Vivemos num mundo bipolar. Atualmente, os meios de comunicações sociais divulgam a existência de grave crise econômica mundial acompanhada de conflitos bélicos, políticos, econômicos, étnicos e religiosos entre nações, onde a população civil, aos milhões, são refugiadas ou mortas num massacre permanente. Informam-nos de aumento das agressões ao meio-ambiente com incremento da poluição, aquecimento global e destruição de ecossistemas, colocando em risco a vida no planeta. Isso sem falar nas populações de continentes inteiros que estão mergulhadas na miséria, nas doenças e nos conflitos, sem perspectivas de mudança. A possibilidade de uma guerra nuclear também nunca esteve tão presente no horizonte.
A par deste cenário trágico, atesta-se que o mundo caminha para um desenvolvimento civilizatório, uma evolução social globalizada nunca antes imaginada e causada principalmente pela admirável evolução das ciências, da tecnologia eletrônica e digital e da economia mundial nos últimos anos, tornando a vida humana muito mais fácil no planeta. Houve a criação da ONU (Organização das Nações Unidas), OMS (Organização Mundial de Saúde), entre outras organizações internacionais. A expectativa de vida do ser humano dobrou em poucos anos e vários extratos da sociedade, antes excluídos socialmente, experimentam um alvorecer de empoderamento e reconhecimento de direitos, como as mulheres, os negros e da comunidade lgbtqia+.
Houve um grande incremento na produção de alimentos e várias doenças graves foram erradicadas. A todo momento, novos remédios mais eficazes são descobertos e a terapia gênica já é uma realidade. Recentemente, inclusive, divulgou-se que há a previsão de que os nossos jovens deverão alcançar o centenário devido à evolução da ciência médica cada vez mais capaz de propiciar um envelhecimento longo e digno.
De forma contraditória como se percebe, este desenvolvimento científico, econômico, o progresso cultural e a evolução social não foram socializados, não vieram acompanhado pela efetivação dos direitos humanos fundamentais, patrimônio da humanidade desde a Revolução Francesa de 1789. A Declaração de Direitos do Homem feita pela ONU em 1948 que deu origem a muitas Constituições dirigentes visando um Estado de Bem Estar Social foi relativizada. Muitos países que consagram os direitos humanos em suas Constituições os desrespeitam acintosamente comprovando a falta de efetividade dos direitos humanos em nosso mundo.
No Brasil, essa dicotomia acontece de forma ainda mais exacerbada. Nosso país é um dos países mais desiguais do mundo, onde a renda se concentra em pequena parcela da população. Direitos básicos de cidadania continuam sendo negados para a maior parte da população nas grandes concentrações urbanas ou nos rincões do interior do país.
Dentre os direitos humanos fundamentais destacam-se o direito à saúde. Os direitos à saúde, se comparados aos direitos individuais, nasceram muito mais como normas declaratórias do que jurídicas, não tendo força normativa e eficácia concreta daí sua difícil implementação. Reflexo disso é que quando direitos como a liberdade e a propriedade são violados se desperta no cenário nacional e internacional uma grande reação organizada, mas quando se fala de violação a direitos como saúde não há muita mobilização social quanto a isso.
Em nosso país, a Constituição de 1988 ampliou de forma nunca visto antes a tutela dos direitos à saúde. Nela, a saúde deixou de ser serviço público discricionário para ser direito efetivo, diferente das constituições anteriores e comprometeu todas as unidades federativas em competências comuns a respeito desses direitos. Ela inovou quando determinou como seu fundamento a cidadania e a dignidade da pessoa humana, quando declarou entre seus objetivos a solidariedade, a justiça e a erradicação das desigualdades sociais e quando previu várias ações constitucionais que possibilitam efetivação de seus preceitos programáticos e a tutela dos direitos, prevendo meios concretos de efetivação através do Poder Judiciário, ultimo guardião da Constituição.
Nesse panorama, a Constituição Federal deu grande relevo ao Poder Judiciário. É um dos três Poderes da República e tem a responsabilidade direta de fiscalização sobre outros poderes. Mais que isso, quando o artigo 5º, XXXV da Constituição Federal prescreve que "nenhuma lei pode excluir da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça de direito", o texto constitucional comprometeu os juízes em efetivarem a Constituição. Como consequência, comprometeu os juízes na garantia dos direitos humanos em geral e no direito à saúde em particular da população brasileira.
A fiscalização e a implementação pelos juízes dos direitos humanos atualmente é um assunto que desperta grande polêmica no país em geral e no meio jurídico em particular. Fala-se muito num indesejável e temido governo dos juízes ou num ativismo judicial devido a uma série de recentes e importantes decisões judiciais onde os juízes adotaram decisões polêmicas. de promoção, prevenção, proteção e recuperação de doenças.
A saúde pode ser definida, segundo a OMS, como pleno bem-estar físico, psicológico e social da pessoa humana. Não é a simples ausência de doença, mas a realização de todas as dimensões de sua vida. Se refere a ideia de bem-estar da pessoa na sua totalidade. Inclui também a prevenção da ocorrência de enfermidades como acesso à saneamento básico e ao fornecimento de água tratada.
A Constituição Federal de 1988 definiu, em seu artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado e para atingir este objetivo foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS). Ele é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, abrangendo desde o simples atendimento para avaliação da pressão arterial, o transplante de órgãos e o fornecimento gratuito de remédios, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Atende a cerca de 200 milhões de pessoas, a população segundo o censo de 2023, sendo que 75% delas dependem exclusivamente do sistema para tratar de sua saúde.
Assim como os outros serviços públicos essenciais em nosso país, o SUS enfrenta diversos problemas. Há falta de hospitais e de profissionais de saúde atuando no Brasil, com uma interminável lista de pacientes para cuidar com muitos pacientes enfrentando um quadro de espera muito grande, que resulta em sofrimento, agravamento de doenças ou até na morte. E o Poder Judiciário é chamado frequentemente a tentar minorar o sofrimento da população seja nas ações coletivas ou ações individuais.
As limitações orçamentárias do governo para a promoção da saúde tornam ele incapaz de atender, de forma eficiente e tempestiva, à demanda crescente da população por atendimento médico- terapêutico. Em vista disso autorizou a saúde privada, permitida expressamente no art. 199, da Constituição Federal de 1988, in verbis: Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
As Operadoras de Plano de Saúde constituem a saúde suplementar e são os principais prestadores de serviços privados de assistência à saúde. Tem como objetivo é a obtenção de lucro com o exercício da atividade, mediante o recebimento de contraprestação pelos serviços prestados. Segundo a ANS, Agência Nacional de Saúde Suplementar, cerca de 50 milhões são beneficiados de algum plano na tentativa de obter melhor atendimento a sua saúde.
Atualmente, os planos de saúde têm o maior prejuízo operacional já registrado em sua história. A causa apontada seria o aumento dos custos de insumos médicos e farmacêuticos, a ampliação da lista de procedimentos obrigatórios e avanço dos gastos com reembolsos e fraudes. Cancelamentos unilaterais, redução das coberturas são uma notícia contante bem como a ameaça da por parte das operadoras de risco de sobrevivência do sistema.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que não vigoraria mais o rol exemplificativo e que deveria seguir estritamente o rol taxativo de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Isso significa que os planos cobririam apenas os tratamentos previstos na listagem da ANS, mesmo que o médico indicasse outra alternativa mais eficaz, limitando enormemente sua utilização.
Note-se que as contratações de planos de assistência privada à saúde são nítidas relações de consumo. Assim, o Código de Defesa do Consumidor tem plena incidência nos contratos de assistência privada à saúde e constituem o fundamento para que o Poder Judiciário possa analisar as demandas dos consumidores.
Em síntese, o direito à saúde experimenta uma situação contraditória nesta atual fase da história pois adquiriu inusitada força normativa, mas é ameaçado de todos os lados. Afirmaram-se como baliza da legitimidade institucional, mas sofrem rudes golpes de globalização econômica.
Em relação a crítica sobre o ativismo judicial, a realidade é que o Brasil vive nos últimos 20 anos a paralisia dos Poderes Executivo e Legislativo e isso é responsável pelo atual protagonismo do Poder Judiciário. A rigor, o Poder Legislativo hoje não cumpre nenhum dos seus três papéis institucionais: não legisla, não fiscaliza o Executivo e representa mal o povo. O poder Executivo, por seu lado, constantemente está envolvido em corrupção e gestão ineficiente.
Isso se torna um quadro de desídia dos governantes com a atenção à saúde. É necessário que haja mais investimento e investigação dos recorrentes casos de desvios de verbas destinados à saúde para que o SUS possa, de fato, oferecer um tratamento digno aos brasileiros, que merecem usufruir do justo retorno dos impostos pagos.
Por exemplo, água e esgoto tratados impactam diretamente na qualidade de vida da população. Para cada um real investido em saneamento básico, são economizados quatro reais em saúde, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, a balança é invertida. Os municípios gastam dez vezes mais para socorrer a população com médicos, postos de saúde e hospitais do que investem em saneamento.
Para manter a lucratividade do seu segmento de mercado, as operadoras de saúde precisam de mudanças radicais em seus modelos de atuação. É preciso aumentar o foco em medicina preventiva, nos cuidados com a atenção primária e no tratamento de doenças crônicas, em vez de se concentrar apenas nas urgências. Também facilitar a migração dos beneficiários para outro convênio, permitindo aumento na coparticipação do segurado e com alternativas de cobertura básica.
O governo federal deveria dar mais atenção à solução do problema porque, quanto mais se restringir o acesso da população aos planos de saúde, maior será a pressão e o aumento dos custos do Sistema Único de Saúde, que, como é de conhecimento público, anda assaz sobrecarregado.
Os cidadãos, os advogados, a Defensoria Pública, o Ministério Público e os juízes principalmente, todos nós somos convocados para a efetivação do direito à saúde previsto na Constituição. É verdade que o cobertor é curto para o tamanho do corpo, isto é, o orçamento público e privado não dá conta das muitas necessidades de nosso povo. Mas desde Freud, constatou-se que o desejo e a necessidade são o grande motor da evolução humana. A construção de um Brasil com uma população mais saudável depende de todos nós!