A presente análise busca trazer esclarecimentos, principalmente quanto ao mito das 24 horas para a prisão em flagrante e à solução de continuidade durante as buscas ao agente responsável pela prática de um crime.
Inicialmente, a Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. LXI, estabelece que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.
Pela leitura atenta do referido dispositivo, sobretudo pela conjunção alternativa ou – senão em flagrante delito ou por ordem escrita –, conclui-se que a prisão em flagrante não exige prévia ordem judicial.
Em razão disso, o ordenamento jurídico, a nível infraconstitucional, estabelece seu conceito e requisitos para que o Estado (Brasil, no caso), por meio de seus agentes públicos, não cometa abusos efetuando prisões inconstitucional/ilegais.
Dessa forma, após a prisão em flagrante, será lavrado pela Autoridade Policial o Auto de Prisão em Flagrante (APF), que será remetido ao Poder Judiciário para análise de sua legalidade. Tendo ocorrido a prisão sob a forma da lei (e da CF/88), o APF será homologado, porém, havendo ilegalidade, será relaxado, podendo o agente ser eventualmente posto em liberdade – aqui vale lembrar que, mesmo sendo uma prisão, em tese, ilegal, estando presentes os requisitos e pressupostos da prisão preventiva, esta poderá ser decretada.
Esclarecidos tais pontos, observa-se que o Código de Processo Penal conceitua flagrante delito e admite a prisão do agente nas seguintes hipóteses:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
I - está cometendo a infração penal;
II - acaba de cometê-la;
III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
Espécies:
Flagrante próprio (real, perfeito ou verdadeiro):
Previsto art. 302, inc. I, do CPP, ocorre quando o agente é flagrado praticando a conduta descrita no tipo penal, durante o iter criminis, hipótese na qual, pode, até mesmo, ser impedido de consumar a infração penal, conforme explica o Aury Lopes Júnior (2020, p. 938).
Ou quando o agente acaba de cometer o verbo nuclear (inc. II, do art. 302, do CPP), porém não se faz necessário ter ocorrido o resultado (o qual depende da espécie de crime). Não há lapso temporal relevante entre a prática do crime e a prisão (LOPES JÚNIOR. 2020, p. 938).
Flagrante impróprio (irreal, imperfeito ou quase flagrante):
Previsto no inc. III, do art. 302, do CPP, quando o agente é perseguido logo após a prática do delito. Importante referir que inexiste critério legal para definir o quanto em tempo corresponderia a expressão “logo após”, pois dependerá o caso concreto (PACCELI. 2021, p. 670). No entanto, a doutrina majoritária sustenta que a perseguição ao agente deverá ser imediata a prática do crime, não importando sua duração.
Flagrante presumido (ficto ou assimilado):
Hipótese do art. 302, inc. IV, do CPP, quando o agente é perseguido logo após a prática do delito e encontrado “logo depois”, na posse de instrumentos que presumam sua autoria. Exemplificando, seria o caso de a polícia, por exemplo, ter perseguido o agente, perdido seu rastro, porém, continuando em perseguição, o encontra.
Flagrante esperado:
Caso no qual a autoridade policial tem conhecimento de prévio da prática do delito e aguarda até que o agente inicie sua consumação (ou, até mesmo, sua conclusão) para efetuar a prisão. Segundo Norberto Avena, Esta modalidade de flagrante é válida, implicando tentativa punível ou, até mesmo, a consumação do crime (2018, p. 907).
Flagrante retardado (diferido ou controlado):
Previsto nas Leis nº 12.850/2013 (art. 8º) e nº 11.343/2006 (art. 53), hipóteses nas quais a autoridade policial poderá retardar sua intervenção (a prisão do agente) visando obter maiores informações e formação das provas acerca dos delitos.
Flagrante forjado (maquinado ou armado):
Nesse caso, inexiste crime que fundamente a prisão em flagrante do agente, pelo contrário, este é incriminado pela autoridade falsamente.
Flagrante provocado (preparado):
Caso no qual há atuação de um “agente provocador” que proporcione uma situação de realidade na qual o suspeito se veria compelido a repetir (já que ele é o suspeito) a infração (PACELLI. 2021, p. 673), por exemplo, a polícia provoca o agente a cometer o delito, justamente para prendê-lo em flagrante.
Nesse caso, a prisão em flagrante é ilegal sob dois principais argumentos. Primeiro: sem a atuação do “agente provocador” não seria cometida a infração penal. Segundo: a Autoridade Policial está preparada para efetuar prontamente a prisão, tratando-se de crime impossível.
A solução de continuidade na perseguição/busca:
A solução de continuidade na perseguição/busca representa a interrupção desta, desconfigurando, portanto, a situação de flagrante delito.
Em outras palavras, Autoridade Policial, embora tenha iniciado a perseguição/busca do agente logo após a prática delitiva, interrompe-a. Dessa forma, ainda que venha a retomar as buscas pelo agente e logre encontrá-lo, operou-se a solução de continuidade (a perseguição/busca deixou de ser ininterrupta).
Por outro lado, se a perseguição ou busca ocorrer de forma contínua, ainda que perdure por horas, ou mesmo dias, inexistirá solução de continuidade. Nessa toada, a lição de Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 1.034):
Como a lei não define o que se entende por ‘perseguido, logo após’, aplica-se, por analogia, o disposto no art. 290, § 1º, alíneas “a” e “b”, do CPP, segundo os quais entende-se que há perseguição quando: a) tendo a autoridade, o ofendido ou qualquer pessoa avistado o agente, for perseguindo-o sem interrupção, embora depois o tenha perdido de vista; b) sabendo, por indícios ou informações fidedignas, que o réu tenha passado, há pouco tempo, em tal ou qual direção, pelo lugar em que o procure, for no seu encalço. Vale lembrar que, nessas hipóteses de perseguição, a prisão pode ser efetuada em qualquer local onde o capturando for encontrado, ainda que em outro Estado da federação, em sua casa ou em casa alheia (CPP, art. 290, caput, c/c art. 293, caput, c/c art. 294, caput).
O importante, no quase-flagrante, é que a perseguição tenha início logo após o cometimento do fato delituoso, podendo perdurar por várias horas, desde que seja ininterrupta e contínua, sem qualquer solução de continuidade. Carece de fundamento legal, portanto, a regra popular segundo a qual a prisão em flagrante só pode ser levada a efeito em até 24 (vinte e quatro) horas após o cometimento do crime. Isso porque, nos casos de flagrante impróprio, desde que a perseguição seja ininterrupta e tenha tido início logo após a prática do delito, é cabível a prisão em flagrante mesmo após o decurso desse lapso temporal. Ex: acusado que estava sendo medicado em emergência de hospital, em razão de tiros que o atingiram quando perseguido pela Polícia, logo após o fato, ocasião em que foi preso. (grifou-se).
A questão das 24 horas:
Normalmente é comum vermos pseudojuristas – alguns diplomados, inclusive –, afirmarem que “após 24 horas não haverá mais flagrante”, porém, conforme exposto, inexiste previsão legal quanto a qualquer lapso temporal que venha a descaracterizar a situação de flagrante.
Portanto, quando o agente não é preso em flagrante durante a prática delitiva, porém, logo após esta, é iniciada sua perseguição ou busca, de forma contínua (sem solução/interrupção), sua prisão em flagrante será legal, pois o agente permanecerá em situação de flagrância.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Consulta em 22 Jan. 2023.
BRASIL. Código de Processo Penal – Dec. Lei nº 3.689/1941. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Consulta em 22 Jan. 2023.
BRASIL. Lei º 12.850/2013. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>. Acesso em 22.01.2023.
BRASIL. Lei nº 11.343/2006. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 22.01.2023.
Pacelli, Eugênio. Curso de processo penal. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2021.
Lopes Junior, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
Avena, Norberto. Processo penal. 10. ed. São Paulo: MÉTODO, 2018.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2020.