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Contextualização das microrreformas previdenciárias face ao princípio da vedação de retrocesso social

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Agenda 01/02/2024 às 16:16

Contextualização das microrreformas previdenciárias face ao princípio da vedação de retrocesso social.

Tatiana Conceição Fiore de Almeida1

RESUMO: O artigo situa a supressão de direitos impostos pelas microrreformas como ingerência dos poderes, na preservação de direitos fundamentais sociais, como mola propulsora de insegurança jurídica na efetivação do Bem-estar social garantidor da dignidade da pessoa humana. Através da análise do princípio da vedação de retrocesso, e sua interferência efetiva na estabilidade constitucional em face dos direitos sociais, a fim de evitar que a ordem jurídica sofra com a insegurança reformista, para suprir necessidade diversa do fato gerador da contribuição previdenciária.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Previdenciário. Vedação ao Retrocesso. Direitos Fundamentais. Direito Social. Ciência política.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A Constitucionalização do Direito Previdenciário; 2. Os Direitos Sociais como Direito Fundamental Social; 3. O Princípio Implícito na Constituição de Vedação ao Retrocesso Social; 3.1. O Neoliberalismo e o “Estado Mínimo”; 3.2. Conflito com o princípio da reserva do possível; 3.3. O Princípio de Vedação ao Retrocesso e o Dever de Concretização do Núcleo Essencial dos Direitos Sociais; 4. As Microrreformas de 2014 e o Retrocesso Social; Conclusão.


Introdução

As microrreformas previdenciárias que surgiram em 30.12.2014, como são conhecidas por todos, não nasceu das aspirações sociais, não foi fruto de um debate político pautado pelos principais presidenciáveis. No dado momento histórico o Governo Federal prometeu expressamente não mexer nos direitos dos trabalhadores.

Essa quebra de confiança política deu-se unicamente como reação ao intento governamental, isto mesmo, a Presidente da República, editou duas Medidas Provisórias2, que alterou critérios de concessão de alguns benefícios, nomeadamente regra alternativa ao fator previdenciário, auxílio doença, e pensão por morte, e reduziu o acesso ao seguro-desemprego.

Pautados no aumento de sobrevida da população e um falso déficit previdenciário o governo não resguardou o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, o que gerou instabilidade nas conquistas dispostas na Carta Política, com a permissividade do Estado alterar, quer seja por mera liberalidade, ou como escusa de realização dos direitos sociais.

A explicitação constitucional de uma série de direitos fundamentais, entre os quais se destacam as regras pétreas dos direitos sociais, é uma das características de destaque do constituinte por certa e determinada ordem de valores, centrada no protagonismo do ser humano como fundamento e fim último do Estado Democrático de Direito assim instituído.

Para que exista concretização de direitos sociais, o Estado, em suas três funções deve agir de forma a não barrar o progresso pátrio, pelos próprios princípios basilares, onde a dignidade da pessoa humana é reconhecida como fundamento do Estado brasileiro no artigo 1º, III da Constituição Federal, instituindo, como escopos basais, a construção da sociedade livre, justa e solidária; a garantia de desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza, com a redução das desigualdades sociais e regionais; bem como a promoção do bem de todos, sem discriminações.

Isso significa que a proteção dos direitos sociais deve dar-se conforme o direito adquirido, e contra medidas restritivas aos direitos fundamentais.

  1. A Constitucionalização do Direito Previdenciário

A proteção dos direitos previdenciários no Brasil deve ser contextualizada com base em uma análise sistemática do direito constitucional pátrio, a partir do momento em que é consagrado entre os direitos sociais fundamentais descritos no artigo 6º da CF/88, com normatização específica nos artigos 201 e 202 da carta magna.

Igualmente, a afirmação, já em nível constitucional, dos princípios e diretrizes pelos quais a previdência social deve ser organizada, a forma de programar os direitos aos benefícios previdenciários, notadamente pela amplitude e, ao mesmo tempo, pelo detalhamento levado a efeito na narrativa do artigo, permite dizer que já apresenta os contornos de verdadeira garantia institucional fundamentada3.

O que não se vem levando em conta, ao menos por aqueles que defendem uma mitigação nos direitos fundamentais, é que esses direitos devem ser, na acepção pura da palavra fundamental sob uma perspectiva material, de tal sorte que venham a proteger a dignidade humana dentro de um contexto amplo, não se restringindo a hipóteses prévias, ou mesmo a meras circunstâncias conjunturais legislativas, segundo ensina Celso Antônio Bandeira de Mello:

“O respeito à dignidade humana, estampado nos direitos sociais, é patrimônio de suprema valia e faz parte, tanto ou mais que algum outro, do acervo histórico, moral, jurídico e cultural de um povo. O Estado, enquanto seu guardião, não pode amesquinhá-lo, corroê-lo, dilapidá-lo ou dissipá-lo.”4

Porém, chama a atenção José Joaquim Gomes Canotilho que “(...) ao legislador compete, dentro das reservas orçamentais, dos planos económicos e financeiros, das condições sociais e económicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos sociais, económicos e culturais” 5, o que faz concluir que não se pode suprimir, por mais que se tentem os efeitos vinculantes dos direitos fundamentais.

A seriedade do que ora se assinala também ficou anotado por Francisco Fernández Segado, ao aduzir que:

Parece, pues, perfectamente oportuno afirmar que el derecho fundamental para el hombre, base y condición de todos los demás, es el derecho a ser reconocido siempre como persona humana. El Derecho, el ordenamiento jurídico en su conjunto, no quedará iluminado, em términos de Lucas Verdú, legitimado, sino mediante el reconocimiento de la dignidad de la persona humana y de los derechos que le son inherentes.6.

Evidencia-se, assim, que os direitos fundamentais vêm se tornando a pedra de sustentação de qualquer Estado Democrático de Direito, dada as funções estruturais que eles apresentam em sintonia com os próprios princípios constitucionais contra medidas jurídicas, legislativas e administrativas que retrocedam as garantias sociais progressivas.

Conforme preleções de Flávia Piovesan, esta é a confiança de que efetivamente estes direitos fundamentais sociais terão eficácia, apesar de flexibilizados pela ingerência reformista, se assegurados pela essencialidade da dignidade da pessoa humana.

“A dignidade da pessoa humana, vê-se assim, está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora "as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro” 7.

Em uma visão ampla sobre a importância dos direitos fundamentais, especialmente quanto à sua eficácia plena, posição que deveria ser acolhida por doutrinadores e tribunais, vem defendendo Jorge Miranda:

“Na verdade, precisamente por os direitos fundamentais poderem ser entendidos prima facie como direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa, como os direitos que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível atual de dignidade, como as bases principais da situação jurídica de cada pessoal, eles dependem das filosofias políticas, sociais e econômicas e das circunstâncias de cada época e lugar. Não excluímos – bem pelo contrário – o apelo ao Direito Natural, o apelo ao valor e à dignidade da pessoa humana, a direitos derivados da natureza do homem ou da natureza do Direito.” 8.

Pode-se, sob esse aspecto, assentar em Canotilho que:

“Fundamentando originariamente direitos a prestações, não é legítimo dizer-se que as normas consagradoras destes direitos são ‘leges imperfectae’, sem qualquer conteúdo jurídico-constitucional antes da sua concretização legislativa.” 9.

Porém, segundo Piovesan se impõe reforçar a necessidade da eficácia positiva de tais normas, inclusive com mecanismos de sanção em havendo a não observância a esses direitos, de tal sorte que:

“(...) ensejaria a responsabilização dos poderes públicos, quando estes se mostrassem indiferentes, omissos e negligentemente impedissem o cumprimento das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais.” 10.

Nessa linha equivocada, é certo que os direitos sociais fundamentais vêm sendo relegados a níveis inferiores sob o argumento de serem despidos de eficácia.

Contudo, devemos admitir que os direitos sociais fundamentais estão atrelados à “reserva do possível” ou à vontade legislativa, de modo que tais direitos são inerentes ao próprio cidadão (saúde, trabalho, a previdência social, a assistência aos desamparados, etc.), o que impede que venham a ser ultrajados, seja pelo Estado, e não há margem para negar-se a plena eficácia, havendo claras imposições ao legislador e ao Estado para que garantam meios para o exercício pleno desses direitos, a essa inércia legislativa, redundaria em uma inconstitucionalidade por omissão.

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  1. Os Direitos Sociais como Direito Fundamental Social

O sistema constitucional brasileiro, diferentemente do que acontece em outros países consagrou o direito à previdência social, como direito fundamental social. O que significa isso?

Significa que possuem a mesma fundamentalidade atribuída aos direitos e garantias individuais e estão elevados à cláusula pétrea.

Em termos formais, seria dizer que, por meio da cláusula de abertura inserida no §2º do artigo 5º da CF/88, é possível a extensão do regime de proteção constitucional reforçada para outros direitos além daqueles arrolados no artigo 5º, mesmo se não previstos de maneira expressa no texto, desde que decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, bem como dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Ainda sob o aspecto formal da fundamentalidade, as normas de direitos sociais são dotadas de aplicabilidade imediata, como assegura o §1º, do artigo 5º da Constituição, considerado como um mandado de otimização11 para o interprete-aplicador, a indicar que deva privilegiar a interpretação que maior eficácia confira ao direito fundamental em causa.

Da mesma maneira que os direitos fundamentais, os direitos sociais também se encontram protegidos pelos limites materiais ao poder de reforma e a vedação de retrocesso.

Nesse aspecto a fundamentalidade material diz respeito à averiguação da importância do bem constitucionalmente protegido para a comunidade na qual se insere a Constituição.

Na sociedade brasileira, o mencionado protagonismo da pessoa humana, assim como a vinculação constitucional da República à construção da sociedade livre, justa e solidária; voltada a redução das desigualdades sociais e regionais; em ultima análise, à promoção do bem de todos, sem discriminações, endossa a relevância de bens jurídicos da Seguridade Social, em sua extensão máxima (Saúde, Previdência, Assistência) e da fundamentalidade material, requisitada nos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello.

Nesse diapasão, o direito a Previdência, explicitamente previsto no artigo 6ºda CF/88, é direito fundamental em sentido material e formal, pois condiciona em grande medida o uso e fruição dos direitos, notadamente quando assimilada à ideia de qualidade de vida digna, certamente porque não foge a constatação do caráter alimentar que lhe presta em substituição ao salário.

Os direitos sociais estão classificados como direitos fundamentais de segunda dimensão, pois, visam conceder aos indivíduos uma vida digna, como pressupostos para a concretização dos demais direitos, e integram a Constituição de 1988, formal e materialmente, revelando a sua posição de destaque no âmbito da normativa constitucional.

Andreas Joachim Krell adverte que a Constituição alemã de Weimar de 1919 foi considerada a mais importante como garantidora dos direitos fundamentais de segunda geração. Contudo, em razão da falta de efetividade desses direitos, a aludida Carta foi considerada um fracasso pelos alemães. Nesse sentido, resolveu-se não inserir os direitos subjetivos a prestações positivas do Estado na Constituição de 1949, buscando-se, com isso, a garantia da efetividade das normas constitucionais 12.

No Brasil vivemos uma contrarrevolução social, ou uma evolução reacionária, pois nosso problema atualmente não esta relacionados à falta de eficácia social e/ou efetividade  dos direitos fundamentais sociais, as microrreformas previdenciárias, estão retrocedendo, recuando direitos conquistados, pela sociedade sequiosa e carente, dificultando acesso a essas garantias, a ponto de quiçá acreditarmos que estamos retroagindo a era assistencialista, fase em que não havia direito subjetivo do necessitado à proteção social, mas mera expectativa de direito13.

  1. O Princípio Implícito na Constituição de Vedação ao Retrocesso Social

O princípio de vedação ao retrocesso social é um princípio que proíbe ao Legislador a supressão ou alteração das normas infraconstitucionais que concretizam normas constitucionais de direitos sociais de serem violados em sua eficácia.

Este princípio implícito seria a mola mestra para conduzir a estabilidade dos direitos fundamentais que asseguram a dignidade da pessoa humana como um todo e por consequência atrair a efetividade da segurança jurídica no Estado de Direito.

Observa-se que o assunto é totalmente atual e relevante, pois, diante da denominada crise do Estado Social em que vivemos, e da tentativa de se estabelecer um Estado minimalista, com ideologia neoliberal, o manejo adequado do princípio de vedação ao retrocesso social se constitui numa arma importante para a proteção e a busca da máxima efetividade dos direitos sociais fundamentais.

  1. O Neoliberalismo e o “Estado Mínimo”

Atentemos ao fato que o neoliberalismo não se embaraça com o liberalismo clássico, que fomentava um Estado mínimo, porém indutor das forças econômicas e com certo compromisso entre capital e trabalho, chamado de Fordismo. Na contramão, o neoliberalismo, representa a retomada do modelo clássico aplicado ao capitalismo contemporâneo, não prevê qualquer reciprocidade, é abertamente concorrente; encerra, ao revés, uma matriz intelectual desconstrutivista do primado constitucional encestado no artigo 1º, inciso IV, e nesse condão dos artigos 6º, 170, e 193 da Lex Magna, à qual deve se submeter o Estado, sob pena de arruinar-se no mercado internacional.

Por amor ao debate, a Constituição Federal de 1988, dissemina esse neoliberalismo, defendendo a corrente teórica do “Estado-mínimo”, onde o Estado é um agente que deveria se recolher ao máximo, transferindo a tomada de decisões, de forma crescente para o plano privado e repassando serviços básicos estatais para as empresas particulares, deixando assim a sociedade sob o escudo da “eficiência” e da “livre concorrência”.

Queremos demonstrar com isso, onde ocorre o rompimento entre a proteção idealizada e a existente, com a influência do neoliberalismo.

“[...]Com o advento da Constituição, há o nascimento de um Sistema Nacional de Seguridade Social, o qual possui a finalidade precípua de assegurar o Bem-Estar e a justiça sociais, para que, desta forma, ninguém seja privado do mínimo existencial, ou seja, para que a todos os cidadãos seja assegurado o princípio da dignidade humana e é pautado, por vários princípios, dentre eles o princípio da universalidade de cobertura e de atendimento, o que demonstra que possui um caráter ideário.

Cumprem ressaltar que, dentro da Seguridade Social, os serviços de saúde e de assistência social não dependem de custeio, em contrapartida, os serviços de Previdência Social dependem da contraprestação para terem direito aos benefícios, e é essa necessidade rompe com o mencionado ideário [...]”14.

Este seria o papel do princípio de vedação ao retrocesso social, que está diretamente ligada ao pensamento do  constitucionalismo dirigente de J. J. G. Canotilho, que estabelece as tarefas de ação futura  ao Estado e à sociedade com a finalidade de dar maior alcance aos direitos sociais e diminuir as desigualdades. De modo que deveríamos entender os direitos sociais como irredutíveis, passiveis somente de modificações que aumentassem seu alcance, no contexto I. W. Sarlet bem diz:

[...] a segurança jurídica, na sua dimensão objetiva, exige um patamar mínimo de continuidade do (e, no nosso sentir, também no) Direito, ao passo que, na perspectiva subjetiva, significa a proteção da confiança do cidadão nesta continuidade da ordem jurídica no sentido de uma segurança individual das suas próprias posições jurídicas.

Certo é que a Carta Constitucional promulgada na guinada neoliberal sustentou a instituição do Estado Democrático de Direito, e o Bem-Estar Social na melhor possível das compreensões, que logo detonou em um processo de desfazimento ou não realização dos direitos fundamentais sociais ali garantidos.

Razão pela qual, mesmo que implícito o princípio de vedação ao retrocesso social, face ao movimento de esfacelamento de direitos sociais ocasionado por essas microrreformas, simboliza uma flagrante violação à ordem constitucional, que na qualidade de direitos constitucionais fundamentais, os direitos sociais são direitos intangíveis e irredutíveis, sendo provido da garantia da suprema rigidez, o que torna inconstitucional qualquer ato que tenda a restringi-los ou aboli-los.

3.2 Conflito com o princípio da reserva do possível.

Outro aspecto do princípio da vedação ao retrocesso social é o conflito com o princípio da reserva do possível.  

É certo que o Estado só pode dar aquilo que não lhe prejudicará financeiramente, que lhe possibilitará continuar prestando serviços, este é a reserva do possível, mas então, como o Estado prevê direitos de ordem fundamental que não poderá cumprir por inexistência de verbas?

A reserva do possível traduz a necessidade de normatizar, executar e julgar somente o que os cofres públicos podem oferecer, ou seja, o Estado deve evitar a elaboração de leis que garantam ao povo direito que não poderão ser efetivados, fazendo com que a maquina judiciária seja acionado a fim de obrigá-lo a liberar proventos.

Este argumento da reserva do possível somente deve ser acolhido se o Poder Público demonstrar suficientemente que a decisão causará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais, e o ônus da prova de que não há recursos para realizar os direitos sociais é do Poder Público.

Dessa necessidade de provas, de demonstração que o Poder Público não possui elementos orçamentários e financeiros para efetivação de direitos sociais fundamentais, e dar plausibilidade aos fundamentos de relevância e urgência para introduzir as microrreformas, é que o governo simula a existência do déficit previdenciário.

Façamos uma breve análise sobre o engodo denominado déficit previdenciário, onde a base do financiamento da seguridade social, em suas três vertentes foi diversificada, passando a serem financiada por toda a sociedade, compreendendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e ainda os empregadores, os trabalhadores, os concursos e prognósticos e o importador de bens e ou serviços do exterior, e nesse rol, inclui ainda a CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, a COFINS – Contribuição para o financiamento da Seguridade Social, e todas deveriam ser destinadas ao Fundo do Regime Geral da Previdência.

A questão é tão complexa, que se analisarmos o artigo 165, §5º, incisos da Constituição, estabelece que a Lei Orçamentária Anual (LOA) compreenda três orçamentos distintos, porém a Controladoria Geral da União elabora apenas dois orçamentos, unificando o orçamento fiscal e o da seguridade social, tornando quase impossível isolá-los, e o montante é destinado para o pagamento de outras despesas, dentre elas a dívida pública.

Assim, a alegação de que não existem recursos nos cofres Públicos da Previdência Social não procede, pois a cada ano milhões de reais saem oficialmente da Seguridade Social para serem aplicados em outros fins.

Como verificamos a questão da aplicação da reserva do possível sem critérios concretos e justificadores para limitar a efetivação dos direitos sociais pode significar sim uma afronta ao princípio de vedação ao retrocesso social.

O princípio em questão que vem vincular o direito à economia, proporcionando uma parceria que por vezes age tão somente como desculpa de não adimplência dos direitos assegurados ao povo por lei. Chamar o princípio da reserva do possível para retroceder direitos fundamentais sociais de trabalhadores, beneficiários e pensionistas, e na sequência elaborar a PEC 87/2015 para aumentar de 20% para 30% o valor da Desvinculação das Receitas da União (DRU), dos recursos destinados aos programas sociais em especial as ações do sistema de seguridade social, é confessar que a previdência é superavitária, sendo uma heresia usar da ignorância política dos brasileiros, como instrumento de gestão governamental para permitir que recursos das Contribuições sociais sejam desviados para amortizar Dívida pública Federal.

3.3 O Princípio de Vedação ao Retrocesso e o Dever de Concretização do Núcleo Essencial dos Direitos Sociais

É cediço que não existe plausibilidade na exposição dos motivos das Medidas Provisórias que mitigaram, cercearam, desmantelaram a Previdência Social brasileira no final de 2014, tampouco, nas que estão para ser votadas no Congresso Nacional em 2016.

Então, estamos diante de mais uma das desculpas inconsistentes, outro argumento pífio dos tantos já usados, como o “falso” déficit previdenciário, a necessidade de flexibilização dos direitos trabalhistas para redução dos índices de informalidade e subemprego. Como justificar o que é injustificável? Como explicar dentro desse modelo neoliberal a necessidade de desproteger para proteger os direitos fundamentais humanos.

Bem como já foi destacado antes, o legislador não pode, após a efetivação de um direito social no plano da legislação infraconstitucional, suprimi-lo afetando o seu núcleo essencial concretizado.

O núcleo essencial do direito fundamental social carece ser sempre resguardado.

Existem duas correntes doutrinárias que explicam o núcleo essencial dos direitos sóciais. A primeira denominada de absoluta, que identifica o conteúdo essencial do direito fundamental como uma medida fixa, relativa aos elementos típicos que configuram o direito, no sentido que não pode ser afetada, sob pena de inconstitucionalidade. A Segunda corrente denominada de relativa, que considera que a afetação desse núcleo se verifica quando o direito é limitado além do que obrigava a justificação constitucional da intervenção.

Verificamos então, que o princípio de vedação ao retrocesso social deve poupar um núcleo essencial, que impeça que o legislador retire a concretização de uma norma de direito fundamental social, sem que sejam criados mecanismos equivalentes ou compensatórios.

Quando tratar da questão da substituição de uma lei por outra, com matéria idêntica, a posição mais correta é aquela que defende a impossibilidade de revogação do núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, sem que se crie uma nova lei substitutiva da revogada. Quando tratar de supressão ou alteração de uma norma infraconstitucional que concretizava o núcleo essencial de um direito social, nota-se que necessita incidir, sempre, a prevalência do princípio da vedação do retrocesso social, que abrigará este núcleo.

Assim, a Nichtumkehrbarkeitstheorie ou teoria da irreversibilidade, teria como ponto de partida a afirmativa de que não se pode desvirtuar o conteúdo substantivo da vinculação social do Estado diretamente da Constituição, mas, uma vez determinadas as regulações, ou o ajustamento legal ou regulamentado este princípio, as medidas regressivas que derivam destas regulamentações seriam inconstitucionais, ou seja, haveria uma irreversibilidade das conquistas sociais alcançadas 15.

Corrobora, o ensinamento de J. J. G. Canotilho, que influenciou e tem influenciado diretamente a doutrina brasileira em relação ao princípio de vedação ao retrocesso social, segundo a qual:

“O princípio da democracia econômica e social aponta para a proibição de retrocesso social. A idéia aqui expressa também tem sido designada como proibição de «contra-revolução social» ou da «evolução reaccionária». Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e económicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. A «proibição de retrocesso social» nada pode fazer contra as recessões e crises económicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. O reconhecimento desta protecção de «direitos prestacionais de propriedade», subjectivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjectivamente alicerçadas. A violação do núcleo essencial efectivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada «justiça social». [...] A liberdade de conformação do legislador nas leis sociais nunca pode afirmar-se sem reservas, pois está sempre sujeita ao princípio da proibição de discriminações sociais e políticas antisociais. As eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais. O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas («lei da segurança social», «lei do subsídio de desemprego», «lei do serviço de saúde») deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa «anulação», «revogação» ou «aniquilação» pura e simples desse núcleo essencial. [...]. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado16”.

De acordo com o próprio J. J. G. Canotilho as normas constitucionais que perfilham direitos sociais de caráter positivo sugerem uma proibição de retrocesso, já que “uma vez dada satisfação ao direito, este transforma-se, nessa medida, em direito negativo, ou direito de defesa, isto é, num direito a que o Estado se abstenha de atentar contra ele” 17.

De modo que, os direitos sociais não podem ser simplesmente restringidos ou abolidos por medidas estatais retrocessivas, a não ser que estas venham escoltadas de uma cautela compensatória que sustente nível similar de proteção social. No entanto, a contrapartida exigida deve ser específica e real, não se esgotando nas meras promessas de criação de mais empregos, ou programas de governo.

  1. As Microrreformas de 2014 e o Retrocesso Social;

Como se pode notar, as Medidas Provisórias que foram editadas em 30.12.2014, e propuseram uma microrreforma do regime previdenciário, provocaram sensíveis alterações para a concessão de benefícios, podendo assim ser sintetizado o quadro de mudanças:

I – A Medida Provisória 664/2015, convertida na Lei 13.135, de 17 de junho de 2015, constituíram uma importante decisão alocativa, isto é, refere-se aos problemas de escolha pública com contratos mal desenhados, desperdício do recurso público, formação de ativo abaixo do custo de oportunidade que, no limite, vem buscar no nosso bolso com impostos recursos para financiar irracionalidades econômicas por falta de planejamento público; por fim originou alterações expressivas, que já estavam enraizadas há muito tempo no sistema previdenciário brasileiro:

a) exigência de carência para a concessão do auxílio-reclusão;

b) exigência de carência para a concessão da pensão por morte, à exceção daquela decorrente de acidente de trabalho, doença profissional ou doença do trabalho;

c) exclui o Ministério do Trabalho do papel de editar listas de doenças e afecções que autorizem a concessão de benefícios como auxílio-acidente ou aposentadoria por invalidez (inciso II, art. 26) extingue a obrigação de revisão e atualização dessa lista de doenças a cada 3 (três) anos;

d) torna explícito o perecimento do direito do beneficiário de perceber pensão por morte quando der causa ao óbito do instituidor do benefício, desde que tenha sido condenado por tal crime;

e) para a concessão da pensão por morte ao cônjuge ou companheiro, exige-se tempo mínimo de 2 anos de convivência familiar, apurado antes da ocorrência do óbito do segurado, ressalvadas exceções;

f) reduz o valor básico da pensão por morte e adota-se calendário progressivo de extinção do benefício;

g) torna excepcional a pensão vitalícia;

h) criou a regra alternativa denominada de 85/95, em alternativa ao Fator Previdenciário, que quando da conversão foi matéria da MP 676/2015, para que essa regra fosse transitória de 85/95 para 90/100.

No mesmo momento foi editada a MP 665/2014, que foi convertida na Lei 13.134 de 16 de junho de 2015, que reduziu o acesso ao seguro-desemprego, elevando seu tempo de carência.

É importante lembrar que essa microrreforma não protegeu os direitos sociais, tampouco resguardou seu núcleo essencial, e nesse aspecto não estamos falando em proibição total de alterar direito ou garantia, pois é nítido o caso de vedação ao retrocesso social e restrições aos de direitos fundamentais já conquistados.

Ora, as alterações ocorridas na Lei de Benefícios, é um evolução reacionária, pois dissemina conceitos de sonegação de direitos e garantias sociais claramente definidos na Constituição, que não podem ser mitigados por meio de medidas provisórias ou pelo legislador infraconstitucional, sob pena de acatar a extinção de direitos decorrentes de obrigações contributivas, onde é certo que as contribuições previdenciárias devem ser revertidas em benefícios previdenciários.

Conclusão.

Para arrematarmos nossas idéias, calha bem aqui o dito de que a Justiça, que é cega, para ser justiça social, deve tirar as vendas dos olhos para ver a realidade social e afastar as desigualdades que nela vê.

Após essa contextualização, não sobra outro entendimento que devemos dar tratamento equânime dos destinatários da norma legal, tamanha importância que o sistema jurídico e das normas constitucionais analisadas como um todo.

Incumbe registrar que um princípio, mesmo que implícito na norma constitucional tem mais valia que uma regra, e nesse feitio o interpretamos como um conjunto de proposições que alicerçam ou embasam um sistema e lhes garantem validade.

Não se pode acolher a cerceamento dos direitos fundamentais, quando encestam o cerne dignificante da pessoa humana como núcleo essencial dos direitos sociais, violando o mínimo existencial, pois, encontrará óbice na vedação do retrocesso e nesta conjuntura não se pode falar em relativização de princípios.

Também não podemos, clamar princípios como o da reserva do princípio, para fantasiar um déficit, que justifique a “relevância” e “urgência”, para implementar microrreformas, sem a devida observação e preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, das conquistas existentes

Por fim, compreendo que os direitos fundamentais sociais, não podem padecer pela evolução reacionária, as alterações devem ser para majorá-los, ampliá-los, tanto pela concretização normativa como pelos novos posicionamentos jurisprudenciais, essa é a estabilidade a qual nos referimos, e desejamos. Não pretendo tornar a Constituição e as normas infraconstitucionais imutáveis, mas dar segurança jurídica e assegurar que se um direito for alterado, que passe por um longo processo de analise para que venha beneficiar os segurados da previdência social, que pagam caro através de contribuições obrigatórias e outras fontes de custeio, para não ter estabilidade nas conquistas dispostas na Carta Política.

Sobre a autora
Tatiana Conceição Fiore de Almeida

Advogada (OAB/SP 271162), Doutorando Em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires (UBA), Coordenadora do Núcleo de Direito Previdenciário da ESA.OAB/SP; Relatora da 4ª Turma de Benefícios da CAASP; Membro Efetivo das Comissões de Direito do Trabalho, Direito Previdenciário, Perícias Médicas; Membro Convidada da Comissão de Direito Desportivo da OAB/DF; Articulista/Investigadora da equipe internacional Latin-Iuris (Instituto Latinoamericano deInvestigación Y Capacitación Jurídica); Articulista e Coordenadora de Obras Jurídicas; Coautora em diversas Obras Coletivas; Professora; Membro da Comunidad para la investigación y el estúdio laboral y ocupacional-CIELO; Coordenadora do Livro Previdenciário um olhar Crítico sobre Constitucionalidade e as Reformas (2016); Um Olhar Crise além dos Direitos Sociais (2019); e Previdenciário: Novas Tecnologias e Interações entre o Direito, a Saúde e a Sociedade; Participou como membro convidado da CPI da Previdência (ano 2017).︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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