dos direitos humanos e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é um fenômeno de grande relevância e complexidade. Ela surge como uma resposta necessária diante das falhas do sistema em garantir o acesso universal e equitativo à saúde, um direito humano fundamental. No entanto, sua excessiva expansão pode gerar desafios institucionais e financeiros para o Estado Democrático de Direito.

Através da análise dos princípios dos direitos humanos, fica claro que o direito à saúde é intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa humana, à igualdade e à não discriminação. Nesse sentido, a judicialização se torna um recurso legítimo para assegurar que esses princípios sejam efetivamente realizados. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem desempenhado um papel central na definição de parâmetros e na busca de equilíbrio entre as demandas individuais e a sustentabilidade do sistema de saúde.

De fato há uma necessidade de buscar novos meios para que a procedimentalização desse recurso – a judicialização, seja minimizada. A diminuição de litígios voltados para área da saúde, tal como o fornecimento de medicamentos, como bem informado ao inteiro dessa lide, evidenciou a grande problemática financeira em que o governo enfrenta ao ter que desembolsar certos produtos farmacêuticos aos cidadãos. De igual modo, fere e se faz errado não proporcionar a medicação ao indivíduo, posto que é de seu direito constitucionalizado, ter um acesso digno à saúde. É graças a esses acontecimentos, que o Supremo Tribunal Federal vem se embasando pra equalizar uma decisão proveniente a todos, demonstrativo disso são os recursos e temas que são discutidos na mais alta corte, como no RE 566.471 e no tema 1234.

No entanto, é crucial reconhecer que a judicialização não deve ser uma solução permanente para as deficiências do sistema de saúde. Ela deve ser acompanhada por esforços contínuos para fortalecer o sistema público de saúde, promover políticas públicas eficazes e garantir a transparência na alocação de recursos. Além disso, a prática deve ser pautada por critérios bem definidos e acompanhada de avaliações regulares de seu impacto.

Enfim, em última análise, a judicialização da saúde é um sintoma de desafios mais amplos enfrentados pelo sistema de saúde e pelo Estado. Ela demonstra a necessidade de uma abordagem integrada que una o poder judiciário, o legislativo e o executivo na busca por soluções que respeitem os direitos humanos, preservem o Estado de Direito e assegurem o acesso à saúde para todos. Somente ao fazer isso, será possível encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais e a sustentabilidade do sistema de saúde, garantindo uma sociedade mais justa e saudável.

REFERÊNCIAS

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Sobre os autores
Bruno Marini

Professor de Direitos Humanos, Biodireito e Bioética na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande (MS), Doutorando em Saúde (UFMS), Mestre em Desenvolvimento Local (UCDB) e Especialista em Direito Constitucional (UNIDERP).

Daiany Bonfim Xavier

Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Faculdade de Direito (FADIR).︎

Informações sobre o texto

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