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Engajamento Cívico de Pessoas Com Deficiência

Agenda 14/11/2023 às 16:24

Até os primórdios do século atual costumava-se utilizar a expressão pessoas com necessidades especiais e não pessoas com deficiência. Parece certo que tal uso expressava um sentimento de receio e se mostrava como uma espécie de disfarce, porquanto causava a impressão de que tais portadores, por serem diferentes dos demais não seriam capazes de viver normalmente em sociedade. Portanto, ela deve ter sido criada como uma maneira de amenizar uma determinada condição, uma tentativa de atenuar diferenças físicas e intelectuais que caberiam ser tratadas como ocorrências comuns presentes no nascimento ou adquiridas durante a vida.

Uma versão mais ampla aponta que a deficiência pode ser entendida como qualquer condição do corpo ou da mente que torna mais difícil para a pessoa fazer certas atividades e interagir com o mundo ao seu redor. Embora normalmente ela seja evidente também pode existir de maneira invisível na forma de uma condição física, intelectual ou neurológica que não é observável do exterior, mas pode limitar os movimentos, sentidos ou atividades de uma pessoa. Os sintomas de uma deficiência invisível podem incluir tonturas, fadiga, lesões cerebrais e diferenças de aprendizagem.

Este entendimento possibilita visualizar a deficiência em suas diversas manifestações. A física é definida como uma condição substancial que afeta uma parte do corpo de uma pessoa que prejudica ou limita seu funcionamento físico, mobilidade, resistência ou destreza. As causas desse tipo de deficiência são genéticas, doenças ou lesões. A intelectual é aquela que causa dificuldades com tarefas relativas ao autocuidado, segurança, comunicação e interações sociais. As causas mais comuns referem-se às condições genéticas, complicações durante a gravidez ou exposição a doenças como coqueluche ou sarampo.

A mental é designada como a limitação da capacidade intelectiva de uma pessoa, que pode ser causada por uma lesão cerebral ou desenvolvimento neurológico anormal. A doença mental afeta como uma pessoa se sente, se comporta e interage com os outros. Como uma deficiência invisível, você pode não ver imediatamente sinais de doença mental. Alguns tipos de doenças mentais incluem transtorno bipolar, depressão, esquizofrenia e bulimia. A sensorial é aquela que afeta a audição, visão, tato, olfato ou paladar de um indivíduo. Os tipos de deficiências sensoriais incluem transtorno do espectro autista, cegueira e perda auditiva. O transtorno do espectro autista inclui Síndrome de Asperger, transtorno do autismo e transtornos invasivos do desenvolvimento.

A história registra que a percepção relativa ao deficiente variou no decorrer do tempo. Na antiguidade ele não era visto como alguém que sofreu uma punição celestial e nem como um ente a ser discriminado, abandonado e até exterminado, haja vista que na Mesopotâmia muitos deles trabalhavam em templos religiosos como servos dos deuses e no Egito prestavam ajuda a idosos. Na Idade Média os mesmos eram encarados como seres possuídos pelo demônio, dotados de poderes de feiticeiros e bruxos, além de resultantes de castigos divinos.

No período moderno passaram a ser observados pelo ângulo científico através da procura de causas biológicas para as diferenças físicas e mentais bem como por meio do estabelecimento da categorização dos seres humanos. Na época contemporânea a concepção passou a amparar-se no movimento pelo direito dessas pessoas e no princípio da normalização cujo significado é o de colocar à disposição dos deficientes padrões de convívio e condições de vida cotidiana mais próximos possíveis das circunstâncias e modos de existência regulares da sociedade.

Consequentemente neste lapso atual da contemporaneidade a concepção de deficiência leva muito em conta a interação entre as pessoas que as portam e os óbices atitudinais e ambientais que dificultam e até impedem a ampla e a eficaz participação das mesmas no âmbito social em igualdade de oportunidades com os outros. Ela é acompanhada por uma substituição do modelo médico de deficiência. Em seu lugar é colocado o modelo social que afirma a necessidade da feitura de mudanças no espaço circundante favoráveis às pessoas que a trazem.

Cabe ressaltar que nos dias de hoje existem centenas de milhões de pessoas com deficiência no mundo. Somente no Brasil a cifra alcança algumas dezenas de milhões. Sem dúvida, potencialmente, eles constituem uma poderosa força política no âmbito das sociedades norteadas pelo regime democrático. É um contingente que não só tem o direito, mas também o dever de exercitar o engajamento cívico, seja para favorecer o conjunto de deficientes bem como as demais minorias discriminadas e os numerosos integrantes dos setores desprivilegiados da coletividade.

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Tal engajamento, também denominado cidadania ativa, encontra outra justificativa na organização econômica da sociedade. O neoliberalismo declinante que ainda teima prevalecer no âmbito social desconsidera a existência do cidadão, porquanto valoriza apenas a figura do consumidor. Já se sabe que as pessoas com deficiência encontram muitas dificuldades para conseguir uma vaga no mercado de trabalho que possibilita transformá-las em consumidores.

Entretanto, graças às pressões exercidas por diversos agentes sociais ocorreram diversos avanços na área ocupacional favoráveis aos deficientes. Assim sendo, é imprescindível que os mesmos continuem engrossando os movimentos coletivos destinados a garantir a existência da empregabilidade. Mais importante ainda é o envolvimento no combate aguerrido ao neoliberalismo haja vista que ele é o grande causador dos piores malefícios à vida comunitária.

As pessoas com deficiência não podem, de jeito algum, se comportar como cidadãos passivos, os quais constituem a grande maioria em todos os recantos do mundo, haja vista a persistente crise da democracia representativa. Com efeito, a maioria dos políticos, após serem eleitos, costumam se afastar da população, preferem permanecer acomodados em seus gabinetes, optam pelos conchavos entre seus pares, defendem o corporativismo e antepõem seus interesses particulares. Tais comportamentos não são favoráveis ao atendimento das demandas populares. Então, para se obter o acolhimento de uma reivindicação é necessário exercer pressão sobre eles por meio da ação coletiva.

Ressalte-se que as pessoas com deficiência precisam também pugnar para que haja condições adequadas à prática do próprio engajamento cívico, porquanto não é comum os governantes tomarem a iniciativa de estabelecê-las. E uma das mais necessárias diz respeito à acessibilidade. É muito importante buscar garantir a presença de espaços físicos, plataformas e informações disponíveis a todos. Inclui também pelejar pela facultação de recursos de interpretação de linguagem de sinais, material em braile, rampas, elevadores e outros expedientes facilitadores da atividade participativa.

Outrossim, devem batalhar pela estipulação da inclusão digital, através de plataformas específicas, sites, mídias sociais, aplicativos e afluência a informações e debates. Cabe ainda pleitearem a oferta de cursos de capacitação voltados para o desenvolvimento das habilidades de liderança e comunicação que permitam a expressão de interesses, anseios e preocupações de maneira eficaz.

Vale destacar que essa luta a favor dos direitos das pessoas com deficiência parece ter começado nos Estados Unidos da América do Norte. De fato, é sabido que nas décadas de 1940 e 1950, veteranos deficientes da Segunda Guerra Mundial colocaram uma pressão crescente sobre o governo para fornecer-lhes reabilitação e treinamento vocacional. Observe-se que os mesmos tornaram as questões da deficiência mais visíveis para um país de cidadãos agradecidos que estavam preocupados com o bem-estar a longo prazo de jovens que sacrificaram suas vidas para garantir a segurança do país.

Nessas duas décadas surgiram publicações e campanhas defensoras das pessoas com deficiência. Na década seguinte seus participantes uniram forças com os movimentos pelos direitos civis. Em 1973 foi aprovada a Lei de Reabilitação destinada a eliminar a discriminação em programas e serviços financiados pelo governo federal e em seguida emergiu a Lei de Educação Para Todas as Crianças Deficientes. No ano de 1990 foi promulgada a Lei dos Americanos com Deficiência garantidoras das mesmas oportunidades pertinentes aos não deficientes.

A partir dos anos quarenta do século passado começaram a surgir organizações compostas e lideradas pelos próprios deficientes que passaram a batalhar pela conquista das prerrogativas acalentadas. A primeira delas, a Federação Nacional dos Cegos emergiu em 1940. Na sequência apareceram a Associação Espinhal Unida em 1946; Gente Pequena da América em 1957, integrada por indivíduos portadores de nanismo; Associação de Perda Auditiva da América em 1979; ADAPTAR constituída por deficientes que pregam até a desobediência civil em suas ações; Auto Defensores e Empoderados em 1990 e Rede de Autodefesa do Autista em 2006 dentre muitas outras.

No continente europeu um estudo atual revelou que os deficientes apresentam algumas características que chamam a atenção. Mostrou que eles revelam baixos níveis de confiança, interesse político e participação eleitoral. Constatou que tais níveis tem a ver com educação, renda, emprego e contato social pertinentes aos mesmos, ou seja, eles evidenciam ter menos recursos econômicos, insuficiência educacional e pouca integração social. São menos propensos ao comparecimento às urnas, percebem o sistema político como menos responsivo, expõem atenuada confiança no parlamento, nos partidos e nos políticos. Têm consciência de que certos tipos de deficiência podem dificultar muito o acesso a informações políticas, a participação em reuniões e eventos de grupos e ao abeiramento à seção eleitoral, além das barreiras físicas e psicológicas.

Possivelmente estas revelações aliadas à tese de que a desigualdade no comprometimento político entre diferentes grupos sociais pode ser prejudicial à saúde das sociedades democráticas devem ter levado os governantes a estabeleceram uma política pública para as pessoas com deficiência. Acrescente-se ainda outro motivo, qual seja, vários milhões de europeus possuem alguma deficiência os quais constituem a maior minoria dentre as várias existentes.

A atual política da União Europeia em relação à deficiência se baseia num compromisso explícito com o modelo social da deficiência o qual se apoia no desenvolvimento de um conjunto de programas de ação comunitários. Ele leva em conta o Tratado de Amsterdam de 1999 o qual estabeleceu que a deficiência tem que ser considerada como uma questão de direito. Está em sintonia também com a Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2006 que fixou as normas mínimas de cumprimento obrigatório por parte dos governos visando garantir os direitos civis, políticos, econômicos e sociais dos indivíduos deficientes.

Este empenho dos governos europeus não conduziu as pessoas com deficiência a se acomodarem. Ao contrário, uma grande quantidade delas continuou se mobilizando no sentido da estruturação de associações defensoras de múltiplos interesses. A maior e a mais importante delas é o Fórum Europeu das Pessoas com Deficiência, uma organização não governamental independente que reúne instituições representativas de pessoas com deficiência de toda a Europa.

Por outro lado, quase todos os países que integram a Comunidade Europeia possuem muitas entidades constituídas e dirigidas por pessoas com deficiência, as quais se movimentam e labutam pela conquista e consolidação de suas prerrogativas. A título de exemplos seguem algumas delas: Central England People First, Reino Unido; Action Dignité Humaine, França; Galway Centre for Independant Living, Irlanda; Kompetenzzentrum Barrierefrei Planen und Bauen, Alemanha; Associação Paraplégica e de Deficiente Físico, Espanha; Stockholm Cooperative for Independent Living, Suécia; ULOBA - usercooperative, Noruega; Alternative Camp, Turquia; Associação de Vida Independente de Avitoscana, Itália.

Em nosso país os caminhos seguidos foram peculiares. E a história revela que as primeiras manifestações a respeito dos direitos das pessoas com deficiência datam das décadas de sessenta e setenta do século passado. Neste lapso ocorreram mobilizações em alguns setores da sociedade favoráveis aos indivíduos deficientes, as quais contribuíram para que o Estado assumisse o desenvolvimento de políticas destinadas a atender esse grupo social.

Após tal momento apareceu uma lei datada de 1989 e um decreto de 1999 garantidores da cidadania das pessoas com deficiência. Logo a seguir, isto é, em 2000, foram promulgadas mais duas leis fixadoras das normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. No ano de 2007 o Governo Federal editou o Programa de Direitos de Cidadania das Pessoas com Deficiência.

No ano de 2015 passou a vigorar a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência que traz regras e orientações para a promoção dos direitos e liberdades dos deficientes com o objetivo de garantir a essas pessoas inclusão social e cidadania. A política atual, em sintonia com os artigos 23 e 24 da Constituição Federal, fixa como proposição central a reabilitação da pessoa portadora de deficiência, a proteção de sua saúde, a inclusão nas múltiplas esferas da vida social e a prevenção dos agravos causadores do surgimento de deficiências.

Essas ocorrências positivas não estimularam todas as dezenas de milhões de indivíduos com deficiência a se manterem acomodados em suas casas. Ao contrário, é bastante notório o incisivo e contumaz protagonismo de muitos brasileiros deficientes no decorrer dos anos. Diversos acontecimentos mostram a existência de uma comprovação sobejante, tais como os que se seguem, dentre vários outros.

Criação da Associação de Deficientes Físicos do Rio de Janeiro em 1977, participação no movimento global relativo à organização do Ano Internacional da Pessoa Deficiente em 1979, I Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Com Deficiência, campanha para a eleição de colegas deficientes a vários cargos políticos nos anos oitenta, I Congresso Brasileiro das Pessoas Com Deficiência em 1981, criação de grupos de resistência e oposição ao regime militar e defesa das demandas populares nessa mesma data, estabelecimento do 21 de setembro como o Dia Nacional de Luta também em 1981, criação em 1984 da Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos, Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos, Movimento de Reintegração dos Hansenianos, em 1985 apareceu a Sociedade Brasileira dos Ostomizados e em 1987 surgiu a Associação de Paralisia Cerebral do Brasil.

Ressalte-se que o ano de 1988 foi muito importante para o país por causa da elaboração da nova Constituição Federal e pela proliferação de manifestações sociais favoráveis à redemocratização. Diversos movimentos nacionais integrados por pessoas deficientes participaram do processo da Constituinte e muitas propostas favoráveis aos anseios de indivíduos com deficiência foram incorporadas à Carta Magna. Observe-se que outras conquistas se seguiram. Em 1991 emergiu uma lei estabelecedora de cotas de contratação de pessoas deficientes, em 1994 foi criado o Passe Livre, em 1996 a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional reconheceu a educação como recurso fundamental para a integração e participação dos indivíduos com deficiência.

No atual século houve a II Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Com deficiência em 2008 cujas principais decisões foram incorporadas no Programa Nacional dos Direitos Humanos de 2009, em 2016 aconteceu o I Encontro Brasileiro de Pessoas Autistas, em 2018 ocorreu um manifesto contra o avanço do fascismo e o apoio ao então candidato Fernando Haddad, e em 2022 emergiu um encontro com Lula para debater o tema da inclusão onde ele anunciou a realização de uma nova conferência nacional sobre o tema e conclamou a sociedade à democracia participativa.

Sem dúvida essas realizações e avanços, muito relevantes para o conjunto das pessoas deficientes, mostram o valor e a força do engajamento cívico e do exercício da cidadania ativa. Entretanto, os mesmos não têm se revelado suficientes para a resolução das demandas existentes. Note-se que os espaços da maioria de nossas cidades não são adequados aos deficientes, um elevado número de educadores ainda não está preparado para lidar com alunos portadores de deficiência, o mercado de trabalho apresenta pouca oportunidade a eles, além de não disponibilizar a ergonomia necessária e não oferecer a capacitação requerida. Por sua vez, governantes e parlamentares revelam diminuto interesse em concretizar medidas prometidas e atendar novas reivindicações. Tais ocorrências indicam, de modo claro, que as pessoas com deficiência necessitam prosseguir batalhando muito para que suas querências continuem sendo viabilizadas..

Sobre o autor
Antônio Carlos Will Ludwig

Professor Aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)

Informações sobre o texto

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