A última década no Brasil tem sido marcada por ataques contínuos aos direitos humanos e fundamentais, de diversos setores da sociedade, sob a controversa concepção de que se trata de proteção a bandidos ou de mero favorecimento a grupos identitários.
São discursos difundidos em redes sociais e mesmo em vídeos de jornalistas de envergadura nacional e alcance popular que tratam com suposta autoridade sobre os direitos humanos (VICTOR, MENDONÇA, MENEZES, NÓBREGA, 2015; MISCOLKI, PEREIRA, 2018). No entanto, o que são direitos humanos?
Para responder a essa pergunta, faz-se necessário refletir um pouco acerca do constitucionalismo, o qual comporta, ao menos, quatro acepções (TAVARES, 2002). Em seguida, refletiremos sobre o conceito de direitos humanos.
Como dito, o constitucionalismo encontra diversas acepções e modelos. Pode se falar em constitucionalismo antigo, constitucionalismo medieval, constitucionalismo moderno, constitucionalismo moderno, constitucionalismo contemporâneo, dentre outros. Em comum, tais acepções demonstram que o constitucionalismo surge dentro de contextos históricos distintos.
Há quatro acepções clássicas (TAVARES, 2002). Numa primeira acepção, entende-se por constitucionalismo o movimento político-social de limitação do poder político arbitrário, sobretudo, do absolutismo. Numa segunda acepção é marcada pelo advento de cartas constitucionais escritas. Ressalte-se que mesmo o termo constituição comporta significados variados (BONAVIDES, 2008), sendo, de modo geral, compreendida como a lei que versa sobre a limitação do poder política, via separação dos poderes, organização do Estado e consagração de direitos e garantias individuais.
A terceira concepção de constitucionalismo volta-se aos “propósitos mais latentes e atuais da função e posição das constituições nas diversas sociedades” (RAMOS, 2002). E numa quarta e última acepção, pode se pensar o constitucionalismo restrito à evolução histórico-constitucional de um Estado em particular.
Tamanha confusão se justifica ante o uso recente no universo político e jurídico ocidental (BARROSO, 2009; MATTEUCCI, 2002; TAVARES, 2002), pois o constitucionalismo nasce no seio das revoluções burguesas francesa e americana, significando, “em essência, limitação do poder e da supremacia da lei” (BARROSO, 2009, p. 5), constituindo o chamado Estado de Direito, rompendo com a soberania do regente pela soberania do Estado. Assim, tendo no Estado Constitucional um limitador do poder estatal, ao que Barroso (2009) aponta três categorias de limitação: a) as limitações materiais, composta por valores essenciais e basilares e pelos direitos fundamentais; b) as limitações de estrutura orgânica, representadas pela organização do Estado e pela separação das funções estatais (ou separação dos Poderes), e; c) as limitações processuais, que impõem aos órgãos, entidades e agentes estatais o agir em conformidade com a lei, obedecendo o devido processo legal (due process of law).
Como se percebe, o constitucionalismo guarda íntima relação com os direitos humanos e fundamentais, uma vez que estes limitam a ação estatal e são imprescindíveis à ordem social e à democracia. Aliás, constitucionalismo e democracia guardam uma relação próxima, ainda que permeada por eventuais tensões, em especial, quando se considera a democracia como o governo da maioria se sobrepondo às minorias, concepção que pavimentou o discurso político reconhecido como de extrema-direita e autonomeado conservador, dado o caráter constitucional “de preservação de determinados valores de proteção das minorias, inclusive, e sobretudo, em face das maiorias do seu poder de manipulação do processo político” (BARROSO, 2009, p. 5).
Apesar de se falar em constitucionalismo antigo e medieval, é apenas na Modernidade que se adquire o contorno de limitador do Estado, impondo-lhe mecanismo de contenção do poder estatal e proteção aos direitos do cidadão, sendo, portanto, fenômeno recente no universo político e jurídico ocidental (MATTEUCCI, 2002). Como vimos, o constitucionalismo nasce no seio das revoluções burguesas francesa e americana, significando “em essência, limitação do poder e da supremacia da lei” (BARROSO, 2009, p. 5), sendo imprescindível a formação do Estado de Direito (nascido como Estado Liberal), o qual rompe com a soberania do regente e a substitui pela soberania do Estado – ou, para muitos, do povo.
Sem dúvidas, as constituições são o principal legado do constitucionalismo, as quais se caracterizam por sua superioridade material e formal enquanto Lex Superior do ordenamento jurídico (KELSEN, 2002; BONAVIDES, 2008), estabelecendo os limites e a organização do poder estatal, e, por conseguinte, protegendo o cidadão de seu arbítrio por meio da consagração de direitos humanos e/ou fundamentais.
O desenvolvimento histórico-constitucional acompanha o desenvolvimento do capitalismo com suas transformações socioeconômicas, gerando novas demandas e articulações políticas que culminam num processo de luto e transformação desses direitos humanos e fundamentais. Desse modo, mesmo ciente de provocações em sentido diverso, é possível classificar esses direitos em gerações (BONAVIDES, 2008; BULOS, 2007; NOVELINO, 2009; SAMPAIO, 2004).
Os direitos de primeira geração correspondem aos chamados direitos e garantias individuais, ou seja, aqueles que impõem ao Estado um não agir, uma omissão como meio de preservação e promoção do exercício pleno desses direitos. Trata-se do direito à vida, das liberdades, privacidade, intimidade, dentre outros. Com inspiração liberal, tais direitos são plenamente efetivados à medida em que o Estado não cria óbices ao seu exercício.
Com o advento da Revolução Industrial intensifica-se o êxodo para as cidades, surgindo novas demandas associadas aos direitos individuais. Por sua vez, o exercício desses direitos será assegurado com a garantia de outros direitos que possibilitem as condições fáticas para seu exercício. Nesse sentido, surgem os direitos de segunda geração, compostos pelos direitos sociais, culturais e econômicos, além dos direitos coletivos ou de coletividade. Bonavides (2008) assevera que assim como os direitos de primeira dimensão estavam para o século XIX, os de segunda dimensão estão para o século XX, sobretudo, com o advento do chamado Estado de bem-estar social (Wellfare State). Incialmente concebido nas esferas filosófica e política, com forte cunho ideológico marxiano, despontam em “Declarações solenes das Constituições marxistas e de maneira clássica no constitucionalismo da social-democracia (v.g. a Constituição de Weimar), dominaram por inteiro as Constituições do segundo pós-Guerra” (BONAVIDES, 2008, p. 564).
Frise-se, que nascem “abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula” (BONAVIDES, 2008, p. 564). Dessa feita, demandam prestações do Estado, as chamadas ações afirmativas, justificando a intervenção estatal como meio de viabilização da fruição e gozo igualitário de direitos. Nesse sentido, fala-se em políticas públicas enquanto ferramenta jurídica e política indispensável à efetividade desses direitos (DUARTE, 2013).
São exemplos de direitos de segunda geração: direito à moradia, direito à saúde, direito à cultura, direito à educação, salário-mínimo, licença-maternidade, dentre outros.
A terceira geração de direitos humanos e fundamentais corresponde aos direitos de solidariedade ou fraternidade. Surgem da “constatação da necessidade de atenuar as diferenças entre as nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, por meio da colaboração de países ricos com os países pobres” (NOVELINO, 2009, p. 363). São exemplos desses direitos: o direito ao desenvolvimento, direito ao meio ambiente, direito à autodeterminação dos povos, direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade, direito à comunicação, dentre outros de natureza transindividual e destinados à proteção do gênero humano (BONAVIDES, 2008; NOVELINO, 2009).
Por sua vez, os direitos de quarta geração correspondem, na concepção de Bonavides (2008), ao direito à democracia, direito à informação e direito ao pluralismo. Surgidos com o advento da globalização (e da ascensão do neoliberalismo), estes direitos “compreendiam o futuro da cidadania e correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social, sendo imprescindíveis para a realização e legitimidade da globalização política” (NOVELINO, 2009, p. 364).
Outro aspecto que vale o destaque é o fato de que os Direitos Humanos, apesar de seus movimentos precedentes, consolidaram-se como base dos ordenamentos jurídicos democráticos com o fim da Segunda Guerra Mundial. Antes desse período, a hegemonia juspositivista predominava em diversas áreas da sociedade, determinando verdades únicas em detrimento de outros saberes ou discursos (SANTOS, 1987). A obsessão pelo progresso e a crescente adesão a movimentos nacionalistas induziam as nações a adotarem a lei pela lei, sem reflexões de cunho moral – ou extrajurídico – possibilitando a instauração de políticas públicas de genocídio e extermínio, como visto na Alemanha nazista.
Apesar de num primeiro momento ser percebido como uma tragédia do povo judeu, o Holocausto foi compreendido como uma tragédia ocidental, e sua narrativa construída enquanto trauma coletivo e social, desencadeando como reação a formalização de instituições jurídicas transnacionais e do processo de internacionalização dos direitos humanos, caso da Declaração universal dos Direitos Humanos (ALEXANDER, 2014). Em mesmo sentido, Bauman (1998, p. 12) ressalta que o Holocausto é produto da civilização moderna e racional, executado “em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é um problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura”, e, por conseguinte, representa o fracasso da Modernidade.
Nessa perspectiva, representa o fracasso de um projeto moderno de sociedade à medida em que nossas construções identitárias sólidas e estanques, em regra, revestidas de preconceitos, nos levam à categorização de indivíduos, encontrando uns mais dignos e outros menos dignos.
Assim, creditar direitos humanos apenas ao dito cidadão de bem, importa na descaracterização do ser humano que não se encaixa no referido epíteto. Tal conceito, repleto de delimitações, e construções morais e excludentes, é tomado de modo arbitrário por aqueles que julgam estar em categoria superior, impondo uma lógica de subalternização, que pode ir desde a perspectiva do adversário ou, como mais recentemente incorporada na gramática política nacional, do inimigo (NOBRE, 2020), passível de exclusão e/ou eliminação. Esse tipo de discurso – de subalternização de uns, por aspectos econômicos, étnico-raciais, religioso, comportamentais, de gênero ou qualquer outro critério discriminatório – viola flagrantemente a consagração universal dos Direitos Humanos, baseada na afirmação de que todos nascem livres e iguais em direitos e dignidade.
A internacionalização dos Direitos Humanos busca impedir, inclusive por meio de declarações, órgãos multilaterais e sistemas internacionais de defesa, o surgimento de condições socioeconômicas e culturais similares àquelas que possibilitaram a formação de um cenário político-ideológico que culminou nas guerras mundiais e no Holocausto. Assim, o Direito repousa sobre novo alicerce, a saber o da dignidade da pessoa humana, a qual fundamenta o chamado Estado Democrático de Direito.
A adesão a políticas de afirmação de direitos humanos passa a ser a marca de países democráticos. Como dito, democracia não é o governo de alguns para alguns, mas se presta a desconstrução de privilégios para a afirmação e inclusão de direitos de grupos sociais vulnerabilizados pelo preconceito e exclusão.