Em 2023, tive a oportunidade de realizar um intercâmbio pela Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza, por meio do Programa Professores sem Fronteiras, na Universitè du Grenoble, na França. No roteiro, estava uma visita guiada pela universidade, quando conhecemos um pouco sobre as obras de arte no campus.
Os trabalhos artísticos foram selecionados, com base em uma política cultural conhecida como Le 1% artistique dans les constructions publiques, em português, o 1% artístico nas construções públicas, que vem sendo aplicada desde 1951. Segundo o site do Ministério da Cultura da França é uma ação que já deu origem a mais de 12 mil projetos artísticos, propostos por mais de quatro mil artistas. Entre os prédios públicos contemplados, os edifícios escolares estão na lista. Atualmente, o 1% artístico está regulamentado pelo Decreto nº 2000-677, de 29 de abril de 2022.
A legislação francesa foi inspiração para brasileiros, entre eles, os pernambucanos que em Recife, na década de 1950, por meio de um movimento de intelectuais e artistas, buscaram a elaboração de uma estrutura normativa que obrigasse a colocação de suas produções artísticas em edificações públicas da cidade. Apenas em 1961, por meio do Código de Urbanismo e Obras da cidade, as reivindicações foram atendidas. No entanto, a Ditadura Militar adiou a sua efetivação. A promulgação da Constituição de 1988 inspirou o constituinte pernambucano a tornar obrigatória a presença de obras de arte em prédios públicos, em todos os municípios com mais de 20 mil habitantes, mas o cumprimento do 1% foi burlado.
Em Fortaleza, a Lei nº 7.503, de 7 de janeiro de 1994, foi elaborada na esteira das aspirações francesas e pernambucanas, mas a aplicação do 1% artístico sofreu obstáculos que impediram a sua efetivação. O debate jurídico-político em torno do 1% artístico em Fortaleza não foi menos acalorado, o cenário foi cercado por controvérsias e descumprimentos.
Uma política cultural dessa natureza, que prevê obras de arte em edificações públicas, encontra guarida constitucional. O Art. 216, § 3º, da Constituição Federal diz que a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. Eis o fundamento constitucional que legitima o 1% artístico como uma forma de fomento à produção e ao conhecimento de bens e valores culturais. É possível afirmar ainda que atende ao princípio da universalidade previsto no Art. 215 do texto constitucional, pois estão aí o fomento ao potencial criativo do ser humano assim como a fruição dos bens culturais produzidos, garantindo a todas as pessoas o pleno exercício dos direitos culturais.
Adicione-se ainda a pluralidade cultural, tendo em vista que o Brasil é um país em que pulsa a cultura das populações minorizadas e marginalizadas. Não há dúvidas de que as obras precisam dialogar com essa realidade, a exemplo de Descartes Gadelha, artista plástico cearense, que tem a vida da periferia como inspiração. Outro exemplo é o grafite, praticado entre os jovens, uma expressão de arte urbana, que tem Banksy, como um nome de destaque internacional, e o brasileiro Kobra, com registro no Guinness Word Records.
Não é preciso aguardar a construção de novas escolas para a colocação de obras de arte nesse espaço. Os edifícios escolares sempre passam por modificações e obras para atender à comunidade. A escolha das obras que vão dialogar com esse ambiente, no valor de 1% que será gasto para a construção, reforma ou manutenção, poderia ser realizada por submissão de projeto e escolha popular. As redes sociais podem ser um meio para isso, envolvendo a comunidade escolar, efetivando ainda o princípio da participação popular, que também se aproxima de uma gestão democrática escolar.
O 1% artístico, em prédios públicos, entre eles, as escolas públicas, perpassa por todos os níveis de produção artística, ou seja, formação, criação, circulação e fruição. A arte, como uma expressão livre, é um direito fundamental, portanto, humano, gravado no Art. 5º, IX, da Constituição Federal, que amplia o processo formativo. A Lei Orgânica de Fortaleza, no seu Art. 196, § 1º, diz que poderão ser colocadas obras de arte, de artistas plásticos cearenses, nos prédios e praças construídas pelo poder público, com valor proporcional ao gasto na construção. Certamente, as escolas públicas não ficam de fora dessa ação que colabora com a paz, a dignidade e o desenvolvimento humano.
* José Olímpio Ferreira Neto - Capoeirista. Advogado. Professor. Mestre em Ensino e Formação Docente. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza (GEPDC/UNIFOR) Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Vice-presidente da Comissão de Direitos Culturais da OAB-CE E-mail: jolimpiofneto@gmail.com
Referências consultadas:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 21 jan. 2024.
COSTA, R. V.; CUNHA FILHO, F. H. Qual o lugar da arte? – análise sociojurídica da lei municipal de Fortaleza sobre colocação de obras de arte em espaços públicos. Políticas Culturais em Revista, v. 3, n. 2, 2011. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/pculturais/article/view/5011. Acesso em: 21 jan. 2024.
CUNHA FILHO, F. H. Teoria dos Direitos Culturais: Fundamentos e finalidades. Edições Sesc São Paulo. 2018.
FORTALEZA. Lei Orgânica nº 1, de 15 de dezembro de 2006. Disponível em: https://sapl.fortaleza.ce.leg.br/ta/44/text. Acesso em: 21 jan. 2024.
FORTALEZA. Lei n. 7.503, de 07 de janeiro de 1994. Dispõe sobre a colocação de obras de arte de artistas plásticos cearenses nas praças, nas edificações públicas e de uso público de Fortaleza. Disponível em: https://sapl.fortaleza.ce.leg.br/ta/44/text. Acesso em: 21 jan. 2024.
MINISTÉRE DE LA CULTURE. Lei 1% artistique. Disponível em: https://www.culture.gouv.fr/Thematiques/Arts-plastiques/Commande-artistique/Le-1-artistique. Acesso em: 21 jan. 2024.