A fiança que eu paguei vai ser devolvida?
Essa pergunta é muito feita a mim por clientes, então para sanar as dúvidas sobre o instituto da fiança tecerei alguns comentários sobre o tema.
Iniciaremos falando sobre o conceito, natureza jurídica e os requisitos da fiança, ao fim teremos a resposta da pergunta do título. Boa leitura.
CONCEITO
A fiança é uma caução prestada para que uma pessoa flagrada cometendo crime responda o processo em liberdade, reinserida no elenco das medidas cautelares alternativas à prisão pela lei 12.403/2011. É como se o juiz dissesse: “me dá um dinheiro aqui pra você não fugir e no final do processo vem buscar”. É uma garantia que o réu vai cooperar durante todo o desenrolar do processo.
Tem também outra função: a de garantir o juízo nas custas, multas e eventuais reparações de danos em caso de condenação. Vejamos julgado do STJ:
“o instituto da fiança tem por finalidade a garantia do juízo, assegurando a presença do acusado durante a persecução criminal e o bom andamento do feito. Interpretando sistematicamente a lei, identifica-se uma finalidade secundária na medida, que consiste em assegurar o juízo também para o cumprimento de futuras obrigações financeiras.” (STJ. 6a Turma. RHC 42.049/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 17/12/2013)
Em termos jurídicos caução é uma garantia de uma dívida, isso para o direito civil. Na esfera penal é a garantia de que o indiciado não vai fugir e que vai cooperar em todo processo, como já falado; é uma das chamadas medidas alternativas, a mais famosa, pra dizer a verdade, porque está sempre nos noticiários.
Das notícias jornalísticas nasce o mito de que quem é rico não vai preso, mas a coisa não é tão simples assim, pois como se verá ao longo deste texto, a garantia não é cabível em qualquer hipótese.
Então, temos que a fiança é um meio de se conseguir a liberdade provisória, pagando o valor fixado e se comprometendo ao cumprimento de outras obrigações – quando disse em não fugir e cooperar como processo - quando se é flagrado para responder ao processo em liberdade.
Nos dizeres de Renato Brasileiro, é “uma garantia real de cumprimento das obrigações processuais do réu” (Manual de processo penal: volume único, 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 1170).
É garantia real porque prestada com coisas, conforme disposto no artigo 330, caput, CPP.
NATUREZA JURÍDICA
Quando se fala em natureza jurídica está se falando na posição que o instituto ocupa no ordenamento, se é um direito, uma faculdade ou um ônus. Direito é o que deve ser exercido pelo titular, faculdade é opcional e o ônus é o que deve ser feito ou suportado.
Tendo isso em mente percebemos que a liberdade é um direito fundamental, conforme a constituição que já traz essa disposição no caput, na cabeça do artigo 5º, inaugurando o rol dos direitos e garantias individuais.
Assim, sendo a liberdade a regra, ela só pode ser tolhida, retirada do cidadão, nos casos expressos em lei, é a dicção do inciso LXVI, do art. 5º, CF: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança”. Logo, sendo cabível a fiança é um direito sua concessão.
A não concessão dessa benesse abre a possibilidade de impetração de habeas corpus com fundamento no art. 648, inciso V, do CPP. Reforçando a ideia de ser um direito do indivíduo, a lei 13.869/19, estabelece que é crime de abuso de autoridade a não concessão da liberdade provisória em prazo razoável quando manifestamente cabível (9º, parágrafo único, inciso II, parte final).
É também uma medida cautelar, pois o advento da lei 12.403/2011 a recolocou nos holofotes, modificando os entendimentos anteriores de tratar-se de mera medida de contracautela. Sobre o tema o magistério de Renato brasileiro:
“com as modificações produzidas pela Lei nº 12.403/11, a liberdade provisória com fiança deixa de ser apenas uma medida de contracautela (CPP, art. 310, III), e passa a funcionar também como medida cautelar autônoma, podendo ser determinada pelo juiz nas infrações que admitem a fiança, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial (CPP, art. 319, VIII)”. (Manual de processo penal: volume único, 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020).
Vejamos a letra da lei, com a inovação legal:
Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
[...]
VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
[...]
De todo exposto, podemos afirmar categoricamente tratar-se de medida cautelar autônoma e com status de direito fundamental, pois, uma vez presentes seus requisitos, deve ser concedida da liberdade provisória com a prestação da fiança.
REQUISITOS PARA A FIANÇA
Esclarecido o que é a fiança, devemos ter em mente que esta garantia deve ser prestada nos casos não proibidos em lei, naqueles crimes mais pesados para os quais o legislador entendeu por bem agir de maneira mais dura, o rol desses crimes é encontrado no artigo 337 do Código de Processo Penal, também na Constituição Federal (artigo 5º, XLII, XLIII e XLIV).
Mas porque para alguns crimes não se pode pagar fiança?
O direito penal é o ramo do direito que protege os bens jurídicos mais caros à vida social por meio da ameaça da sanção em caso de agressão a tais bens, que podem ser corpóreos – como o patrimônio – ou incorpóreos, abstratos – assim a honra pessoal, o respeito aos mortos.
Logo, há crimes que agridem bens tão preciosos de maneira tão grave que tornam ilógica a concessão de liberdade provisória quando o agente é pego em flagrante.
Aqui temos o primeiro dos requisitos para sua concessão: que não seja crime inafiançável. E quais são esses crimes inafiançáveis? Ora, são os mais graves, hediondos, que causam a maior repulsa social, elencados no artigo 322, CPP, em especial o inciso II do dispositivo ao mencionar os crimes hediondos, ampliando esse rol, com base na repulsa social. Logo tal elenco não é taxativo.
Não esquecendo do princípio da taxatividade, logo os crimes inafiançáveis devem estar previstos em lei.
Outro requisito é concessão pela autoridade competente, que em regra é o juiz, que deve decidir em até 48 horas do recebimento dos autos, mas pode ser decretada também pelo delegado de polícia quando o crime não tiver pena maior que 4 anos (artigo 322, CPP). Há outro obstáculo à fixação de fiança pelo delegado disposta na 24-A da lei Maria da penha, diminuindo essa pena para 2 anos.
Por fim, atente-se que a fiança é fixada nos casos em que não seja cabível a prisão preventiva ou cautelar nos termos do artigo 312 CPP, ou seja, quando não há risco de fuga, de cometimento de novos crimes ou reiteração destes, e/ou interferência nas investigações. E pode ainda ser imposta em conjunto com outras medidas cautelares previstas no artigo 319, CPP.
Tecidos esses (nem tão) breves comentários vamos ao que interessa: a reposta à pergunta inicial.
PARA ONDE VAI O DINHEIRO DA FIANÇA
Recapitulemos que fiança é medida cautelar autônoma, direito subjetivo do acusado, prestada em dinheiro, podendo ser fixada no flagrante ou mesmo no curso do processo.
E lembram que falei no início que é um dinheiro que você paga pra não fugir e ir buscar depois? Então, além dessa função tem a de garantir o juízo, como explicado mais acima, nos termos do artigo 336, CPP, que acontece mesmo se prescrever a pretensão punitiva (prescrição pós trânsito em julgado), parágrafo único do mesmo artigo.
Isso é em caso de condenação, pois em caso de absolvição ou mesmo qualquer causa que extinga a ação penal (o que torna sem efeito a caução), os valores devem ser devolvidos corrigidos, é a literalidade do texto do artigo 337, CPP:
Art. 337 Se a fiança for declarada sem efeito ou passar em julgado sentença que houver absolvido o acusado ou declarada extinta a ação penal, o valor que a constituir, atualizado, será restituído sem desconto, salvo o disposto no parágrafo único do art. 336 deste Código.
Então seria simples e fácil, acabou o processo em absolvição, dinheiro na mão (olha só, rimou). Mas quem atua no criminal sabe que o MP não aceita o que eles entendem como derrota e ficam às vezes caçando pelo em ovo e ainda tem magistrado que do alto de sua imaculada sabedoria os penteia. Vejam o seguinte caso.
Processo transitou em julgado e foi requerida a devolução da fiança, como previsto em lei, mas o MP achou por bem requerer a negativa em razão de os valores serem, em tese, oriundos da prática de crimes, o que foi acatado pelo juízo de piso, tendo o advogado de ir ao STJ para fazer valer o direito do seu cliente, vejamos o que se decidiu:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. DELITO DO ART. 334, § 1º, B ", DO CÓDIGO PENAL, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI N. 4.729/65. INTERNALIZAÇÃO DE MERCADORIA PROIBIDA SEM O REGISTRO ESPECIAL. LIBERDADE PROVISÓRIA. FIANÇA. GARANTIA PRESTADA EM DINHEIRO. RESTITUIÇÃO. DESCONTADOS OS ENCARGOS LEGAIS. ORIGEM LÍCITA. COMPROVAÇÃO. NEXO DE CAUSALIDADE COM O CRIME EM QUESTÃO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. ANALOGIA IN BONAM PARTEM. INCIDÊNCIA. INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO. RECURSO PROVIDO.
1. In casu, o recorrente foi condenado pelo crime do art. 334, § 1º, b, do Código Penal, com a redação dada pela Lei n. 4.729/65 (internalização de mercadoria proibida de importação sem o devido registro especial). 340.000 (trezentos e quarenta mil) maços de cigarros de origem paraguaia, avaliados em R$ 132.423,20 (cento e trinta e dois mil, quatrocentos e vinte e três reais e vinte centavos)., à pena de 1 (um) ano e 15 (quinze) dias de reclusão, substituída por duas restritivas de direitos.
2. Fixada e prestada a fiança na forma da Lei, o Tribunal de origem, mantendo a r. Sentença, condicionou a devolução do seu saldo à comprovação da licitude, cogitando ter relação com a prática delituosa. A defesa interpôs Recurso Especial, sustentando a ilegalidade dessa determinação.
3. Nos termos do art. 330 do Código de Processo Penal, a fiança é uma garantia real, consistente no depósito de determinada importância em dinheiro, arbitrada pela autoridade competente, que tem como finalidade assegurar a liberdade provisória do preso em flagrante e garantir o seu comparecimento aos atos do processo, enquanto este durar.
4. A fiança pode ser perdida em sua totalidade, sendo o saldo recolhido ao fundo penitenciário, nos casos em que, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, o acusado não se apresentar para o início do cumprimento da pena definitivamente imposta. O CPP ainda prevê os casos de cassação; de reforço da caução e, ainda; de quebra. In casu, não se está a tratar de qualquer dessas hipóteses. (...)
9. Assim, inexistindo provas da vinculação ou do nexo causal entre o crime praticado e a fiança prestada, a consequência lógica é a liberação da garantia, já que esta perdeu seu objeto com a finalização do processo condenatório, nos termos do art. 347 do Código de Processo Penal.
10. Recurso especial provido.
(STJ; REsp 1.657.576; Proc. 2017/0046801-7; PR; Quinta Turma; Rel. Min. Joel Ilan Paciornik; DJE 30/06/2017)
Como já mencionado, tratando-se de direito fundamental basta o preenchimento dos requisitos legais para a sua concessão, e entre tais requisitos não se encontra a comprovação da origem lícita dos valores caucionados, indo muito mal o magistrado de primeira instância em cogitar tal situação.
Pior ainda foram os ministros ao deixar margem para isso, mas é avida do advogado tendo de brigar contra todo o sistema e até mesmo com a sociedade, quando se trata de criminalista, mas vou parar por aqui para não virar um desabafo rsrs.
Nos termos da lei, em caso de absolvição ou não tendo se perdido ou cassado o valor da fiança, devem os valores ser devolvidos corrigidos, salvo perda ou cassação, como já dito ou sendo condenado. A destinação dos valores em caso de condenação independe da exequibilidade da pena, ou seja, mesmo prescrita a pretensão punitiva os valores devem ser usados para as custas processuais, multas e/ou reparações civis.
Referências
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Acesso em: 09/01/2024.
BRASIL. [Código de Processo Penal (1941)]. Código de Processo Penal de 03 de outubro de 1941. Brasília, DF: Presidência da República, Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm Acesso em 08/01/2024.
Brasil. Lei 12.403 de 04 de maio de 2011. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm. Acesso em 08/01/2024.
STJ: REsp 1.657.576; Proc. 2017/0046801-7; PR; Quinta Turma; Rel. Min. Joel Ilan Paciornik; DJE 30/06/2017. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Acesso em 09/01/2024.
STJ. 6a Turma. RHC 42.049/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 17/12/2013. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?i=1&b=ACOR&livre=((%27RHC%27.clap.+e+@num=%2742049%27)+ou+(%27RHC%27+adj+%2742049%27).suce.)&thesaurus=JURIDICO&fr=veja. Acesso em: 09/01/2024.
BRASILEIRO, Renato. Manual de processo penal: volume único, 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
AVENA, Norberto. Processo penal – 15. ed. – Rio de Janeiro: Método, 2023.
NUCCI, Guilherme de Souza Código de Processo Penal Comentado – 19. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.
REIS, Alexandre Cebrian Araújo, GONÇALVES, Victor Eduardo. Direito Processual Penal Esquematizado, organizado por Pedro Lenza. - 11. ed. - São Paulo : SaraivaJur, 2022.