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Cidadania e loucura

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Agenda 24/11/2007 às 00:00

SUMÁRIO. INTRODUÇÃO; 1. Que é cidadania; 2. da loucura e do tratamento asilar; 3. reforma psiquiátrica brasileria; 4. loucura e cidadania; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

"Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social

Antonin Artaud"


INTRODUÇÃO

O escritor francês Antonin Artaud, em sua obra Carta aos poderes, escreveu aos diretores de asilos de loucos: "As leis, os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem segundo seus próprios padrões de entendimento" (1979). Desta exata compreensão da loucura e das reações sociais que causa, a partir de quem já esteve recluso ao tratamento asilar como Artaud, percebe-se a dimensão da segregação do louco a partir de considerações particulares sobre o diferente como um mal a ser eliminado. Indivíduos diferentes, por não se adequarem às regras da maioria, os loucos – durante séculos e, principalmente, mas não somente, em virtude do tratamento asilar excludente que lhe foi oferecido – foram preteridos em sua condição elementar de seres humanos e de cidadãos.

Um dos principais aspectos da revisão e redirecionamento do tratamento psiquiátrico até pouco tempo majoritariamente adotado, a reforma psiquiátrica brasileira, está na configuração de uma cidadania ao indivíduo portador de transtornos mentais. A loucura, que durante muito tempo segregou os indivíduos como verdadeiro lixo social, indesejados e cuja exclusão se fazia regra, agora passa a ser considerada como diferencial não necessariamente negativo e que certamente não deve abstrair os direitos elementares de qualquer ser humano.

Com este texto, busca-se verificar, sucintamente, as relações entre loucura e cidadania no âmbito da legislação brasileira. Inicialmente através do próprio conceito de cidadania. Em seguida, por uma breve observação histórica da loucura e do tratamento excludente que lhe era oferecido, abstraindo-se a condição humana do louco, bem como as novas perspectivas trazidas a baila pela nova legislação resultante da chamada reforma psiquiátrica brasileira, confundindo-se, em muitos aspectos, com a própria luta antimanicomial e seus reflexos para finalmente se considerar a cidadania do louco.


1. que é cidadania

A cidadania está prevista pela Constituição Federal de 05 de outubro de 1988 como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, constituída como Estado democrático de direito. O mestre José Afonso da Silva (2002:p.105), a respeito da amplitude do termo e de sua aplicação no texto constitucional, assevera que a cidadania:

... conexiona-se com o conceito de soberania popular (parágrafo único do art. 1º), com os direitos políticos (art. 14) e com o conceito de dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), com os objetivos da educação (art. 205), como base e meta essencial do regime democrático.

Destarte, conveniente o destaque dado à relação da cidadania com os conceitos de soberania popular e direitos políticos, na medida da participação do indivíduo na formação da vontade do Estado, como veremos mais adiante, bem como com o respeito à dignidade da pessoa humana.

Sob um aspecto formal e bastante simplificado, cidadania vem a significar a "titularidade dos direitos políticos de votar e ser votado" (DA SILVA, 2002:p.345), adquirida com o alistamento eleitoral, ou seja, "com a obtenção da qualidade de eleitor, que documentalmente se manifesta na posse do título de eleitor válido" (DA SILVA, 2002:346).

O direito de votar e ser votado, portanto, é o principal direito do cidadão, mas não o único, compreendendo o conceito de cidadania apenas sob um ponto de vista formal, conforme já mencionado. Não obstante, materialmente este conceito vai mais além.

A noção de cidadania como a conhecemos hoje pode ser considerada historicamente recente, forjada principalmente nas lutas políticas durante o surgimento do Estado moderno, a partir do século XV e a definitiva ascensão política da burguesia no século XVIII, na medida em que se tornava fundamental um conceito que unisse as pessoas de determinado território, que se criasse um sentimento de identificação e união entre eles, fortalecendo o próprio conceito de Estado, então enfraquecido pelos séculos em que ficou submetido a uma organização feudal da sociedade. Por certo, uma necessidade que em muito correspondia com o interesse burguês de organização e apropriação do poder político, disperso que estava e apropriado por uma monarquia e nobreza que já há muito vinham perdendo seu poderio econômico. Imperativo extinguir as diferenças e discriminações de classes. Foi neste mesmo período histórico que surgiram ou aperfeiçoaram-se os conceitos de comunidade, de povo e soberania popular, de nacionalismo, além da própria cidadania.

Conforme ensina Dalmo de Abreu Dallari, o ideário francês de igualdade de todos certamente não se expressou em termos práticos além das intenções políticas burguesas, mas a partir de então houve importante direcionamento doutrinário e, principalmente, jurídico, em busca da ampliação do conceito de cidadania e de sua aplicação efetiva. Para a formulação de tal conceito, afirma Dallari (2000:p.98):

... foi de grande importância a contribuição da dogmática alemã do século XIX especialmente de Gerber e da doutrina dos Direitos Públicos Subjetivos, encontrando-se na obra de Jellinek, publicada em torno de 1900, uma completa construção doutrinária, fixando a noção jurídica de povo e disciplinando sua participação na vida do Estado.

Parafraseando o próprio Jellinek, aponta o professor Dalmo de Abreu (2000:p.99) que cidadãos são "todos os que participam da constituição do Estado, havendo, entretanto, uma categoria especial de cidadãos, que são os que têm cidadania ativa" (grifou-se).

Assim, deve-se perceber, como fundamental ao entendimento de cidadania, a participação do indivíduo na constituição do Estado, segundo critérios estabelecidos pelo próprio Estado. A simples adequação a tais critérios já é suficiente para o reconhecimento do indivíduo como membro de seu Estado, como cidadão.

Aproveite-se agora o ensejo para verificar a existência, dentro do grupo formado pelos cidadãos, de uma qualidade mais específica e submetida a condições e pressupostos outros determinados pelo Estado para que possa participar, como elemento/sujeito deste conceito de Estado, da formação de sua vontade e do exercício de sua soberania. Trata-se da cidadania ativa, que pode ser considerada, como se pressupõe a partir de suas finalidades, como condição do cidadão que, uma vez se adequando aos pressupostos determinados pelo Estado, habilita-se a participar da formação da vontade estatal e do exercício da soberania.

Pode-se concluir, portanto, que cidadania refere-se aos direitos e deveres que ligam juridicamente o indivíduo e o Estado. E é exatamente na existência de tais direitos do indivíduo que reside a importância da extensão do conceito de cidadania, uma vez que assim o mesmo será protegido, inclusive da ação do próprio Estado.

No que tange ao indivíduo considerado louco, verifiquemos sua caracterização como cidadão, nesta perspectiva, apontada por Dallari (2000:p.100), de que "A condição de cidadania implica direitos e deveres que acompanham o indivíduo mesmo quando se ache fora do território", ou seja, considerando-o como integrante do Estado e detentor de direitos. Utilizando ainda conceito de Saïd Farhat, citado por João Alves Silva (2003:p.80) em seu artigo, Direito como fator de mudança social e concretização da cidadania (in Estudos sobre a efetivação do direito na atualidade: a cidadania em debate, n.º 1. Lília Maia de Morais Sales, organizadora; [autores] Alessander Wilkson Cabral Sales... [et al]. – Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2003), cidadão "é o membro de uma comunidade nacional, no gozo dos direitos individuais e coletivos – políticos, sociais e econômicos -, assegurado pela Constituição e/ou pelas leis do seu país, e sujeito às obrigações e limitações impostas por elas". Vejamos então a aplicação e proteção destes direitos.

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2. da loucura e do tratamento asilar

Há alguns séculos a loucura vem sendo tratada com o isolamento do louco em hospitais psiquiátricos, os asilos, excluindo-o definitivamente da vida em sociedade. Para uma melhor compreensão sobre este tratamento asilar tradicionalmente oferecido à loucura, convém verificar uma breve evolução histórica do assunto.

Observação por Heitor Resende (1992:p.20) em seu estudo, Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica aponta que "a loucura tem sido uma companheira inseparável do homem ao longo de todo seu trajeto conhecido pela história. Desde o Velho Testamento aos estudos etnográficos das sociedades chamadas primitivas as referências a loucos são abundantes". Durante a Antiguidade grega e romana, conforme destacou, as famílias mais abastadas optavam por manter os loucos em casa, quase sempre acompanhados por alguém especificamente pago para tanto. Os desvalidos, de famílias pobres, vagavam livremente pelos campos e cidades, sem qualquer ligação territorial mais profunda que o vinculasse a determinado território ou coletividade. A intervenção do poder público somente se operava em assuntos jurídicos, como para validar ou anular casamentos em caso de superveniência da loucura a um dos cônjuges ou, por outro, o restabelecimento de um deles.

Semelhante foi o tratamento social dado à loucura na Idade Média, entre os séculos V e XV, em que o indivíduo considerado louco era tolerado pela sociedade, somente sendo afastado quando representasse algum perigo, alguma ameaça de violência. Ainda assim, tal afastamento se dava com a saída do louco da cidade ou da comunidade em que estivesse, ou seja, não havia um local especificamente destinado para este objetivo.

Segundo Michel Foucault, em seu trabalho Loucura e Sociedade, a prática de afastar os loucos do convívio social vem da cultura árabe. Em verdade, a invasão da Espanha pelos árabes no século XV deu ensejo à criação dos primeiros hospícios da Europa, principalmente na própria Espanha e na Itália (Florença, Pádua e Bérgamo). Não obstante, os hospícios eram utilizados esporadicamente, como exceção, uma vez que ainda se tolerava o louco não violento no seio social. Ademais, convém destacar que durante o período medieval o predomínio do feudalismo, tendo como base econômica as atividades agro-pastoris, contribuía para a relativa aceitação social do louco, como anota Resende (1992:p.22):

Há ainda que considerar que, nas sociedades pré-capitalistas, aptidão e inaptidão para o trabalho não era um critério importante na determinação do normal e do anormal, como viria a acontecer mais tarde, e isto porque as formas de organização do trabalho naquelas sociedades eram, por sua natureza mesma, pouco discriminativas para as diferenças individuais.

Entre os séculos XV e XVII, com a economia capitalista suplantando definitivamente o feudalismo, o trabalho e a capacidade de produzir mais e em menor tempo possível passaram a ser o exato critério da loucura. Curioso dado que demonstra tal informação é o fato de que os loucos, a partir de então, eram excluídos do meio social e encarcerados não por serem loucos, mas por não produzirem. Como lembra Resende (1992:p.24), "empreendeu-se em toda a Europa draconiana pressão à mendicância, à vagabundagem e à ociosidade, voluntária ou não", compreendendo, mesmo, legislação específica de combate ao ócio com multas e castigos físicos. Acrescenta ainda:

As medidas legislativas de repressão se complementaram pela criação de instituições, as casas de correção e de trabalho e os chamados hospitais gerais que, apesar do nome, não tinham qualquer função curativa. Destinavam-se a limpar as cidades dos mendigos e anti-sociais em geral, a prover trabalho para os desocupados, punir a ociosidade e reeducar para a moralidade mediante instrução religiosa e moral (RESENDE, 1992:p.24).

Percebe-se que a postura tolerante da sociedade converteu-se em absoluta intolerância e que, mesmo não dirigidos especificamente ao louco, os atos de isolamento proliferaram. Curioso notar que na França, por exemplo, em 1650, foram criadas as casas de internação e as delegacias de polícia pelo mesmo decreto, o Edito de Pampone de Belliève, como facetas de um mesmo problema de natureza social e econômica. O que se buscava com a internação do louco, o que se dava muitas vezes pelas vias da polícia, não era oferecer qualquer tratamento, mas simplesmente afastá-lo, por inútil à produção. O escritor francês Antonin Artaud (1979), sintetiza bem o assunto ao afirmar que "o hospício de alienados, sob o amparo da ciência e da justiça, é comparável aos quartéis, aos cárceres, às penitenciárias".

Importante destacar que neste mesmo período o próprio Estado se fortalecia e seu poder se estendia e ramificava até aproximar-se do indivíduo. Para tanto, a segurança das cidades, paulatinamente, deixava de ser feita por milícias e passava à polícia do Estado, disciplinada, hierarquizada e sistemática, efetivando o controle do Estado capitalista sobre o indivíduo e mesmo impondo-lhe um novo sistema de obrigação social em que o ócio deveria ser definitivamente erradicado. Afastado o louco, de maneira realmente esporádica podia ser considerado como um indivíduo doente, sendo o mesmo submetido a um tratamento diferente dos outros excluídos, conforme observa Resende (1992:p.25):

Ainda inspirados nos princípios da medicina galênica, segundo os quais a doença resultava do desequilíbrio entre os quatro humores do corpo, os tratamentos destinavam-se a livrar os doentes de seus maus humores, sangrando-os até o ponto de levá-los à síncope, ou purgando-os várias vezes por dia até que de seus intestinos nada mais saísse senão água rala e muco.

Os séculos XVIII e XIX, com a Revolução Industrial determinando a transição do capitalismo comercial para o industrial, as fábricas passaram a receber cada vez mais mão-de-obra. O próprio excedente não utilizado desta mão-de-obra, identificado por Karl Marx em sua clássica obra, O Capital, como exército de reserva, ganhou grande importância na medida em que contribui para a redução dos custos da produção, mantendo os salários pagos em patamares irrisórios em virtude do excesso do oferecimento de mão-de-obra. Importante agora, portanto, não era excluir os desocupados, mas tê-los à mão como objeto de barganha.

Acrescente-se, por outro lado, que com os ideais burgueses, que tiveram seu ápice com a Revolução Francesa, de igualdade, liberdade e fraternidade, já não se justificava o internamento do louco como simples exclusão social.

Após a tomada do poder político pelos revolucionários franceses, o médico Philippe Pinel foi nomeado como responsável pela administração dos hospitais de Bicêtre e Salpêtrière, nos quais começou a introduzir o chamado tratamento moral da loucura. Antes, contudo, libertou todos os internos que lá estavam pela simples exclusão social, à exceção dos loucos, sendo creditado a este médico francês, no dizer de Resende (1992:p.26-27), "o ter descartado as lesões cerebrais como causa dos transtornos psíquicos e, coerentemente, ter abandonado as sangrias, as purgações e os medicamentos".

Entretanto, como dito acima, já não se podia manter os indesejados internados pela simples aversão social que causavam; uma nova justificativa deveria surgir para fundamentar a internação. Neste exato contexto, desenvolveram-se os argumentos que até hoje são utilizados pelos defensores do tratamento asilar.

As alterações ocorridas no cenário europeu da época, com as revoluções industrial e francesa, o aparecimento de técnicas exatas de estudo e tratamento de doenças, propiciaram uma verdadeira apropriação do fenômeno da loucura pela medicina, com o surgimento de uma ramificação específica para tanto, a psiquiatria. Agora, como responsáveis exclusivos pelo estudo e tratamento da loucura, a psiquiatria passou a classificar a mesma, definitivamente, como uma doença e que, portanto, devia ser tratada e curada. Ademais, como doença passou-se a identificar o conceito de loucura com o de alienação. Louco, portanto, foi definido como aquele que está fora de si, o que não se pertence e não estando em si, não deveria ser considerado ou respeitado como os outros, mas tratado como coisa, reificado. Este novo conceito concretizou definitivamente o afastamento do louco da comunidade, agora não como exceção, mas como regra, institucionalizada pelo Estado e avalizada pela ciência médica.

Sobre o tratamento adequado à loucura, agora alienação, duas correntes polarizaram a discussão: os organicistas entediam que a loucura era causada por fatores orgânicos, físicos, materiais. Os defensores do tratamento moral, entre eles Pinel, entendiam que a loucura era causada por questões subjetivas, sendo necessário um tratamento que atendesse à própria mente do paciente. Ambas as correntes, contudo, concordavam que o paciente, via de regra, deveria permanecer internado, isolado, por três grandes fatores: o social, identificando o louco como perigoso tanto para a sociedade, como para ele próprio; o fator terapêutico entendia ser o afastamento necessário para livrar o enfermo das condições externas que causaram sua demência e o fator epistemológico, considerando o louco não como uma pessoa, um ser humano, mas como um objeto de estudo, que deveria permanecer cativo e reunido aos outros seus semelhantes com o fito de possibilitar o próprio estudo da loucura.


3. reforma psiquiátrica brasileira

O Brasil, até meados da década de 70, adotava desde o período imperial o tratamento asilar do louco. A partir deste período histórico, partiu-se de um movimento de reforma sanitária que questionava aspectos do tratamento, mas não ele próprio como sistema à uma verdadeira luta antimanicomial, vez que compreendido que o asilo, a exclusão, encerra a própria condição humana do louco.

O que se chama de reforma psiquiátrica brasileira, na verdade, tem sido uma movimentação lenta, mas constante, em direção à definição dos direitos fundamentais do louco como ser humano e na reformulação do modelo de tratamento oferecido, sendo sua principal proposta o fim do asilo/manicômio como opção única de tratamento oferecido à loucura.

Com tais objetivos, foi apresentado à Câmara Federal, pelo Deputado Paulo Delgado, em 1989, projeto de lei n.º 3657/89 prevendo a proibição de construção de novos hospitais psiquiátricos e contratação de leitos psiquiátricos pelo poder público; direcionamento de recursos públicos para construção de uma rede de atendimento extra-hospitalar, objetivando acabar com o tratamento centralizado e, por fim, instituindo a obrigação de se comunicar à autoridade judiciária todas as internações compulsórias, para apreciação da legalidade desta internação.

Durante a tramitação deste projeto de lei no Congresso Nacional, que levou mais de dez anos até ser aprovado, alguns estados da federação passaram a legislar sobre o assunto na medida de sua competência. Foi o caso do Espírito Santo (Lei n.º 5267/92), Pernambuco (Lei n.º 9715/92), Rio Grande do Sul (Lei n.º 9716/92), Ceará (Lei n.º 12.151/93), Rio Grande do Norte (Lei n.º 6758/95), Minas Gerais (Lei n.º 11.802/95) e Paraná (Lei n.º 11.189/95), além do Distrito Federal (Lei n.º 19.945/98). Guardadas as particularidades de cada uma destas leis, em comum havia uma revisão do tratamento asilar tradicionalmente adotado, seja garantindo direitos mínimos ao interno, determinando a extinção progressiva deste tratamento asilar ou criando formas alternativas de tratamento não asilar ou extra-hospitalar.

Tomando como exemplo o caso cearense: a Lei n.º 12.151, de 29 de julho de 1993 dispõe sobre a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos, proibindo expressamente em seu art. 1º a "construção e ampliação de hospitais psiquiátricos, públicos ou privados, e a contratação e financiamento, pelos setores estatais, de novos leitos naqueles hospitais" em razão de sua substituição por outros recursos assistenciais, "como leitos psiquiátricos em hospitais gerais, hospital-dia, hospital-noite, centros de atenção, centros de convivência, lares, pensões protegidas, entre outros" (art. 2º, caput).

Ademais, define os pacientes asilares como "aqueles que perderam o vínculo com a sociedade familiar e encontram-se ao desamparo dependendo do Estado para a sua manutenção" (art.3º).

Muito importante a regulamentação dada aos casos de internação compulsória, assim definida como "aquela realizada sem o consentimento do paciente" (art.4º, §1º). Neste caso, a internação "deverá ser comunicada pelo médico que a procedeu, no prazo de vinte e quatro horas, à autoridade do Ministério Público e à Comissão de Ética Médica do estabelecimento" (art. 4º, caput). Além disso, a preocupação com a exclusão do indivíduo pode ser verificada pelo fato de que mesmo as internações voluntárias devem ser acompanhadas pelo poder público, conforme se observa expressamente pelo dispositivo a seguir transcrito:

"Todas as internações de caráter psiquiátrico, compulsória ou não, deverão ser confirmadas, no máximo em quarenta e oito horas da internação respectiva, por laudo da junta interdisciplinar, composta por membros da comunidade, trabalhadores em saúde mental, e por representantes do Poder Público local" (art.5º).

A Lei Federal n.º 10.216, de 06 de abril de 2001, por sua vez, foi expressa ao elencar em seu artigo 2º um rol de direitos mínimos das pessoas portadoras de transtorno mental, como por exemplo, o direito de "ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade" (inciso II), direito de "ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração" (inciso III), "livre acesso aos meios de comunicação disponíveis" (inciso VI), "ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis" e o direito de ser "tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental" (inciso IX).

No que tange à internação do louco, a legislação encerra definitivamente este tipo de tratamento como a regra geral, tornando-a uma exceção, na medida em que "só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes" (art.4º, caput). Ademais, o tratamento "visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio", sendo expressamente vedada a internação de portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares. A própria lei define tais instituições como aquelas que não assegurem os direitos mínimos apontados em seu art. 2º acima mencionados e desprovidos de recursos de assistência integral que incluam serviços médicos, de assistência social, psicólogos, ocupacionais, de lazer, dentre outros (art. 4º, §2º).

Detalha ainda as modalidades de internação em voluntária (que se dá com o consentimento do usuário, manifestado por declaração assinada por este no momento de sua admissão no estabelecimento; neste caso, o término da internação pode ocorrer por solicitação escrita do próprio paciente), involuntária (a pedido de terceiro e sem o consentimento do usuário, devendo, contudo, tanto a internação quanto a alta ser comunicada em setenta e duas horas ao Ministério Público estadual pelo responsável técnico do estabelecimento; neste caso, o término da internação somente poderá ser solicitada por familiar ou responsável legal) ou compulsória (determinada por ordem judicial).

Destaque-se, ademais, que os casos de evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e falecimento do interno deverão ser "comunicados pela direção do estabelecimento de saúde mental aos familiares, ou ao representante legal do paciente, bem como à autoridade sanitária responsável, no prazo máximo de vinte e quatro horas da data da ocorrência" (art.10).

Por fim, o artigo 11 estabelece que "pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão ser realizadas sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde". Percebe-se, por esta dispositivo, que já não se admite, em hipótese alguma, a consideração do louco, independentemente de seu grau de loucura, como um objeto de estudo. Eis a própria coroação de sua condição de cidadão, detentor de direitos e tão merecedor de respeito quanto qualquer outro cidadão.

Percebe-se ainda que entre as possibilidades de reinserção social do portador de transtornos mentais, constante finalidade do tratamento, é freqüente a preocupação com sua capacitação para o mercado de trabalho. Com esta finalidade de inseri-los no mercado econômico por meio do trabalho, o Congresso Nacional aprovou a Lei n.º 9867, de 10 de novembro de 1999, a partir de projeto do Deputado Federal Paulo Delgado, dispondo sobre a criação e o funcionamento de Cooperativas Sociais inspiradas nas "empresas sociais" adotadas pela reforma psiquiátrica italiana. As cooperativas são voltadas às pessoas que a própria lei estabelece como "em desvantagem", entre elas os "deficientes psíquicos e mentais, as pessoas dependentes de acompanhamento psiquiátrico permanente, e os egressos de hospitais psiquiátricos" (art.3º, inciso II).

Incluem-se entre suas atividades a organização e gestão de serviços sociossanitários e educativos e o desenvolvimento de atividades agrícolas, industriais, comerciais e de serviços, conforme estabelecido em seu art. 1º, incisos I e II. Um dos principais diferenciais de tais cooperativas é a consideração das limitações e dificuldades gerais e individuais de seus cooperados no que diz respeito às instalações, horários e jornadas de trabalho, devendo desenvolver e executar, para tanto, "programas especiais de treinamento com o objetivo de aumentar-lhes a produtividade e independência econômica e social" (art.3º, §2º).

Das novas formas de tratamento apontadas para substituir a forma asilar, convém destacar que não se pretende extinguir definitivamente o asilo, a internação, mas, na verdade, o que se pretende é extinguir a falta de opções, a utilização do asilo como única opção. O que se pretende é utilizar o asilo como última opção, quando nenhuma outra forma de atendimento extra-hospitalar for suficiente.

Este atendimento extra-hospitalar pode ser ambulatorial ou ainda uma via alternativa intermediária entre o ambulatório e a internação. Entenda-se por ambulatorial o tratamento contínuo, mas sem internação, por equipe multiprofissional contando com médico psiquiatra, médico clínico, psicólogo, assistente social, enfermeiro, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, neurologista e pessoal auxiliar.

O sistema de atendimento intermediário entre os cuidados ambulatoriais e a internação hospitalar conta com centros de atenção psicossocial (CAPS), núcleos de atenção psicossocial (NAPS), hospitais para permanência apenas durante um dia ou uma noite, alas de urgência psiquiátrica e leitos em hospitais gerais (acabando com o isolamento em hospitais específicos), serviços residenciais terapêuticos ou lares abrigos dentre vários outros. Como já afirmado, o que há em comum em todos é que o louco, durante o tratamento ou acompanhamento médico, permanece em sua residência, em sua comunidade, não sendo internado.

Sobre o autor
Paulo Roberto Clementino Queiroz

técnico judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, advogado, pós-graduando em Administração Pública

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Paulo Roberto Clementino. Cidadania e loucura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1606, 24 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10697. Acesso em: 23 dez. 2024.

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