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Armas de fogo para civis: uma linha tênue entre a proteção e o perigo

RESUMO

O presente artigo analisa o atual cenário marcado por altos níveis de violência e insegurança pública, e que diante dos meios de autodefesa, sendo um deles o armamento civil, se este é um meio eficaz de combater a criminalidade e a inseguridade, o que acaba acarretando em discussões sobre o assunto supracitado. Para o desenvolvimento do trabalho foi utilizado um método de abordagem pelo aporte bibliográfico, buscando identificar no processo de construção de conhecimento, compreender e sanar as principais questões dentro da temática, proteção/perigo das armas de fogo e sua difusão na sociedade. Ao final, concluiu-se que o armamento civil não é um meio eficaz para reduzir a violência, uma vez que o fácil acesso a armas pela população civil, acaba agravando os conflitos interpessoais, ocasionando um considerável aumento estatístico nas mortes por agressões armadas. No mais, perfaz-se também que as medidas e políticas públicas, como: Estatuto do Desarmamento e decretos de lei, entre outros. São os meios mais competentes e menos arriscados para cercear e estabilizar os delitos cometidos por armas de fogo no Brasil.

Palavras chave: Armas de fogo; Posse e porte; Proteção; Perigo; Sociedade.

ABSTRACT

This article analyzes the current scenario marked by high levels of violence and public insecurity, and considering the means of self-defense, one of which is civil weapons, whether this is an effective means of combating crime and insecurity, which ends up causing in discussions on the aforementioned subject. To develop the work, a bibliographical approach method was used, seeking to identify in the process of knowledge construction, understand and resolve the main issues within the theme, protection/danger of firearms and their dissemination in society. In the end, it was concluded that civilian weapons are not an effective means of reducing violence, since easy access to weapons by the civilian population ends up aggravating interpersonal conflicts, causing a considerable statistical increase in deaths due to armed aggression. Furthermore, it also includes public measures and policies, such as: Disarmament Statute and law decrees, among others. They are the most competent and least risky means of limiting and stabilizing crimes committed with firearms in Brazil.

KEY-WORDS: Firearms; Possession and carrying; Protection; Danger; Society.

  1. INTRODUÇÃO

Em meio a um cenário caracterizado por elevados níveis de violência e insegurança pública, é necessário refletir sobre os recursos disponíveis para a autodefesa. Implicando-se no uso de armas de fogo, surgindo assim, a atual lei n° 10.826/2003 - Estatuto do Desarmamento, que pode ser exposta de forma dúbia em termos dos seus objetivos, por vezes eficazes e por vezes ineficazes.

Vale ressaltar que, com o advento do aludido Estatuto, há maiores obstáculos a aquisição de armas de fogo por pessoas comuns para resolver pequenos conflitos. Portanto, é consensual que esta norma salvou inúmeras vidas (SANTOS; KASSOUF, 2012).

Contudo, é de suma importância o questionamento de até que ponto a vigência do Estatuto se faz necessária e efetiva à segurança pública brasileira, uma vez que os considerados “cidadãos de bem” encontram-se desarmados e sem a possibilidade de porte, enquanto que aqueles que se conflituam com a lei acabam por ter acesso ilegal às armas, deixando, assim, uma desigualdade entre os pares, o que evidencia uma desproteção desse “cidadão de bem” que, muitas vezes, não tem como defender a si e a sua família.

Dessarte, dada a relevância da segurança pública para o contexto social brasileiro, e considerando que a liberação (ou não liberação) de armas de fogo em poder de cidadãos comuns afeta diretamente o desenvolvimento e a evolução das políticas públicas relacionadas a esse tema, este artigo tem como objetivo propor uma análise de um assunto bastante discutido pela sociedade e o poder executivo, com o seguinte questionamento: armamento civil, proteção ou perigo?

Dessa forma, justifica-se a importância desse tipo de pesquisa, principalmente no que diz respeito à apresentação de perspectivas positivas e negativas que devem ser consideradas para a compreensão e o saneamento de questões conceitualmente relacionadas. Ademais, o estudo foi elaborado com dedicação, através de uma ampla pesquisa teórica sobre os principais pontos relevantes da temática, mediante o uso de doutrinas, jurisprudências existentes, legislações, sites, estatísticas, e demais formas de consulta.

A presente pesquisa se compõe em três partes, a saber: Primeiramente, aponta-se uma sobre as armas de fogo no Brasil, apresentando o conceito de arma de fogo, a diferença entre armas de uso permitido e restritos, os institutos da posse e porte e o comércio ilegal de armas de fogo. Além disso, discute e observa a evolução histórica da legislação brasileira sobre o tema. Por conseguinte, o Estatuto do desarmamento e o direito de defesa como garantia fundamental e por último apresenta-se as duas vertentes da discussão em suma, mostrando também, como o ser humano se comporta diante de fortes emoções, bem como a relação entre os crimes e armas de fogo e as estatísticas de violência no Brasil.

  1. DA ANÁLISE DAS ARMAS DE FOGO NO BRASIL

Antes de iniciarmos a pesquisa sobre o armamento civil e seus desdobramentos, é importante destacar o conceito de arma de fogo, pois, é através desse instrumento que terá uma concepção a população em si entende ou descreve determinado conceito. Ademais, as caracterizações do armamento também se enquadram no mesmo pensamento, visto que, será necessário para melhor entendimento.

No mais, se faz imperioso, analisar e expor sobre como a utilização das armas passam por um processo histórico ao longo do tempo com sucessões de acontecimentos que ficaram marcados na civilização.

  1. CONCEITO DE ARMA DE FOGO

Arma é conceituada como qualquer instrumento adequado para ataque ou defesa e destinado a causar danos ou matar.

O Decreto n° 10.030, de 30 de setembro de 2019, cita em seu glossário a seguinte definição de arma de fogo:

[...] arma que arremessa projéteis empregando a força expansiva dos gases, gerados pela combustão de um propelente confinado em uma câmara, normalmente solidária a um cano, que tem a função de dar continuidade à combustão do propelente, além de direção e estabilidade ao projétil.

Lado outro, segundo o jurista brasileiro Heleno Fragoso, arma “é o instrumento em condições de ser utilizado ou que pode a qualquer instante ser posto em condições de ser usado para o ataque ou a defesa”.

Assim sendo, percebe-se que, o conceito de arma de fogo é muito abrangente, no entanto, seja qual for a definição constata-se, em sentido amplo, que este artefato sempre esteve a “serviço” do indivíduo para fins de ataque ou defesa deste.

  1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

No Brasil, o código Filipino, foi o primeiro conjunto de leis que começou a tratar sobre a temática, vigorando nos anos de 1603 a 1830, regendo o ordenamento jurídico brasileiro, sendo livro V responsável pelo Direito Penal. Sendo assim, a legislação supracitada já expressava uma preocupação com o porte de armas, sejam elas armas de fogo ou armas brancas, tendo em vista que no título LXXX de seu código, já previa:

Defendemos que pessoa alguma, não traga em qualquer parte de nosso Reinos, péla de chumbo, nem ferro, nem de pedra feitiça; e sendo achado com ella, seja preso, e stê na Cadêa hum mez, e pague quatro mil réis, e mais seja açoutado publicamente com baraço, e pregão pela Cidade, Villa, ou lugar onde fôr achado.

Deste modo, é notório que naquela época, por volta do século XIX, a palavra arma de fogo não era algo comum no Brasil, tendo em vista que o enunciado não tratava da mesma, e sim de objetos comuns à época, no quais obtinham uma potencialidade menor, no entanto, já se prelecionava uma punição severa: a de açoitamento em praça pública.

Já em 1930, com a vigência do Código Criminal do Império, a norma trouxe consigo no capítulo V, no artigo artigos 297 e 298, sobre o uso de armas de defesa, com a seguinte redação:

Art. 297. Usar de armas ofensivas, que forem proibidas. Penas – de prisão por quinze a sessenta dias, e multa correspondente a metade do tempo, além da perda das armas.

Art. 298. O uso, sem licença de pistola, bacamarte, faca de ponta, punhal, fivelas ou qualquer outro instrumento perfurante, será punido com a pena de prisão com trabalho por um a seis meses, duplicando-se na reincidência.

Se faz oportuno ressaltar que, naquela época ainda não se fazia distinção de posse e porte de armas. Foi apenas em 1890 que o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, o primeiro código penal da República do Brasil, então recém-proclamada, tipificou o porte irregular, como infração branda, livro das Contravenções em espécie, com pena de prisão celular por 15 a 60 dias.

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Posteriormente, o decreto n° 24.602 de 06 de julho de 1934 instaurou juntamente com a responsabilização penal, o controle administrativo da fabricação e comercialização de armas, munições e explosivos pelo Exército Brasileiro, que preconizava:

Art. 1º Fica proibida a instalação, no país, de fábricas civis destinadas ao fabrico de armas e munições de guerra. Parágrafo único. É, entretanto, facultativo ao Governo conceder autorização, sob as condições:

a) de ser aceita uma fiscalização permanente nas suas direções

administrativas, técnica e industrial, por oficiais do Exército, nomeados pelo Ministro da Guerra, sem ônus para a fábrica;

b) de submeter-se às restrições que o Governo Federal julgar conveniente determinar ao comércio de sua produção para o exterior ou interior;

c) de estabelecer preferência para o Governo Federal na aquisição dos seus produtos.

Dessarte, no que se refere às discussões acerca da necessidade de uma lei nacional que regulasse a venda e posse de armas de fogo no Brasil, foi no início dos anos 80 que o governo se deparou com um aumento vertiginoso dos índices de criminalidade, o que levou à compreensão da necessidade de uma política pública para impor limites à questão.

No entanto, se deparou com um setor da população que advoga por uma sociedade armada, justificando-se na necessidade de proteção e trazendo debates que perduram até os dias presentes. (QUINTELA; BARBOSA, 2013).

Ao longo da trajetória histórica, o crescimento da criminalidade e a ausência de punições efetivas levaram o Governo Federal a adotar uma postura mais rígida na repressão ao porte ilegal de armas de fogo, resultando na promulgação da Lei 9.437 de 1997. Posteriormente, essa lei praticamente anulou o direito do cidadão brasileiro de possuir armas de fogo, por meio da implementação da Lei 10.826 de 2003 (SHMOLLER, 2018).

Entretanto, em decorrência dos problemas manifestados pela secretaria de segurança pública e do aumento descontrolado de delitos envolvendo armas, o assunto da violência começou a ser discutido pelos meios de comunicação e organizações não governamentais. Dessa forma, despertou-se o interesse em reformar a legislação do controle de armas de fogo, pois o governo considerava o sistema ainda inadequado.

Por fim, ao término de vários debates acerca do tema, em 09 de dezembro de 2003, a lei 9.437/97 foi ab-rogada pelo Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03), que atualmente está vigente e trata do registro, posse e venda de armas de fogo e munição, bem como estabelece o Sistema Nacional de Armas de Fogo - SINARM, além de definir crimes e outras providências.

  1. ARMAS DE USO PERMITIDO, RESTRITO E PROIBIDO

As armas de fogo de uso permitido são aquelas acessíveis à população em geral, de acordo com a redação do art. 11 do Decreto nº 11.615, de 21 de julho de 2023, a seguir:

Art. 11. São de uso permitido as armas de fogo e munições cujo uso seja autorizado a pessoas físicas e a pessoas jurídicas, especificadas em ato conjunto do Comando do Exército e da Polícia Federal, incluídas:

I - armas de fogo de porte, de repetição ou semiautomáticas, cuja munição comum tenha, na saída do cano de prova, energia de até trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete joules, e suas munições;

II - armas de fogo portáteis, longas, de alma raiada, de repetição, cuja munição comum não atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules; e

III - armas de fogo portáteis, longas, de alma lisa, de repetição, de calibre doze ou inferior.

Parágrafo único. É permitido o uso de armas de pressão por ação de gás comprimido ou por ação de mola, com calibre igual ou inferior a seis milímetros, e das que lançam esferas de plástico com tinta, como os lançadores de paintball.

Já as armas de uso restrito são aquelas acessíveis apenas a certos órgãos ou pessoas, restando vinculadas a uma atividade específica (segurança pública, defesa nacional, caça, esporte ou colecionamento). Como assim preconiza o art. 12 do Decreto nº 11.615, de 21 de julho de 2023, a seguir:

Art. 12.  São de uso restrito as armas de fogo e munições especificadas em ato conjunto do Comando do Exército e da Polícia Federal, incluídas:

I - armas de fogo automáticas, independentemente do tipo ou calibre;

II - armas de pressão por gás comprimido ou por ação de mola, com calibre superior a seis milímetros, que disparem projéteis de qualquer natureza, exceto as que lancem esferas de plástico com tinta, como os lançadores de paintball;

III - armas de fogo de porte, cuja munição comum tenha, na saída do cano de prova, energia superior a trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete joules, e suas munições;

IV - armas de fogo portáteis, longas, de alma raiada, cuja munição comum tenha, na saída do cano de prova, energia superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules, e suas munições;

V - armas de fogo portáteis, longas, de alma lisa:

a) de calibre superior a doze; e

b) semiautomáticas de qualquer calibre; e

VI - armas de fogo não portáteis.

Por fim, as armas de uso proibido conforme o Decreto 11.615/2023, se definem como:

Art. 14.  São de uso proibido:

I - as armas de fogo classificadas como de uso proibido em acordos ou tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja signatária;

II - os brinquedos, as réplicas e os simulacros de armas de fogo que com estas possam se confundir, exceto as classificadas como armas de pressão e as réplicas e os simulacros destinados à instrução, ao adestramento ou à coleção de usuário autorizado, nas condições estabelecidas pela Polícia Federal;

III - as armas de fogo dissimuladas, com aparência de objetos inofensivos; e

IV - as munições:

a) classificadas como de uso proibido em acordos ou tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja signatária; ou

b) incendiárias ou químicas. 

  1. POSSE E PORTE DE ARMA DE FOGO

Um dos conceitos mais importantes de se examinar é a definição de posse e porte de arma de fogo. No porte, podemos supor que o objeto está junto com o indivíduo, isto é, fora da residência ou local de trabalho dele (extra muros). Já na posse, temos a arma sob a dependência do domicílio daquele que obtiver a autorização; o objeto é mantido dentro da residência (intra muros). Aqueles que possuem apenas licença para posse de arma não podem carregá-la, correndo o risco de perder a autorização.

Entretanto, a definição de posse e porte de arma de fogo é presumida no escopo da lei n°10.826/2003, mais conhecida como o Estatuto do Desarmamento, através da tipificação de “posse irregular de arma de fogo” e “porte ilegal de arma de fogo.

Quanto a posse irregular de arma de fogo, o art. 12, da Lei nº 10.826/03 dispõe o seguinte:

Posse irregular de arma de fogo de uso permitido

Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa.

É nítido que, o legislador ao definir a conduta da posse irregular, buscou separar claramente a ação de guardar a arma de fogo, da ação de transportar a mesma. Quando o agente está na posse da arma de fogo, mas não tem autorização adequada do poder público, então teremos a situação de posse irregular.

Não obstante, quanto o porte ilegal de arma de fogo, preconiza o art. 14, da Lei nº 10.826/03, in verbis:

Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

A partir da leitura dos artigos supracitados, é factível distinguir as discrepâncias entre a posse e o porte. Conforme Capez (2020, p. 665), a definição de porte de arma de fogo consiste exatamente no oposto da conduta de posse irregular, ou seja, quando o indivíduo tem em seu domínio a arma "fora do domicílio ou de sua dependência", vejamos:

Assim, se o fato ocorre no interior da residência ou dependência desta, ou no local de trabalho, aperfeiçoa-se o delito de posse ilegal (art. 12 – Pena: detenção, de um a 3 anos, e multa); se fora, o de porte ilegal (art. 14 – Pena de reclusão, de 2 a 4 anos, e multa). No primeiro, a autorização para possuir o artefato é o certificado de registro de arma de fogo (art. 5º), enquanto no segundo é expedida a autorização para o porte do artefato (arts. 6º a 11).

  1. COMÉRCIO ILEGAL DE ARMAS DE FOGO

O comércio ilegal de armas de fogo está tipificado como crime no art. 17 do Estatuto do Desarmamento, a seguir:

Comércio ilegal de arma de fogo

Art. 17. Adquirir, alugar, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, adulterar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena - reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, e multa. 

Vale frisar que, de acordo com o Ministério da Justiça, atualmente, mais da metade das 16 milhões de armas de fogo em circulação no país nunca foram registradas no Sistema Nacional de Armas (Sinarm). Aquelas que foram registradas estão, em sua maioria, em situação ilegal, já que não foram renovadas. Em 2010, havia 8.974.456 armas de fogo com registro ativo.

No entanto, em 2012, esse número caiu drasticamente para apenas 1.291.661. Consequentemente, 7.682.795 armas encontram-se em situação ilegal.

É evidente que, mesmo adquiridas legalmente, as armas são compelidas, e acabam recaindo sobre a ilegalidade, e é justamente neste momento que o contrabando ganha mais força. Natália Pollachi explica que “por a gente ter mais armas legais em circulação, fica muito mais fácil de ter armas indo da legalidade para o mercado ilegal”.

  1. O ESTATUTO DO DESARMAMENTO E O DIREITO DE DEFESA COMO GARANTIA FUNDAMENTAL

O Estatuto do Desarmamento entrou em vigor no Brasil no ano de 2003, propondo um aprimoramento no que tange a eficácia do controle de posse, porte e comercialização de armas e munições no país.

Em contrapartida, existem discussões sobre o assunto que tratam dos direitos fundamentais abordados na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º caput, sobre a vida, liberdade, segurança e propriedade. Também se destaca o direito de legítima defesa expresso no caput do artigo 25 do Código Penal brasileiro e o artigo 23, inciso II, que versam sobre a exclusão de ilicitude, garantindo, assim, a proteção legal para a legítima defesa. Embora o direito de defesa não esteja mencionado explicitamente no texto da Constituição Federal, é importante notar que está implicitamente previsto. Analisemos o texto constitucional em seu artigo 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes nos 31 Países a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. (BRASIL, 1988).

Assim sendo, subtende-se que o direito a ter o porte de arma, fica implícito, considerando que a arma de fogo é um instrumento cujo pode ter serventia para o uso como mecanismo de defesa, logo, partindo dessa premissa, com a promulgação do Estatuto supracitado, foi retirado do cidadão o direito de portar uma arma de fogo. Consequentemente, isso significa que seus direitos fundamentais foram violados - direitos que são inerentes à humanidade e protegidos pela Constituição Brasileira: o direito à liberdade e à autodefesa.

Portando, observa-se que, ao negar ao cidadão o direito de possuir uma arma de fogo, o Estado está, na verdade, privando-o de sua liberdade, conforme mencionado por (Menezes ,2014), para quem a liberdade é considerada um direito fundamental, caracterizado pela habilidade do indivíduo em resistir à coerção.

  1. ARMAMENTO CIVIL, PROTEÇÃO/PERIGO

Neste capitulo, pretende-se, apresentar algumas perspectivas sobre a ilusória sensação de segurança em relação à posse e ao porte de armas, podendo ser até mesmo considerado um perigo.

  1. O SER HUMANO E SUAS FORTES EMOÇÕES

Se faz oportuno destacar que, o ser humano por diversas vezes é levado por suas emoções, sob essa perspectiva, Ekman (2011, p. 13) explica que as emoções são mais relevantes do que pensamos:

As emoções determinam nossa qualidade de vida. Elas acontecem em todos os relacionamentos que nos interessam: no trabalho, em nossas amizades, nas interações familiares e em relacionamentos íntimos. Podem salvar nossas vidas, mas, também, causar danos. Podem nos fazer agir de um modo que achamos realista e apropriado, mas também nos levar a agir de maneira extrema, causando arrependimento mais tarde. (Ekman, 2011).

Salienta-se que, a agressividade pode surgir não só dos valores que nos são atribuídos, mas também da mente humana. Ou seja, podemos agir de forma agressiva devido aos nossos impulsos, dependendo da situação que ocorre ali no momento e de acordo com as nossas emoções.

Outrossim, é notório que com a posse e o porte de armas, a tendência é que a violência se agrave devido à facilidade de acesso à arma, ou seja, fica mais fácil alcançar a arma se você tiver a posse e estiver dentro de sua residência. Uma vez que um indivíduo é dominado por fortes emoções, ele tende a agir e não considerar as consequências futuras, não usando a arma para se proteger, mas sim para vingança, raiva ou algo semelhante. Logo após o ato, ele pode se arrepender por ter sido levado por uma emoção violenta, mas o dano causado a outra pessoa será irreparável.

Ekman (2011, p. 130) explica sobre a emoção raiva, mostrando que podemos fazer algo “inconscientemente” vindo de arrependimento posterior:

As pessoas se arrependem do que disseram em um momento de raiva. Em seu pedido de desculpas, explicam que estavam dominadas pelo sentimento e postulam que o que disseram não foi exatamente o que queriam dizer; suas atitudes e crenças verdadeiras foram distorcidas pelo poder dessa emoção. A frase “perdi a cabeça”, facilmente enquanto resta um traço de raia e podem não desfazer o dano cometido.

Isto posto, surge a necessidade dos seguintes indagamentos e afirmações: Quando o assunto é escolha inapropriada de palavras, o prejuízo pode não ser tão grave. Mas e se considerarmos o estrago que pode ser causado quando se está furioso e segurando uma arma de fogo na mão? O dano pode ser consertado? Contudo, compreende-se que o ser humano, quando une o armamento à emoção da raiva, pode acabar cometendo um homicídio do qual se arrependerá mais tarde ou até mesmo causar ferimentos irrecuperáveis.

Um exemplo claro do que foi dito anteriormente é o caso do policial que matou dois colegas em São Paulo, em um momento de fúria, vejamos:

Um homem calmo, educado, respeitoso e, principalmente, gentil.

Assim é descrito o sargento Claudio Henrique Frare Gouveia, de 53 anos, por conhecidos, colegas de farda, comerciantes próximos ao batalhão onde ele trabalhava, nas redes sociais e por alunos de uma associação onde ele ensinava patinação.

Mas, num dia de fúria, na segunda-feira (15/5), ele teria usado um fuzil para matar dois colegas de farda, o sargento Roberto da Silva e o capitão Josias Justi, comandante da PM na cidade de Salto, no interior de São Paulo. Em seguida, Gouveia se entregou a outro sargento.

A motivação do crime ainda não foi esclarecida oficialmente, mas a reportagem apurou que o duplo homicídio pode ter sido provocado por frequentes desentendimentos entre os policiais, principalmente por conta das escalas de trabalho. (G1, 2023).

É visível que em situações de descontrole emocional, como no caso apresentado, mesmo sendo um policial com um vasto treinamento, capacitações e detentor de aptidões que o cargo necessita, quando se deparou com um momento de fúria acabou usando da arma de fogo que tinha acesso para ferir letalmente seus dois colegas de trabalho. Logo, se um individuo dotado de todas as capacidades mencionadas, chegou a cometer determinada violência, tal premissa nos leva a crê que um cidadão comum ficaria mais suscetível a cometer tal delito se estivesse ao alcance de uma arma de fogo em situações conflitantes.

  1. RELAÇÃO ENTRE CRIMES E ARMAS DE FOGO

Para a Ciência, a confluência dos estudos é praticamente unânime sobre a ligação entre a propagação das armas de fogo e crime.

No Atlas da Violência 2019 (p.78) é apresentado um resumo interessante sobre o assunto, no qual diversos estudos indicam, inclusive aqueles baseados em revisões sistemáticas da literatura, mostram de forma clara os resultados de que a maior ocorrência de armas de fogo está ligada a taxas mais altas de homicídios, feminicídios, suicídios na sociedade e acidentes fatais envolvendo armas, incluindo crianças e adolescentes.

As pesquisas científicas explicitam que a disseminação de armas de fogo não somente atenta contra a segurança dos próprios domicílios dos indivíduos que as possuem, mas também um fator de ameaça para toda a sociedade, ao contrário do que pensa a população em geral.

O risco da propagação de armamentos para aumentar a taxa de crimes violentos - incluindo mortes resultantes de conflitos interpessoais e feminicídios tem sido alvo de diversas análises presentes nas edições anuais do Atlas da Violência. Nesses relatórios é destacada a existência de um desequilíbrio no debate, no qual, de um lado, encontram-se provas científicas empíricas e, do outro, a retórica pró-armamentos para autodefesa, sustentada pelos seus defensores, porém sem dados robustos que comprovem correlação entre a defesa eficaz do patrimônio, do possuidor ou dos entes familiares, com uso de armas de fogo por cidadãos comuns.

Nessa linha de estudos, nota-se que uma parte significativa dos crimes violentos letais intencionais é perpetrada por questões interpessoais, como briga de vizinhos, brigas no trânsito, discursões familiares, traições, brigas de bar e demais conflitos cotidianos, onde as armas de fogo uma vez presentes nesses cenários, têm o potencial de tonar as hostilidades muito mais violentas e fatais.

Pesquisas baseadas em dados numéricos foram unânimes em constatar não somente a existência de uma relação positiva entre armas e homicídios no Brasil, mas também a contribuição do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) no sentido de frear o aumento da violência armada no país.

Dessa forma, é perceptível que quanto maior a incidência de armas de fogo na sociedade, maior será os riscos de acidentes domésticos, autolesões, constituindo também, o alto potencial em agravar os diversos conflitos sociais, uma vez que possuem um grande poder de lesividade, facilidade para ocultação, manuseio simples nas armas mais comuns (revólveres e pistolas) e baixa possiblidade de defesa do agredido.

  1. ESTATISTÍCAS DE VIOLÊNCIA NO BRASIL

Muitos institutos de pesquisas e trabalhos acadêmicos utilizam apenas dados brutos sobre os homicídios no Brasil para produção de achados estatísticos, sem levar em consideração os diversos cenários, mudanças demográficas, percentual de incidência de armas de fogo sobre o total de mortes, séries históricas sem antes e depois de criação de políticas públicas ou de leis que foram adotadas para tentar barrar o aumento histórico da violência armada.

Nesse sentido, neste trabalho foram usados recortes de dados onde se tenta precisar com maior fidedignidade e comparabilidade a adoção de medidas como a Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, e sua eficácia no controle de homicídios por armas de fogo no Brasil.

Com o intuito de analisar e corroborar as informações contidas neste escrito, faz-se necessário trazer alguns dados colhidos nas diversas pesquisas e do acesso a canais que oferecem dados confiáveis para subsidiar a confecção de materiais autênticos.

Incialmente foi feito um levantamento de dados de mortes violentas no país desde 1980 até 2021, com ênfase nas mortes causadas exclusivamente por armas de fogo, excluindo-se desses dados as mortes causadas por Intervenções legais e operações de guerra, uma vez que o objetivo é demonstrar dados relativos aos cidadãos comuns.

Para se ter uma melhor uniformidade entre as diferentes épocas e anos, foi utilizado a quantidade de homicídios causados por armas de fogo a cada 100 mil habitantes, pois com o uso de um denominador comum, é possível evitar distorções entre os diferentes números de habitantes existentes.

Fontes: DATASUS – SIM – Sistema de Informações sobre Mortalidade e IBGE.

Notas: 1980 a 1995 - CID-9: Homicídios e lesões provocadas intencionalmente por outras pessoas;

E965 - Ataque com armas de fogo ou explosivo; E985 - Lesão com arma fogo e explosivos ig. acid. int.

1996 a 2021 - CID-10: Agressões

W32 - Projétil de revolver; W33 - Rifle, espingarda e armas fogo de maior tamanho; W34 – Projé teis de outras armas de fogo e das não especificadas (NE); X93 - Agressão por disparo de arma de fogo de mão; X94 - Agressão por disparo de arma fogo de maior calibre; X95 - Agressão por disparo de outra arma de fogo ou NE; Y22 - Disparo de pistola intenção não determinada; Y23 - Disparo de arma fogo de maior calibre de intenção não determinada; Y24 - Disparo de outra arma fogo e NE de intenção não determinada.

Podemos observar que desde 1980 até 2003, havia uma tendência de crescimento anual no aumento de índices de mortes, onde no ano inicial 1980 havia apenas 5,13 mortes para cada grupo de 100 mil pessoas, elevando-se para 20,42 até o ano de 2003, a grosso modo podemos interpretar como um dado singelo, pelos números que não saltam aos olhos, porém analisando percentualmente, isso representa um aumento de quase 300% de mortes por armas de fogo na série histórica citada.

Com a entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento em 22 de dezembro 2003, a lei conseguiu frear os índices de crescimento desses crimes, mantendo-os estáveis em alguns períodos, em outros os reduzindo, observada uma pequena distorção para mais em 2016 e 2017, porém justificáveis, uma vez que o Brasil passou por uma verdadeira guerra entre facções nas disputas por territórios nesses 02 anos, criando uma sazonalidade no período.

Dessa forma analisando o antes (1980 a 2003) e após (2004 a 2021) período com o Estatuto, passamos de um aumento de quase 300%, para uma redução de quase 25% no número de mortes até 2021. Demonstrando assim a eficácia dessa norma e a capacidade de atingir sua finalidade.

Defensores da teoria armamentista tentam justificar a redução mais recente ocorrida a partir de 2018, com a flexibilização na aquisição de armas de fogo concedidas para alguns grupos em 2019, porém essa a tendência de redução já era observada desde o ano anterior e na contramão na redução das mortes de forma geral, os crimes de agressão cometidos por armas de mão saltaram de 3.118 (2020) para 3.878 (2021), representando um aumento de 24,5%.

Outro dado importante a ser trazido em contrapartida a essa flexibilização são estatísticas relativos a grupos que tiveram acesso as essas concessões de armas, em sua maioria os chamados CACs (grupo formado por caçador, atirador e colecionador), onde dados trazidos pelo Bom dia Brasil revelaram que no período de 2019 a 2022 os crimes cometidos por quem tem esse tipo de registro aumentou em 745% no Distrito Federal, em especial os registrados pela Lei Maria da Penha com salto de 1.100%. Com dados tão extraordinários é impossível negar a relação entre crime e armas de fogo.

Um escrito que vale salientar encontrado no Atlas da Violência de 2019 (p. 81) onde remete a uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, na qual uma vítima de um assalto quando armada possui 56% a mais de chances de ser morta do que a vítima desarmada. Isso pelo fator surpresa que atribui vantagem ao criminoso que já vem com a arma em punho e ao perceber a vítima armada, acaba a alvejando fatalmente. A morte de inúmeros policiais de folga atesta esse ponto.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegou-se à conclusão de que o tema em questão é de extrema complexidade, necessitando de uma análise aprofundada para embasar decisões mais coerentes, favorecendo a população e garantindo a proteção e a segurança dos cidadãos responsáveis. É importante ressaltar que não se pode afirmar que, quanto mais armas, mesmo nas mãos dos cidadãos de bem, menor será a taxa de criminalidade no país. Afinal, como foi demonstrado ao decorrer da pesquisa, quanto maior o número de cidadãos armados, maior será também o número de mortes e acidentes envolvendo armas de fogo.

Não obstante, a presente pesquisa traz a visão sobre a linha tênue existente entre o perigo e proteção do armamento civil, mostrando que este apesar de servir como um mecanismo de defesa e segurança, por diversos momentos, em outra vertente, pode ser perigoso e arriscado, visto que, os riscos estão mais aparentes devido as situações cotidianas.

Assim, ao longo do trabalho, conclui-se que apesar do senso comum acreditar que as armas de fogo podem ser um bom instrumento de defesa e proteção de seu patrimônio e entes familiares, os dados demonstram que elas acabam ocasionando mais violência nos conflitos interpessoais, causando assim, danos irreversíveis, tendo em vista que aumentam o poder de lesividade e letalidade nos atritos cotidianos.

REFERÊNCIAS

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Sobre os autores
Rilawilson José de Azevedo

Dr. Honoris Causa em Ciências Jurídicas pela Federação Brasileira de Ciências e Artes. Mestrando em Direito Público pela UNEATLANTICO. Licenciado e Bacharel em História pela UFRN e Bacharel em Direito pela UFRN. Pós graduando em Direito Administrativo. Policial Militar do Rio Grande do Norte e detentor de 19 curso de aperfeiçoamento em Segurança Pública oferecido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Vanessa Araújo de Oliveira

Graduanda em direito da FCST e pesquisadora.

Informações sobre o texto

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