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O cristianismo e sua relevância para o debate urbano.

Agenda 03/12/2023 às 16:54

Será que há alguma relação entre o agir dos cristãos e busca pela efetivação de um meio ambiente urbano equilibrado? Não tenho a menor dúvida que sim. Tentaremos ser o mais objetivo possível na breve reflexão que realizaremos nas próximas linhas.

Antes de seguirmos em nossa reflexão convém destacar que o cristão, enquanto tal, possui responsabilidades sociais, além do dever de agir individual. Ora, o próprio dever de agir individual situa-se em um contexto maior, a saber, o de impactar a sociedade com valores supra-humanos que fortaleçam cada vez mais a dimensão da responsabilidade e da fraternidade humana. Neste sentido, contribuir com a sociedade é uma das manifestações de amar ao próximo.

Em um primeiro momento, precisamos destacar que somos limitados. Por mais que sejamos habilidosos, inteligentes ou diligentes, nos esbarraremos sempre em limites físicos e biológicos, próprios da finitude e da incompletude humana.

O ser humano só se torna completo em uma perspectiva de integração com um plano metafísico, uma vez que somente este é dotado da plenitude que preenche as lacunas humanas. Desta forma, podemos afirmar que a história das civilizações humanas é o registro do percurso humano, com todos os seus erros e, também, acertos. A ideia é que aprendamos com os erros do passado para que não venhamos a repeti-los no presente e no futuro e ainda, que possamos replicar e ampliar os acertos já reconhecidos.

No que diz respeito às cidades, nossa luta varia de acordo a posição e com os papéis que exercemos na sociedade. Neste sentido, podemos citar alguns atores da “trama urbana”: a) representantes do Estado, vinculados a algum dos poderes estatais: executivo, legislativo e judiciário; b) representantes do Ministério Público e da advocacia, pública ou privada; c) sociedade civil organizada; d) representantes de órgãos de classe; e) entidades representativas da indústria, do comércio e de serviços; f) líderes religiosos; g) líderes sindicais; h) líderes comunitários; i) população em geral. Todos esses agentes, sem prejuízos de outros, têm responsabilidades a seguir conforme os ditames constitucionais e legais aplicáveis à política urbana pátria. Vale asseverar que ser cidadão não é apenas ser detentor de direitos, mas também ser agente de transformação, o que lhes aponta um papel mais ativo.

Destacaremos, nas linhas a seguir as responsabilidades que os cristãos têm em relação à cidade em que vive. O que a Bíblia nos ensina sobre tais responsabilidades? O que a Bíblia fala sobre cidades? Convém, no entanto, destacar primeiro qual é o sentido e a vocação das cidades, o que faremos a seguir.

As cidades são a “coroa da instalação humana” em um determinado território. Constitui o locus onde se reúne uma comunidade humana que anseia por segurança e pelos benefícios da troca de habilidades humanas. São nestes espaços que se assentam as famílias e onde as relações entre estas se tornam realidade.

Vale ainda ressaltar que como desdobramento da organização humana, idealizou-se uma estrutura que ganhou concretude a partir de abstrações. Trata-se do fenômeno estatal. Sua essência é viabilizar a realização humana através de uma estrutura organizacional pública que possui (ou deveria possuir) a habilidade de administrar interesses, não raras vezes conflitantes, os quais incidem sobre o espaço urbano.

Como ensina Rogério Gesta Leal, a cidade é espaço político e filosófico, constituindo o cenário onde movimentos sociais e humanos ocorrem e se forjam na história dos processos de ocupação do território. Como destaca esse autor, o intento de realização humana através da urbanização vai ao encontro de um novo paradigma societal: o de que as relações cotidianas, intersubjetivas e materiais dos homens, hoje e desde a modernidade, se contarem com ambiente/espaço favorável, podem se maximizar no sentido de otimização das potencialidades de vida digna de seus atores[1].

No livro do profeta Jeremias, há o registro: “Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os depor­tei e orem ao Senhor em favor dela, porque a prosperidade de vocês depende da prosperidade dela” em seu capítulo 29 e versículo 7. Perceba-se que não se fala em buscar a prosperidade (individual) na cidade, mas a prosperidade da cidade (pensando-se em uma coletividade de beneficiários). O livro destaca ainda, a partir deste versículo, que a prosperidade das pessoas depende da prosperidade da cidade. Eis aí um excelente motivo para mover-se na luta por uma cidade sustentável, compreendendo-se sustentabilidade em sua acepção mais ampla: sustentabilidade social, econômica e ambiental.

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Além do dever de se mover pela fé, orando pela cidade e pelas autoridades constituídas, como aponta o livro de 2 Crônicas, capítulo 7, versículo 14, quando registra: “se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar e orar, buscar a minha face e se afastar dos seus maus caminhos, dos céus o ouvirei, perdoarei o seu pecado e curarei a sua terra”, os cristãos precisam ocupar os espaços de poder e participar do debate público, de modo que possam contribuir, de forma efetiva, para a execução de políticas públicas que sejam viáveis para elevar a concretização de direitos fundamentais no território da urbe.

No que diz respeito à segurança nas cidades, além do investimento do Estado em recursos humanos, veículos, equipamentos e inteligência, se faz necessário também o envolvimento do cidadão, onde este deve zelar pela aplicação correta dos recursos públicos, especialmente aqueles destinados a equipamentos urbanos ou quaisquer outras realizações que afetem a vida cotidiana. Não adianta apenas criticar quando algo sai errado. Mostra-se importante que o cidadão participe durante os processos de tomada de decisão, quando for cabível, por óbvio. De toda forma, como se move pela fé, é imprescindível ao cristão apelar ao SENHOR, como destaca o Salmo 127, versículo 1: “Se o SENHOR não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o SENHOR não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela”. Neste sentido, nunca será demais apelar-se à segurança humana e à segurança vinda do Céu, esta, infalível e ilimitada.

Não se pode esquecer que o cristianismo constitui a base do direito brasileiro. Aliás, a base de todo direito no ocidente é judaico-cristã, o que torna fácil compreender por que a dignidade da pessoa humana erige-se como um dos maiores valores do Estado de Direito moderno e contemporâneo. O núcleo fundamental do princípio da dignidade da pessoa humana tem a sua base nos seguintes trechos das escrituras:

“Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere os outros superiores a si mesmo. Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros”. (Filipenses 2:3,4) – Valores destacados: 1) humildade; 2) paz; 3) respeito ao próximo; 4) amor ao próximo; 5) altruísmo.

“E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39) - Valores destacados: 1) Amor ao próximo; 2) Doação ao próximo; 3) Respeito ao próximo; 

“Honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 19:19) - Valores destacados: 1) Honra; 2) Família; 3) Amor; 4) Doação; 5) Respeito ao próximo;

“Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. (Gálatas 5:14) - Valores destacados: 1) Honra; 2) Amor; 3) Doação; 4) Respeito ao próximo;

“Todavia, se cumprirdes, conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teu próximo como a ti mesmo, bem fazeis”. (Tiago 2:8) - Valores destacados: 1) Honra; 2) Amor; 3) Doação; 4) Respeito ao próximo;

“E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes”. (Marcos 12:31) - Valores destacados: 1) Honra; 2) Amor; 3) Doação; 4) Respeito ao próximo;

“Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor”. (Levítico 19:18) - Valores destacados: 1) Paz; 2) Honra; 3) Amor; 4) Doação; 5) Respeito ao próximo;

“E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”. (Lucas 10:27) - Valores destacados: 1) Honra; 2) Amor; 3) Doação; 4) Respeito ao próximo;

“Com efeito: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. (Romanos 13:9) - Valores destacados: 1) Fidelidade; 2) Vida; 3) Honestidade; 4) Confiança; 5) Amor; 6) Doação; 7) Respeito ao próximo;

“E que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios”. (Marcos 12:33) - Valores destacados: 1) Fé; 2) Honra; 3) Amor; 4) Doação; 5) Respeito ao próximo;

 

Como se percebe, ao longo de todas essas referências bíblicas, amar ao próximo como a si mesmo constitui uma das bases mais sólidas do cristianismo. Todos os valores acima identificados são ainda hoje, a base do direito não só no Brasil, mas em todo mundo ocidental. Ao cooperarmos para com a instituição de normas urbanísticas justas, exteriorizaremos o nosso ‘amor ao próximo’. ‘Amar ao próximo’ é preocupar-se com o nosso ‘semelhante’, ou seja, o nosso vizinho ou concidadão. E não bastar o preocupar-se. Mostra-se indispensável que lutemos também pelo direito à cidade de nossos ‘semelhantes’. A cidade é o espaço de todos e como tal precisa ser planejada de modo que todas as classes sociais, distribuídas em cada parcela do solo urbano tenham as suas necessidades básicas atendidas. Trata-se de um mínimo existencial para que seja possível a fruição de uma vida urbana digna.

Não se trata aqui de descartar a relevância de valores e outros princípios destacados em outras crenças. O foco da presente análise não é esse. O que se pretende destacar é a indubitável relação existente entre os princípios e valores cristãos com as melhores práticas de gestão das cidades, de modo que seja plenamente compreensível como a responsabilidade humana pode proporcionar um ambiente urbano equilibrado, inclusivo e sustentável.


[1] LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 3.

Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

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