Resumo: O presente artigo aborda a ascensão do fenômeno da desjudicialização e a evolução da consensualidade nos conflitos que envolvem a Administração Pública, demonstrando a aderência destas iniciativas com a Agenda 2030 e destacando a importância de se consolidar esta mudança de cultura no contencioso tributário, propondo, ao final, uma estrutura de modelo multiportas em âmbito fiscal sustentado pela transação tributária, autocomposição fiscal e arbitragem tributária.
Palavras-chave: desjudicialização; acesso à justiça; consensualidade; objetivo de desenvolvimento sustentável; contencioso tributário.
Sumário: Introdução; 1. O microssistema normativo de métodos adequados de tratamento de conflitos e a Administração Pública. 2. O objetivo para o desenvolvimento sustentável (ODS) nº 16 do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD) e o sistema multiportas na Administração Pública. 3. O modelo multiportas no Direito Tributário: uma questão de sustentabilidade do contencioso fiscal. 4. Da proposição de uma estrutura de modelo multiportas no Direito Tributário sustentado pela transação tributária, autocomposição fiscal e arbitragem tributária. 4.1. Da transação tributária. 4.2. Da autocomposição fiscal. 4.3. Da arbitragem tributária. 5. Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Como descrito no site oficial da Organização das Nações Unidas (ONU)4, a Agenda 2030 configura uma lista de 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), ambiciosos e interconectados, que abordam os principais desafios de desenvolvimento enfrentados pelo mundo, havendo 169 metas específicas a serem alcançadas até o ano de 2030.
Dentre eles, o ODS nº 16 tem como objetivo “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas a todos os níveis.”
Será defendido no presente artigo, que a implantação efetiva dos métodos consensuais de resolução de disputas - modelo multiportas - no âmbito dos conflitos envolvendo o Poder Público, possui aderência direta com o ODS nº 16, especialmente com algumas metas específicas.
Para tanto, buscar-se-á demonstrar a existência do “Microssistema Normativo de Métodos Adequados de Tratamento de Conflitos”, conjunto de normas que hoje incentivam e legitimam o desenvolvimento da autocomposição dos litígios no ordenamento brasileiro, abordando-se, especialmente, a implementação nas demandas titularizadas pela Administração Pública.
Considerando a notória crise do contencioso tributário, que se mostra cada vez mais insustentável, será analisada a importância da transformação do tratamento da alta litigiosidade fiscal, medida determinante para o desenvolvimento de instituições eficazes e para a reconstrução da função judicial do Estado enquanto pacificador de conflitos e provedor do acesso à justiça.
Este caminho tem o potencial de beneficiar o Poder Judiciário, favorecendo o aumento da eficiência na entrega da tutela jurisdicional; a Fazenda Pública, no que tange a otimização da recuperação fiscal; e os contribuintes, por meio da reconstrução de uma relação de maior transparência, diálogo, confiança e cooperação com o Fisco.
A proposição do trabalho, ao final, irá passar pelos principais instrumentos de resolução extrajudicial de conflitos aplicáveis às controvérsias fiscais, quais sejam, a transação tributária, a autocomposição em matéria fiscal e a arbitragem tributária, demonstrando-se o papel e os pontos elementares de funcionamento de cada um destes institutos.
1. O Microssistema Normativo de Métodos Adequados de Tratamento de ConflitoS e a Administração Pública
Entende-se como “Microssistema Normativo de Métodos Adequados de Tratamento de Conflitos” o conjunto de normas que dispõem e estimulam a utilização de instrumentos de consensualidade, com destaque para o Código de Processo Civil - CPC/15, a Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015) e a Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996).
O termo se relaciona com o conceito de justiça ou tribunal multiportas, desenvolvido originariamente pelo professor alemão Frank Sander, da Universidade de Harvard, que no fim dos anos 1970 teria idealizado o chamado multi-door courthouse 5 , proposta que, segundo Carlos Machado6 “tratou de implementar um modelo inclusivo de solução de problemas (...), objetivando o direcionamento dos processos que chegassem aos tribunais para as vias mais adequadas de resolução dos conflitos”.
Com o alastramento do conceito pelo mundo, a ideia fora ampliada, de modo que, atualmente, esta noção se mostra mais abrangente e diz respeito ao conjunto de técnicas/instrumentos legítimos e adequados de resolução de conflitos, que se tem à disposição de forma complementar ao processo judicial tradicional, visto como “uma das portas”.
Importante esclarecer que, no presente trabalho, optamos por priorizar, sempre que possível, o termo multiportas, pois este abrange tanto os instrumentos de autocomposição (ex: conciliação e mediação) como os de heterocomposição (ex: arbitragem), sendo, portanto, mais abrangente que os conceitos de consensualidade e de autocomposição, embora estas ideias também sejam extremamente importantes dentro da pretendida mudança de cultura e de paradigma.
Em interessante artigo a respeito do tema, Fredie Didier7 aprofunda a noção do sistema multiportas brasileiro:
Sistemas auto-organizados são caracterizados por sua capacidade de estruturação e reorganização a partir da interação dos seus elementos integrantes, com crescimento não linear, mas em condições variáveis e progressivamente mais complexas. Essa complexidade pode decorrer dos efeitos recíprocos originados do contato entre seus elementos constitutivos, da agregação de novas partes componentes, da evolução do contexto em que se situa o sistema e da eventual atuação de um supervisor sujeito que pode interferir na conformação do sistema, mas não a determina. Sistemas com essa natureza nunca são um resultado consolidado, mas necessariamente um processo em desenvolvimento.
Dito de outro modo, um sistema auto-organizado, como o sistema brasileiro de justiça multiportas, é marcado por uma construção paulatina, progressiva e sem planejamento. Inicialmente limitado, de modo quase exclusivo, à atuação do Poder Judiciário, o sistema expandiu-se com a agregação de figuras como o agente fiduciário (arts. 31. a 37, Decreto-lei n. 70/1966), o árbitro e as câmaras arbitrais (Lei n. 9.307/1996), os tribunais administrativos, o conciliador e o mediador (Lei n. 13.140/2015), o Conselho Nacional de Justiça e, mais recentemente, as instituições responsáveis pela manutenção de Online Dispute Resolution ODR’s. Sujeitos cuja função já estava diretamente associada à administração da justiça também tiveram, ao longo do tempo, suas atribuições reconfiguradas, permitindo mais facilmente sua visualização como elementos integrantes do sistema, a exemplo do Ministério Público (Resolução n. 118/2014 do CNMP), da Advocacia Pública (art. 19, Lei n. 10.522/2002) e das serventias extrajudiciais.
Sujeitos privados (...) também podem solucionar problemas jurídicos por meio de um processo, que igualmente terá caráter privado (...). Nessas circunstâncias, tais entes podem ser compreendidos como portas de acesso à justiça. Aqui, é relevante perceber que a possibilidade de questionamento das deliberações perante o Judiciário não afasta seu reconhecimento como ambientes apropriados à solução de problemas jurídicos.
Diante do complexo normativo atual que estimula a consensualidade, o mesmo autor8 advoga pela existência do princípio ao estímulo da solução por autocomposição e do princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil.
Um dos primeiros atos normativos do microssistema, a Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional do Justiça - CNJ (institui a “Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”) prevê, em seu art. 1º, parágrafo único, que incumbe aos órgãos judiciários, “antes da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão”.
Já o CPC, considerado norma central do sistema, praticamente estabeleceu uma nova lógica de acesso à justiça, não só estimulando a solução consensual (art. 3º, §3º), mas consolidando a transmutação da função jurisdicional, ao prever a obrigação do Estado em promover a consensualidade, sempre que possível (art. 3º, §2º), e inserir a autocomposição como fase formal do processo, estruturando sua aplicação (art. 334. e artigos 165 a 175)9.
O estímulo à consensualidade se verifica ainda no art. 190, caput, com a previsão dos negócios jurídicos processuais (NJP)10, ao dispor que, nos processos que envolvam direitos que admitam a autocomposição “é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.”
Com relação à autocomposição na Administração Pública, o art. 174. do Código dispõe que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo”, com a atribuição de:
I - dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública;
II - avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública;
III - promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.
No caso da Lei de Mediação (Lei 13.140/2015), há um capítulo próprio destinado à Fazenda Pública, nominado “da autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público”. Logo em seu primeiro dispositivo (art. 32), direciona a União, os Estados e os Municípios a criarem câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, apontando para o protagonismo que os órgãos jurídicos dos entes federativos devem assumir no esforço pela autocomposição de seus próprios litígios.
Neste sentido, considerando a novidade e dinamismo do tema, relevantes serão as discussões a serem desenvolvidas no FONACASC (Fórum de Coordenadores das Câmaras de Conciliação), órgão técnico do CONPEG (Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal), que tem debatido, em reuniões periódicas, a estrutura adequada, as soluções existentes, as dúvidas, polêmicas, enfim, toda a legitimidade e estrutura adequada do modelo multiportas nos conflitos envolvendo a Administração Pública.
A partir de levantamento preliminar realizado no referido Fórum, ao que parece, mais da metade dos estados-membros11 já possuem Câmaras de Autocomposição instauradas em suas procuradorias estaduais.
Observa-se que alguns entes federativos foram além da mera criação das câmaras de autocomposição e instituíram verdadeiras políticas de resolução alternativa de conflitos, com vistas a estimular a consensualidade frente aos litígios administrativos.
É o caso do Município de São Paulo, por meio da Lei nº 17.324/2020, que “institui a Política de Desjudicialização no âmbito da Administração Pública Municipal Direta e Indireta”, do Estado de Santa Catarina, que editou a Lei nº 18.302/2021, instituindo “o Programa de Incentivo à Desjudicialização e ao Êxito Processual (PRODEX), no âmbito do Poder Executivo” e o Estado o Espírito Santo, com a publicação da Lei Complementar nº 1.011/2022, que institui a “Política de Consensualidade no âmbito da Administração Pública Estadual Direta e Indireta; cria a Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos do Espírito Santo - CPRACES; moderniza a Procuradoria-Geral do Estado e dá outras providências”.
Os objetivos dessas políticas constam de forma expressa nos respectivos diplomas legislativos e estão ligados à redução da litigiosidade, ao estímulo à solução adequada das controvérsias, à promoção da solução consensual dos conflitos e ao gerenciamento das demandas administrativas e judiciais, dentre outros.
Para a consolidação do tema na Administração Pública, também importante o conteúdo do art. 26. do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (“Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro”), incluído pela Lei nº 13.655/2018, ao prever que:
para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.
A autocomposição também é estimulada na nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) de forma expressa no art. 151, o qual dispõe que “poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem”, havendo ainda autorização para a extinção de contratos pela via consensual (art. 138, II) e para a realização de aditivos pelos meios compositivos (art. 153).
Ao fazer a análise dos aspectos aqui tratados na Administração Pública, assim discorre Diogo de Figueiredo Moreira Neto12:
A consensualidade, por certo, não estará destinada a substituir as formas tradicionais de ação imperativa do Estado, mas, sem dúvida, representa uma mudança substancial em suas prioridades de atuação, prestigiando o que hoje se vem denominando parceria com a sociedade.
Todas essas tendências atuam no sentido de despojar-se a Administração Pública das características burocráticas que assumiram nos países de tradição jurídica continental europeia, na linha do Direito Administrativo gerado pela Revolução Francesa, e, de certa forma, agravadas e desvirtuadas pela herança ibérica colonial de cunho patrimonialista, e de aproximá-las de modelos mais pragmáticos, como anglo-saxões, que prestigiam o administrado.
A efetiva adoção da consensualidade em conflitos administrativos envolve uma releitura acerca dos elementos que sustentam o direito público, afastando intepretações intransigentes sobre o princípio da legalidade, ou mesmo da primazia e indisponibilidade do interesse público, com a consequente prevalência das ideias de eficiência, vantajosidade e pragmatismo.
Deveras, a própria lógica do princípio da supremacia do interesse público nem sempre pode ser interpretada de forma conflituosa aos interesses privados, considerando a função estatal de promover o bem comum e a fixação do indivíduo como centro da ordem constitucional.
Como destaca Bruno Dubeux13:
verifica-se, nesse sentido, que o dogma da supremacia do interesse público sob o privado foi sofrendo mutações ao longo das últimas décadas, de modo a permitir, no caso concreto e observados os limites constitucionais e legais, a sua disponibilidade e, portanto, a possibilidade da Administração Pública celebrar acordos para, conciliando interesses, resolver conflitos com terceiros.
Buscando trazer elementos objetivos que contribuem na análise da vantajosidade para fins autocomposição, o mesmo autor leciona:
Fatores com o aspecto da questão jurídica envolvida e sua intepretação pelo Poder Judiciário, a análise econômica do direito, o aspecto temporal envolvendo o litígio judicial e o grau de recuperabilidade do crédito, o comportamento, a solvabilidade e a capacidade de pagamento do devedor, bem como o próprio custo da máquina administrativa e judicial podem auxiliar na busca pela melhor fundamentação do acordo a ser celebrado pela Administração Pública.
É certo, portanto, que os instrumentos de autocomposição aplicados aos conflitos que envolvem a Fazenda Pública estão em plena ascensão e consolidação, impondo-se uma nova realidade no tratamento de litígios pela Advocacia Pública, além de uma releitura dos princípios estruturantes do direito administrativo.
2. O Objetivo para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 16 do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD) e o Sistema Multiportas na Administração Pública
Adotada durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, realizada em 2015, a Agenda 2030 representa um marco ambicioso que visa enfrentar os desafios globais mais prementes e alcançar um futuro mais sustentável e inclusivo para todos, sendo composta por 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas específicas, a serem alcançadas até o ano de 2030.
Trata-se de uma lista de objetivos universais estabelecidas pela ONU para abordar as questões socioeconômicas e ambientais urgentes, representando um apelo à ação coletiva e engajamento de todos os países, setores da sociedade e indivíduos para transformar o planeta e melhorar a qualidade de vida das pessoas, com ampla abrangência, desde a erradicação da pobreza e da fome, até a promoção da paz, justiça e instituições eficazes.
Cada objetivo tem metas específicas e indicadores mensuráveis, que permitem o acompanhamento do progresso ao longo do tempo, tratando-se de uma rede conectada e interdependente, que aborda os desafios de forma integrada e holística.
Importa destacar, para os objetivos do presente trabalho, o ODS nº 16 (“Paz, Justiça e Instituições Eficazes”), que tem o seguinte enunciado: “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas a todos os níveis.”
O ODS nº 16 possui 12 metas (algumas adaptadas ao contexto brasileiro14), dentre as quais destacamos: 16.3) promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos; 16.6) Desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis; 16.7) Garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis; 16.10) Assegurar o acesso público à informação e proteger as liberdades fundamentais, em conformidade com a legislação nacional e os acordos internacionais; 16.a) Fortalecer as instituições nacionais relevantes, inclusive por meio da cooperação internacional, para a construção de capacidades em todos os níveis, em particular nos países em desenvolvimento, para a prevenção da violência e o combate ao terrorismo e ao crime.
O alcance deste objetivo é fundamental para o cumprimento de outros da Agenda 2030, pois a paz, justiça e instituições eficazes são requisitos para o desenvolvimento sustentável e para a melhoria da qualidade de vida, em um ambiente de respeito aos direitos humanos e à igualdade.
Na medida em que os métodos adequados de resolução de conflitos, uma vez bem aplicados, podem representar um significativo avanço na promoção da justiça e na pacificação social, eles se tornam pontos relevantes para o propósito; em especial nos conflitos relacionados à Administração Pública, parcela significativa dos processos em tramitação no Poder Judiciário.
Neste contexto, algumas questões relacionadas à consensualidade podem ser destacadas como aspectos que contribuem diretamente para a promoção de sociedades pacíficas, justas e inclusivas, com instituições eficazes em todos os níveis.
Uma delas é a democratização e transformação do acesso à justiça. A autocomposição oferece uma oportunidade para que todas as partes envolvidas em um conflito, incluindo cidadãos, empresas e a própria Administração Pública, tenham voz ativa no processo de resolução, como no caso da negociação, em que se permite que as partes alcancem um acordo mútuo, evitando o litígio e proporcionando uma forma acessível e dialógica de resolver potenciais disputas.
Outro ponto fundamental é o descongestionamento e a otimização da prestação da função jurisdicional pelo Poder Judiciário. O desenvolvimento de outros métodos de resolução de controvérsias alivia a carga do sistema de justiça, diminuindo a morosidade, em busca da duração razoável do processo, permitindo que casos críticos, por exemplo, recebam maior atenção.
Ao incentivar e desenvolver a consensualidade, a Administração Pública demonstra um compromisso com a construção de instituições eficazes, capazes de tomarem decisões responsivas e participativas. Isso envolve a criação de mecanismos que promovam o diálogo e a cooperação entre os diversos atores sociais, fortalecendo, assim, a boa governança e a confiança nas instituições.
Inequívoco, ademais, que a autocomposição contribui para a paz social, pois facilita soluções mutuamente satisfatórias; também ajuda a evitar o agravamento de conflitos e a construir uma cultura de diálogo, essencial para a estabilidade e harmonia no âmago da sociedade.
A solução negociada, aliás, é mais rápida e menos onerosa do que o processo litigioso tradicional, o que beneficia não apenas as partes envolvidas, mas também o Estado, em sentido amplo, que economiza recursos, que pode alocar de forma mais eficaz em áreas prioritárias.
Ora, é clara a aderência direta do desenvolvimento do sistema multiportas no âmbito da Administração Pública com algumas metas específicas do ODS nº 16, especialmente a 16.3 (promoção do Estado de Direito e igualdade no acesso à justiça), 16.6 (desenvolvimento de instituições eficazes) e 16.7 (tomada de decisão responsiva e participativa).
A correlação com a Agenda 2030 é importante, tendo em vista que reforça o compromisso público com a agenda; contribui com a promoção do desenvolvimento sustentável, em todas as suas dimensões; abre portas para a cooperação internacional; alinha o setor público com as expectativas da sociedade global; e viabiliza maior nível de monitoramento e prestação de contas, dada a existência de indicadores vinculados às metas dos objetivos de desenvolvimento sustentável.
Se é possível estabelecer a aderência dos projetos do setor público, que tenham como objeto a consensualidade, com o ODS 16, é provável que, além de se fortalecer o apoio institucional e político, se viabilize a captação de recursos junto a bancos e agências de desenvolvimento nacionais e internacionais15 16, fundos e programas de cooperação internacional, que possuem linhas diferenciadas de crédito e de financiamento para iniciativas ligadas à Agenda 2030.
Conforme “Relatório Anual das Nações Unidas no Brasil 2022”17, o sistema ONU, com suas 24 agências especializadas no país, fundos e programas, trabalhou juntamente com os três poderes, em todos os níveis de governo, e dezenas de parceiros de diversos setores, implementando 273 iniciativas e projetos de cooperação, com execução de U$ 127 milhões em 2022.
Como se vê, é plausível a possibilidade de se aprovar fomento financeiro para iniciativas ligadas à consensualidade no Brasil, especialmente em relação aos conflitos envolvendo o Poder Público, caso em que os efeitos positivos se multiplicam, sendo papel da Advocacia Pública atuar na construção de projetos exequíveis, mas ambiciosos, que desenvolvam estes instrumentos, ampliando a garantia de acesso à justiça, de forma legítima e com o máximo de eficiência.
No tocante à instrumentalização destes ambientes de consensualidade, por exemplo, considerando o estado tecnológico atual, é de se ambicionar o desenvolvimento de plataformas online de resolução de conflitos, as chamadas ODRs (online disputes resolutions), que representam “o uso da tecnologia para apoiar a resolução de conflitos em ambiente virtual.”18. No site da “Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs”, é possível identificar, atualmente, ao menos 17 (dezessete) startups na categoria “resolução de conflitos online”.19
Ocorre que, mais do que um instrumento virtual de facilitação da aplicação dos meios adequados de resolução de conflitos, as ODRs podem ser tratadas e desenvolvidas como método consensual autônomo, desde que turbinadas com inovações tecnológicas de automação, inteligência artificial (IA) e de gestão eficiente de dados e informações20.
Nesta perspectiva, destaca Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues:
A potencialidade máxima das ODRs no âmbito da Advocacia Pública seria alcançada com a elaboração de um desenho institucional que agregue às tradicionais ferramentas autocompositivas o uso da tecnologia, preferencialmente com emprego de inteligência artificial, possibilitando a criação, dentro da estrutura da Advocacia-Geral da União e demais Procuradorias Estaduais e Municipais, de um ambiente de rápido fluxo de informações, com a geração de propostas automatizadas de acordos aos particulares a partir de parâmetros previamente definidos, sem a necessidade de submissão de tais controvérsias do Poder Judiciário, com base no permissivo contido no art. 32, §3º, da Lei de Mediação21.
Ressalte-se que, em pesquisa realizada em 2022 no âmbito do Programa Justiça 4.0, também desenvolvida pelo CNJ, com apoio do PNUD, identificou-se 111 projetos de inteligência artificial, somente no Poder Judiciário22.
O envolvimento do PNUD e a demonstrada aderência com o ODS 16 favorece o desenvolvimento de projetos nesta área da transformação digital, a serem capitaneados pelas Procuradorias23 para a criação de Câmaras de Autocomposição já instrumentalizadas com plataformas digitais de resolução de conflitos, equipadas com soluções de IA. Como dito, tais iniciativas podem ser contempladas por linhas de crédito e de financiamento diferenciadas para projetos do setor público, acessíveis pelos bancos de financiamento, agências de fomento, fundos internacionais ou programas de cooperação.
Resta claro, portanto, que o desenvolvimento e a consolidação da cultura de prevenção e resolução adequada de litígios, por meio do sistema multiportas na Administração Pública, têm total aderência com a Agenda 2030, sobretudo com o ODS 16, o que pode viabilizar maior apoio institucional e político a projetos públicos nesta seara, inclusive com a perspectiva de se buscar incentivo financeiro para a sua efetiva estruturação.
Dado o grande leque de possibilidades de implementação dos meios adequados de resolução de litígios envolvendo a Administração Pública, o presente trabalho focará em uma das áreas que ocupa a maioria dos debates a respeito da crise do Poder Judiciário: o contencioso fiscal.