À época do Estado Liberal-burguês (Estado Legislativo – final do séc. XVIII e início do séc. XIX), predominavam os ideais de liberdade dos cidadãos, considerando a força estatal um empecilho ao livre desenvolvimento das forças existentes na sociedade [1]. Sustentava-se a concepção de que as leis eram perfeitas e acabadas, onde não havia preocupação com o conteúdo da norma e inexistiam lacunas no ordenamento jurídico (positivismo jurídico/acrítico) [2]. "Tal pensamento", diz Almiro do Couto e Silva [3], "era uma afirmação polêmica contra o autoritarismo ainda recente das monarquias absolutas, cuidava de travar o poder do Estado ou até mesmo destruí-lo". Essa acepção de Estado foi a responsável pela inconcebível simplificação da tarefa jurisdicional, tornando o trabalho dos juízes mero mecanismo das normas jurídicas. Limitava-se, com isso, a atuação do jurista à descrição da lei e à busca da vontade do legislador. A lei era dotada de plenitude e sempre teria respostas aos conflitos de interesses (prevalecia a idéia da supremacia da lei em detrimento das restrições que poderiam surgir aos direitos fundamentais).
Ocorre, outrossim, que com o advento do Estado Constitucional (Estado Social e Democrático de Direito, surgido após a 2ª Guerra Mundial) houve uma completa inversão dos valores pugnados no período do Estado Legislativo. A previsão dos direitos fundamentais, como um dos pilares do atual Estado (juntamente com os princípios democráticos e de justiça), tornou a atividade jurisdicional como uma das mais importantes para a manutenção dos direitos fundamentais em face da eventual violação surgida pela função legiferante. Expressão disso são os deveres de o juiz interpretar a lei de acordo com a Constituição, de controlar a constitucionalidade da lei, especialmente atribuindo-lhe novo sentido para evitar a sua inquinação, e de suprir eventuais omissões que impede a proteção de um direito fundamental. Agora, tendo em vista a ascensão política e científica do direito constitucional brasileiro – que conduziram-no ao centro do sistema jurídico e onde desempenha uma função de filtragem constitucional de todo o direito infraconstitucional [4] –, é a lei que deve ser compreendida à luz dos direitos fundamentais, tornando o juiz um verdadeiro árbitro na luta pela interpretação e aplicação desses direitos sobre as limitações impostas pelas maiorias parlamentares. Conforme Luiz Guilherme Marinoni, "dizer que a lei tem a sua substância moldada pela Constituição implica admitir que o juiz não é mais um funcionário público que objetiva solucionar os casos conflitos mediante a afirmação do texto da lei, mas sim um agente do poder que, por meio da adequada interpretação da lei e do controle da sua constitucionalidade, tem o dever de definir os litígios fazendo valer os princípios constitucionais de justiça e os direitos fundamentais". [5]
Contudo, é sabido que no âmbito do controle de constitucionalidade (jurisdição constitucional concentrada) se encontra o meio ideal para a contenda entre os "Poderes da República" (mais tecnicamente chamado de órgãos do Poder, haja vista a idéia de unidade deste, o qual é consubstanciado em três funções – função legislativa, executiva e judiciária). Neste ambiente, outrossim, não existe uma separação estanque entre os sistemas jurídico e político, uma vez que a nossa Carta Fundamental é o espaço de debate entre os diversos grupos político, econômico etc. que discutem no âmago do Estado [6].
Com efeito, a despeito da imensa aceitação que o controle jurisdicional concentrado de constitucionalidade (e seus efeitos vinculantes) possui dentro do sistema pátrio, bem como da pacífica idéia de que os direitos fundamentais – e as normas constitucionais – devem prevalecer sobre as leis, ainda há críticas (poucas, é verdade) sobre a conseqüência prática da declaração de (in)constitucionalidade pelo Judiciário de determinado ato normativo [7].
Nessa medida, a problemática maior surge na denominada dificuldade contramajoritária, a qual nasce do argumento de que aos órgãos que são compostos por agentes públicos não eletivos (Poder Judiciário), não poderiam (ou não deveriam) competir as declarações de nulidade dos atos normativos emanados dos órgãos que possuem o crivo da escolha popular (Poder Legislativo). Com efeito, ainda há quem defenda que, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, as pessoas afetadas pela decisão do Supremo Tribunal não participam diretamente do debate constitucional, além do que, tal modelo de controle de constitucionalidade não possibilita um verdadeiro diálogo entre o Poder Judiciário e os cidadãos [8]. Ocorre que, na atualidade, este pensamento não encontra aceitação entre a esmagadora maioria dos operadores do direito pátrio, por percucientes razões a seguir demonstradas. Antes, forçoso fazer uma breve abordagem sobre o Poder Constituinte Originário.
O Poder Constituinte Originário é aquele que instaura uma novel ordem jurídica, rompendo, completamente, a ordem pretérita [9]. Na Constituição Federal de 1988, esse poder soberano foi expressado pela Assembléia Nacional Constituinte (1987/88), a qual, por seu turno, nasceu da deliberação da representação popular. É nesse norte que se eleva a principal alegação da legitimidade do controle abstrato de constitucionalidade. Hodiernamente, não há mais como negar a afirmação democrática de que o titular do Poder Constituinte Originário é o povo, que teve seus desígnios exercidos e positivados por intermédio da representação popular (os parlamentares que integraram a Assembléia Nacional Constituinte). Em outras palavras, havendo necessidade de se ter uma Constituição, surge um poder com a finalidade de elaborá-la (Poder Constituinte Originário). Sua vontade é sempre legal, é a lei mesma [10]. É, ainda, um poder inicial, porquanto não se baseia em nenhum outro poder. É dele que derivam os demais poderes (chamados Poderes Constituídos: Executivo, Legislativo e Judiciário). Outrossim, pode-se dizer que é um poder autônomo e incondicionado, pois não se subordina a nenhum outro poder, bem como não há nenhuma forma a ser seguida.
Pois bem, partindo-se dessas premissas, necessário analisar tal questão à luz dos pensamentos de eminentes doutrinadores, bem como do entendimento da maioria doutrinária e jurisprudencial.
Por óbvio, sabendo-se que a Constituição Federal é obra do Poder Constituinte Originário (expressão mais clara da soberania popular), não poderia ser diferente que ela (a Constituição) está acima dos Poderes Constituídos, subordinando até mesmo o legislador, haja vista que num Estado Democrático de Direito o poder supremo é a força popular e não o autoritarismo estatal. Tendo a Carta Magna status de norma jurídica, cabe o mister de interpretá-la e aplicá-la aos órgãos jurisdicionais (em controle concentrado, ao STF). Consoante Luís Roberto Barroso [11], "em uma proposição: o Judiciário ao interpretar as normas constitucionais, revela a vontade do constituinte, isto é, do povo, e a faz prevalecer sobre a das maiorias parlamentares".
Destarte, quando o Poder Judiciário (STF) interpreta uma norma constitucional, não se está diante de um ato volitivo livre ou discricionário, mas sim, se está frente ao exercício da função precípua do Pretório Excelso, qual seja, de guardião da Constituição Federal (vale dizer, guardião da soberania popular). Dessa maneira, claro está que o órgão judicial não impõe a sua vontade, muito menos o seu juízo de valores, mas somente está submetendo os legisladores às escolhas prévias feitas pelo povo [12].
Nesta seara, parece insuficiente a defesa incondicionada do princípio da separação dos poderes (ou melhor, princípio da separação funcional do Poder), uma vez que a jurisdição constitucional é uma instância de força contramajoritária, na medida em que sua função é mesmo de anular determinados atos votados e aprovados majoritariamente (e ofensivamente!) por representantes eleitos. Não obstante, entende-se que os princípios e direitos fundamentais assegurados pela nossa Carta Magna são, na verdade, condições essenciais e estruturantes ao bom funcionamento do próprio regime democrático; desse modo, quando há anulação das leis contrárias a tais direitos, a intervenção do órgão judiciário se dá em benefício da democracia, e não contra [13].
Outrossim, conforme já assinalado anteriormente, malgrado a concepção de que a interpretação judicial (sobretudo da Constituição Federal) envolve um ato de vontade por parte do intérprete, tal vontade (que não deve ser compreendida como discricionária) está subordinada aos princípios que regem o sistema constitucional. Embora os órgãos jurisdicionais não sejam integrados por agentes eleitos, o poder de que são titulares, certa maneira, também é um poder representativo, ou seja, é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade [14]. Constatação que ganha peculiar realce quando se está a tratar de um Tribunal cuja missão é a guarda da Constituição (reitere-se: da vontade popular) e, também, pela razão de que a jurisdição constitucional, por mais técnica e apegada ao direito, jamais se libertará de uma dimensão política [15].
Ademais, parafraseando Lenio Luiz Streck [16], a soberania do parlamento cedeu o passo frente à supremacia da Lei Fundamental, de modo que o respeito pela separação dos poderes e pela submissão dos juízes à lei, foi suplantada pela prevalência dos direitos dos cidadãos face ao Estado. A idéia base, é a de que a vontade política, da maioria governante de cada momento, não pode prevalecer em detrimento da vontade da maioria soberana Constituinte que está jungida à "Lei Mãe". O Poder Constituído – por natureza derivado – deve respeitar o Poder Constituinte (por definição originário).
Por derradeiro, sempre importante colacionar os ensinamentos de invulgares doutrinadores, nesse caso, de Teori Albino Zavascki [17]. Para ele "a lei constitucional não é uma lei qualquer. Ela é a lei fundamental do sistema, na qual todas as demais assentam suas bases de validade e de legitimidade, seja formal, seja material. Na constituição está moldada a estrutura do Estado, seus organismos mais importantes, a distribuição e a limitação dos poderes dos seus agentes; nela estão estabelecidos os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Enfim, a Constituição é a lei suprema, a mais importante, a que está colocada no ápice do sistema normativo. Guardar a Constituição, observá-la fielmente, constitui, destarte, condição essencial de preservação do Estado de Direito no que ele tem de mais significativo, de mais vital, de mais fundamental. Em contrapartida, violar a Constituição, mais que violar uma lei, é atentar contra a base de todo o sistema".
Em outras palavras, a Constituição deve ser preferida à lei, assim como a intenção do povo a seus representantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- MARINONI, Luiz Guilherme. Estudos de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 17.
- Idem, ibidem.
- SILVA, Almiro do Couto e. Responsabilidade do Estado e Problemas Jurídicos Resultantes do Planejamento. In: Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul – Cadernos de Direito Público. Porto Alegre: RPGE, 2003, p. 117.
- BARROSO, Luís Roberto (org.). A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 47.
- MARINONI. Op. cit., 2005, p. 50.
- APPIO, Eduardo. Controle de Constitucionalidade no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005, p. 93.
- A questão que suscita as maiores controvérsias, é a que diz respeito à indagação de que se uma norma declarada (in)constitucional pelo STF (Poder Judiciário) não interfere na autonomia do Poder Legislativo quando da criação da lei.
- OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2003, p. 54.
- LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 10. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 66.
- MACHADO. Op. cit., 2005, p. 21.
- BARROSO. Op. cit., 2006, p. 55.
- Idem, p. 55.
- BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 224.
- BARROSO. Op. cit., 2006, p. 60.
- BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 111.
- STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 100-101.
- ZAVASCKI. Op. cit., 2001, p. 129.