Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Conversa de bar: A patrimonialização da boêmia

Agenda 21/11/2023 às 11:00

A busca pela patrimonialização de bens culturais está em ascensão. E há cada vez mais espaços de domínio privado que se transformam em espaços de sociabilidade, por meio da arte, cultura e entretenimento, que buscam assegurar a continuidade das suas atividades nos respectivos espaços por meio do processo de patrimonialização. O caso mais recente é o do bar Ó do Borogodó localizado em Pinheiros, região Oeste de São Paulo, que funciona num imóvel alugado, cujos proprietários não desejam renovar o contrato locatício.

A estratégia adotada pelo Ó do Borogodó foi a busca pelo seu reconhecimento como bem cultural [1] junto ao Conselho Municipal de Patrimônio Cultural para que ele fosse considerado inserido numa Zona Especial de Preservação Cultural – Zepec, que, de acordo com o Plano Diretor do município de São Paulo [2], “são porções do território destinadas à preservação, valorização e salvaguarda dos bens de valor histórico, artístico, arquitetônico, arqueológico e paisagístico”, estando o mesmo inserido na Área de Proteção Cultural – APC destinada a imóveis de produção e fruição cultural.

A patrimonializacão de espaços privados que exploram atividades econômicas como bares, e que se tornam lugares de sociabilidade, não é uma novidade. No Amazonas, a Lei Estadual nº 4.199, de 2015, declara como Patrimônio Cultural Imaterial tradicionais bares da cidade de Manaus que possuem mais de meio século de funcionamento. Trata-se do Bar Caldeira, do Bar Jangadeiro e do Bar do Armando, cada um deles com a suas respectivas histórias e tradições, e os desafios da condução dos seus empreendimentos.

O patrimônio cultural apresenta um rol exemplificativo de instrumentos jurídicos destinados à sua proteção e promoção, sendo os mais comuns o tombamento e o registro. Aquele, em regra, destina-se para a proteção dos bens didaticamente designados como materiais, e este, por sua vez, para a proteção e promoção dos chamados bens imateriais. No plano internacional, duas Convenções da Unesco, uma para cada dimensão do patrimônio cultural, apresentam de forma exemplificativa o que pode ser considerado patrimônio cultural material e imaterial.

Como patrimônio cultural material a Convenção de 1972 da Unesco [3] considera:

- os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência,

- os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, por sua arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência,

- os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.

Já em relação ao patrimônio cultural imaterial, a Convenção de 2003 [4] da Unesco o define como sendo:

[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável.

A Constituição brasileira de 1988 enfatiza na sua definição de patrimônio cultural, que se aplica às dimensões material e imaterial, a referencialidade que demanda a compreensão da ressignificação que os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira exercem sobre os bens culturais na construção dos respectivos sistemas representativos e de valores.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Os tradicionais bares Caldeira, Jangadeiro, Armando e o Ó do Borogodó com os seus reconhecimentos formais como patrimônio cultural, ou no caso deste último, a sua busca por referido reconhecimento, estão colocando novos desafios para os tradicionais instrumentos de proteção e promoção do patrimônio cultural (tombamento e registro), pois como espaços de sociabilidade e fruição cultural aproximam-se da dimensão imaterial do patrimônio e, portanto, ligados ao instrumento do registro. Mas, quando almejam permanecer nos espaços privados que ocupam, condicionando a propriedade privada e o seu proprietário a observarem referido uso cultural estão reivindicando efeitos jurídicos que se aproximam daqueles ofertados pelo tombamento.

O fato é que não se tem clareza acerca dos efeitos jurídicos decorrentes da patrimonialização desses bares tradicionais, pois o registro como patrimônio cultural imaterial visa promover uma dada manifestação cultural para que ela seja transmitida de geração em geração e, a priori, não interfere no direito de propriedade. O tombamento, por sua vez, interfere na propriedade, mas, especialmente, para preservar a estrutura física da edificação e do conjunto arquitetônico, não para determinar um uso específico do bem. E para completar este caldeirão de complexidades, os tradicionais bares são empreendimentos econômicos cuja continuidade desta atividade pauta-se pela livre iniciativa e sujeita-se aos riscos inerentes a tal atividade.

Desta feita, é necessária uma reflexão sobre os efeitos jurídicos da patrimonialização dos bens culturais conforme cada instrumento disponível no ordenamento jurídico e, principalmente, enfrentar as questões que envolvem a propriedade privada, pois cada vez mais espaços privados de fruição cultural e que são coletivamente apropriados pelo uso estão sucumbindo às dinâmicas da especulação imobiliária.

Allan Carlos Moreira Magalhães, Doutor e Pós-doutor em Direito (UNIFOR), professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo” (Editora Dialética)

Notas

[1] GUIA FOLHA. Conselho municipal avalia se bar Ó do Borogodó é patrimônio cultural de SP. Disponível em: < https://guia.folha.uol.com.br/bares-e-noite/2023/11/conselho-municipal-avalia-se-bar-o-do-borogodo-e-patrimonio-cultural-de-sp.shtml>. Acesso em 17 nov. 2023.

[2] SÃO PAULO. Lei Municipal n. 16.050, de 2014. Aprova a política de desenvolvimento urbano e o plano diretor estratégico. Disponível em: < https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=273198 >. Acesso em 10 out. 2023

[3] UNESCO. Convenção para a salvaguarda do patrimônio mundial, cultural e natural. 1972. Disponível em: <https://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>. Acesso em: 10 out. 2023.

[4] UNESCO. Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. 2003. Disponível em: < https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000132540_por >. Acesso em 10 out. 2023.

Sobre o autor
Allan Carlos Moreira Magalhães

Doutor e Pós-doutor em Direito (UNIFOR), professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo” (Dialética-SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!