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A faculdade de julgar – phrónesis aristotélica - em Klaus Günther: subsídios para a reflexão sobre a formação de magistrados.

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Agenda 19/02/2024 às 17:09

Resumo

Adotando o método indutivo, procedeu-se à análise da crítica que Klaus Günther faz da teoria de Aristóteles sobre a faculdade de julgar – phrónesis –, com o objetivo de realçar aspectos a considerar pelos magistrados e por quem se dedica à estruturação de programas de formação de magistrados. O estudo evidenciou que o jusfilósofo alemão (i) distingue fundamentação e aplicação de norma, esta guiada pelo princípio da adequação; (ii) considera a aplicação contextualmente vinculada da norma condição de imparcialidade e (iii) advoga a construção de uma “lógica de argumentação da adequação” que propicie aos magistrados os meios racionais necessários ao esforço de adequação. As considerações de Günther sobre a faculdade de julgar, a consideração da situação concreta, os fatos relevantes situacionais para o julgamento, a reflexão (no sentido de ação sobre, propriedade reflexiva da relação de equivalência lógica, por exemplo) da situação sobre a norma geral, a moral e o contexto, a perspectiva das éticas cognoscitivas e a ética do agente são úteis para os magistrados e para os que têm a incumbência de estruturar seus programas de formação.

Palavras-chave: Faculdade de julgar. Formação de magistrados. Aplicação normativa contextualmente vinculada.

Sumário

Resumo

Introdução.

1. Phrónesis: breve exposição e macro-interpretação de Klaus Günther.

2. Julgar exige a adequação do universal ao específico

3. O juiz e a adequabilidade: relevância do discurso de aplicação.

4. Visão de contexto: do positivismo ao pós-positivismo

5. Kant e Höffe e a adequação.

6. Situacionalidade, finalidade e ação ética. Dupla abrangência.

7. Phrónesis como resposta ao racionalismo essencialista

8. Tentativa de síntese

Considerações finais

Referências bibliográficas

Introdução.

Em Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação, Klaus Günther expõe sua tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Frankfurt2. O intento deste trabalho é a análise da abordagem do autor sobre a teoria aristotélica concernente à faculdade de julgar – phrónesis3 como exemplo de aplicação normativa contextualmente vinculada4. A análise crítica do pensamento do estagirita, feita por um dos mais eminentes jusfilósofos da atualidade, traz importantes subsídios para a reflexão de magistrados e de quem se debruça sobre o problema da formação de magistrados para um eficaz exercício da jurisdição na atualidade.

Leva-se em conta, nesta exposição, a esclarecedora introdução à edição brasileira5, de Luiz Moreira, o prefácio6 do próprio Klaus Günther e o excurso que encerra a parte II, cujo objeto é a phrónesis. Os muitos aspectos suscitados entrelaçam-se para compor um cenário fecundo de ponderações sobre o magistrado e sua formação.

No que tange à phrónesis, Klaus Günther demonstra, inicialmente, seu entendimento da teoria aristotélica, exposta em Ética a Nicômacos e, em seguida, critica e realça características que são úteis à sua tese acerca da distinção entre moral (justificação) e direito (aplicação) de normas7. Esse exercício crítico, no seu todo, contém inestimáveis elementos de lucubração. Klaus Günther não defende ou propõe, por óbvio, a aplicação do pensamento aristotélico na atualidade, mas extrai, do esforço teórico de Aristóteles, lições que podem ajudar na ingente tarefa de preparar pessoas para o exercício da magistratura no complexo cenário do século XXI. A valorização da razão prática, o esboço a priori de princípios de ação e a aplicação contextualmente vinculada de tais princípios são traços aristotélicos que marcam o pensamento güntheriano.

Klaus Günther chama a atenção para o seguinte nas estruturas silogísticas: de premissa legal válida em tese e da verdade dos fatos não decorre necessariamente a conclusão. Muito sucintamente, cabe invocar o exemplo kantiano clássico, conforme faz Klaus Günther8, para esclarecer essa afirmação. Suponha-se um indivíduo A que se orienta pelo princípio de que “não se deve mentir”. Um inocente, fugindo dos seus cruéis perseguidores, passa por A e esconde-se num lugar conhecido de A. Sendo questionado pelos perseguidores sobre o paradeiro do inocente, o que A deve fazer? Entregar o inocente ou mentir e iludir os perseguidores? Considerando-se (i) que o princípio “não se deve mentir” merece, em tese, o assentimento de todos e, portanto, é válido e (ii) que os fatos estejam devidamente esclarecidos e são verdadeiros – os perseguidores são cruéis e o homem é inocente e não merece ser pego, surge o dilema: observar o princípio de não mentir e entregar o inocente ou mentir e iludir os perseguidores?

O exemplo realça a questão da aplicação da norma e demonstra a necessidade de cercar essa operação de mais atenção e racionalidade. Tomando phrónesis como exemplo de aplicação de norma contextualmente vinculada, Günther entende válido revisitar o estagirita na busca de elementos para tratar da atuação dos que se incumbem da aplicação do ordenamento jurídico. “Ao deixarmos ao acaso o ato de escolha das características relevantes em uma dada situação, tanto a ação como a reação correm o risco de serem avaliadas inadequadamente.”9

Espera-se que o leitor, ao final, esteja (i) informado sobre os conceitos de faculdade de julgar (phrónesis), dupla abrangência, discursos de justificação e de aplicação, situacionalidade, aplicação contextualmente vinculada, validade, faticidade, reflexividade dos fatos sobre a norma prima facie e adequação e (ii) tenha refletido sobre o perfil adequado do magistrado para os tempos do pós-positivismo (ou neoconstitucionalismo).

1. Phrónesis: breve exposição e macro-interpretação de Klaus Günther.

O exercício da função pode dar-se com diferentes “excelências” e é melhor aquela que realiza a essência da melhor forma10.

Veja-se, para iniciar, uma apertada síntese de caracterização da phrónesis pelos traços escolhidos por Klaus Günther.

Phrónesis é “termo grego que pode ser traduzido por ‘senso prático’, ‘senso comum’, ou até mesmo, prudência. Na Ética a Nicômacos [...] Aristóteles define phrónesis como sabedoria prática, [...] aquilo que faz com que o homem seja capaz de deliberar corretamente sobre o que é bom ou mau para si.”11 Mário da Gama Kury12 traduz essa palavra por “discernimento”, em vez de prudência. Aristóteles ocupou-se desse “discernimento” para bem aplicar o saber na direção do bem. Para ele, essa faculdade não pode ser ensinada, mas precisa ser desenvolvida como hábito, para bem desempenhar-se nas situações práticas diversas.

Segundo Klaus Günther13, a visão de Aristóteles opunha-se à tese socrático-platônica de que o bem seria um saber geral e possível de ser ensinado e que “[...] possibilitaria, em princípio, uma ação adequada em qualquer circunstância.” Para o estagirita, o bem é “[...] um modo adequado de agir sob condições variáveis e imprevisíveis”. Como modo adequado de agir, o bem não pode ser antecipadamente fixado, de maneira abstrata. Ele precisa ser evidenciado em cada caso isolado, e dependerá das circunstâncias especiais que se façam presentes. Pela prática, o agente conseguirá, aos poucos, aprender e realizar sua concepção de uma vida boa em diversas situações. Assim ele desenvolverá a habilidade para identificar o modo adequado de agir em cada caso. A phrónesis - essa faculdade ou habilidade ou discernimento - o induzirá a selecionar e considerar aqueles sinais característicos situacionais que forem relevantes para orientar um comportamento adequado no caso concreto.

O filósofo grego expõe, no princípio universal destacado ao início da Ética a Nicômacos, que “cada conhecimento prático e cada investigação científica, - bem como qualquer ação e opção, anseia por um bem14, assumido genericamente. É dali que deriva a determinação correta do que é `bom', assim como `a meta a qual todos anseiam'”15.

Por outro lado, “[...] para tudo que tem uma função ou atividade, consideramos que o bem e a perfeição residem na função. [...] a função do homem é uma atividade da alma por via da razão e conforme a ela [...] “16. O exercício da função pode dar-se com diferentes “excelências”17. Aristóteles combina, assim, uma ontologia teleológica – um ser determinado para um fim – com uma ética da perfeição – a concretização do fim com a maior excelência possível – para determinar um “modo de vida”.

Para Günther, Aristóteles submete cada meta privada, individual, ao telos da vida boa, pois “os objetivos isolados podem, muito bem, ser heterogêneos, contanto que a opção por eles contribua para que a vida boa seja concretizada[...] “18.

Aristóteles divide as virtudes (ou habilidades) em intelectuais e morais. As intelectuais podem ser ensinadas. As morais (ou éticas) devem ser tornadas um hábito e, portanto, dependem de tempo: “[...] quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito [...] Nenhuma das várias formas de excelência moral se constitui em nós por natureza... As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as [...]”19. Quem aprender a virtude e a moralidade, no sentido aristotélico, aprende a aplicar os princípios de forma diferenciada segundo situações e determinações: se, onde, como, quando, diante de que etc20.

Em termos muito amplos, pode-se dizer que Klaus Günther21 interpreta Aristóteles no sentido de que as circunstâncias especiais de cada situação determinam os “modos” em que as atividades da alma são executadas, o que significa dizer “atividades contextualmente vinculadas”. Não há princípios abstratos aos quais se devam subordinar todas as ações em qualquer situação. O princípio não vincula a ação. Ao contrário, a situação determina o modo de concretização do princípio, numa espécie de reflexividade22. Os desdobramentos dessa visão güntheriana são inúmeros, como se verá a seguir.

2. Julgar exige a adequação do universal ao específico

Segundo Luiz Moreira23, na proposta güntheriana pode-se e deve-se distinguir entre fundamentação e aplicação de normas. Com a primeira estabelece-se a norma universal. Com a segunda, molda-se aquela norma para as circunstâncias do caso específico. É preciso partir das normas morais porque a elas cabe justificar as ordenações de conduta, ou seja, gerar normatividade. A prescritividade, característica do jurídico, deve ser objeto de um passo seguinte e diferenciado. A justificação, mais abstrata, orienta a moralidade, e a aplicação, sensível ao concreto, deve nortear o agir jurídico. Assim, a moral justifica e o jurídico concretiza, aproximando ou fundindo, norma justificada e fato (validade e faticidade)24. . concretiza, aproximando norma justificada e fato (faticidade e validade). ções especiais. dos p

Com tal distinção, Klaus Günther quer oferecer um critério racional para o desdobramento da universalidade das regras morais em situações especiais, advogando a construção do Direito com observância dos ditames lógico-formais de universalidade. Para ele, “[...] universalidade é compatível com especificidade [...].” 25 Por isso, segundo Luiz Moreira, defende a tese de que não é possível afastar-se da razão prática26, opondo-se, neste ponto, a Habermas. Günther “[...] deduz a racionalidade das normas jurídicas diretamente das normais morais, conforme a estrutura prescritiva da razão prática.”27 Ou seja, a priori. Habermas, ao contrário, advoga a prescritividade a posteriori pela racionalidade comunicativa28. Como, normativamente, o Direito depende da moral, isso atrai a “prescritividade da razão prática” que, de Aristóteles a Kant, traça orientações para as condutas, segundo premissas previamente estabelecidas29.

É preciso lembrar, aqui, num rápido parênteses, que ao contrário da proposta güntheriana, o positivismo distinguiu razão teórica e razão prática e desvalorizou a última (Justiça é aplicar a norma!30 Validade puramente formal e não de conteúdo!31 De fatos não se deduzem normas!)32. O racionalismo crítico levou adiante o pensamento positivista e negou a possibilidade de buscar “fundamentações últimas” nas ciências normativas (impossível fugir à falsificação das sentenças: princípio da verdade, da justiça!), aceitando o trilema de Münchausen como problema das teses formalistas clássicas33. Gilles-Gaston Granger34, sobre o mesmo problema, recomenda aos que desejam evitar toda possibilidade circular nos esforços de pensamento que renunciem a pensar. Na ciência, “[...] a necessidade irreprimível de voltar a algum ponto de partida firmemente estabelecido ou leva o pensamento a uma regressão rigorosamente indefinida, ou leva a justificar pelas consequências aquilo que se acreditava incondicionado[...] .” O problema único “[...] consistiria não em evitar o círculo a qualquer preço, mas em definir, em cada campo, um certo modo de rompê-lo; [...] segundo a expressão de Aristóteles, dizer como podemos e devemos parar.”

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Segundo Luiz Moreira35, Günther inova na estratégia para superar tal problema, ao propor a separação de justificação e aplicação. A justificação, nascida do princípio moral, vai estabelecer um sentido recíproco-universal de imparcialidade, que é o fundamento da norma. Já a aplicação dessa se orienta pela adequabilidade. Só na concreção se apura a efetiva adequação (fundamento da aplicação). “A adequabilidade de uma norma deverá ser aferida mediante o exame de todas as características da situação, bem como a consideração de todas as normas que eventualmente puderem ser aplicadas.”36

Para dar conta dessa tarefa, Klaus Günther37 atrai a noção de phrónesis. Ele sabe que tentativas anteriores, feitas pela mesma via, frustraram-se porque não levaram suficientemente a sério a necessidade da distinção entre fundamentação e aplicação. Essa distinção, aliás, em que está centrada a tese do autor, abre um imenso espaço de atuação para o magistrado na concreção dos ordenamentos jurídicos. Julgar envolve, necessariamente, uma operação discursiva de adequação da norma posta prima facie, universalmente justificada, frente às características relevantes de uma dada situação.

3. O juiz e a adequabilidade: relevância do discurso de aplicação.

Para Günther38, uma ordem social explica-se pelas teorias da Moral (de Aristóteles a Kant), do Direito e da Sociedade. Da moral, as teorias cognoscitivas, únicas às quais dedica atenção, afirmam que “[...] critérios e normas morais reivindicam uma validade, cuja base repousa em razões que podem ser reconhecidas por qualquer pessoa implicada”, uma forma geral do princípio de universalização U. Isso as distingue de todas as demais. Partindo-se dessa perspectiva interna, é preciso ampliá-la para contemplar as dimensões de validade e de aplicação. Como uma norma não consegue regular todos os casos da sua aplicação, deve-se buscar “razões da ação” também na aplicação. Em uma situação que implica ação (julgamento), essas razões têm a ver com a opção por características relevantes da situação.

O discurso argumentativo de aplicação incumbe-se, portanto, de dar à norma universal os contornos necessários para que ela alcance, de forma coerente e sensível, o caso concreto a decidir. Um julgador pode estar “[...] em condições de avaliar os fatos e ponderar as normas relevantes corretamente, mas, ainda assim, agir de modo diferente [...] ” e isso, segundo Günther39, não interessa por se tratar de fraude. Acrescenta que “esta acusação se aplica a quem simula ter atuado de forma moral, quando, na verdade, seguiu os seus próprios interesses, enganando a outros.” Mas pode também haver falta de cuidado ao considerar fatos relevantes, ausência de sensibilidade às circunstâncias especiais e percepção insuficiente quanto à forma de agir em vista da situação especial. A ausência dessas deficiências pode ser resumida sob o conceito de “faculdade de julgar”. Continua o autor dizendo que, desde Aristóteles, tem-se que “ [...] quem souber avaliar corretamente a situação, também agirá de forma moralmente correta – e vice-versa”. Em termos jurídico-antropológicos, como afirma Norbert Rouland40, é preciso conjugar os homens com as paisagens entrevistas. Assim, o que é correto dependerá da situação41.

Como há uma indefinição estrutural de situações de aplicação, “ [...] só resta a alternativa de empreender, mais uma vez, a tentativa de racionalizar o problema da aplicação a partir da perspectiva de pessoas que agem de forma moral.”42 O jusfilósofo alemão demonstra que a solução racional da questão da aplicação é possível, mediante dois passos: a) mostrar que fundamentação e aplicação podem ser distinguidas; isso é possível pela via da ética do discurso, embora essa ética tenha sido muito atacada por considerar de modo insuficiente a “respectiva situação especial” e b) explicitar critérios racionais para a aplicação de normas. Por isso, diz, uma boa ética cognoscitivista deve, além de cuidar de fundamentar a norma geral, também se pronunciar sobre a aplicação de tais normas em situações concretas, definindo critérios racionais para a aplicação de normas43.

Afinal, como bem destacam Argemiro Cardoso Moreira Martins e Luiz Henrique Urquhart44, as reflexões pós-positivistas em torno do Direito e à luz dos princípios, normativamente tomados, impactaram profundamente a função jurisdicional e puseram, notadamente às cortes constitucionais dos ordenamentos de controle concentrado, o desafio de justificarem racionalmente, em novas bases, seu processo decisório.

4. Visão de contexto: do positivismo ao pós-positivismo

[...] Atuamos de forma “imoral” porque deixamos de perceber determinados aspectos da situação, enganamo-nos na avaliação ou desvalorizamos o peso das proibições ou de determinados mandamentos [...] 45.

Por que as reflexões em torno da phrónesis ganham atualidade para o julgador? Porque, segundo preconizam os neoconstitucionalistas, na nova realidade dos estados constitucionais, há um grande desafio posto às cortes: a aproximação harmônica e congruente de Direito, Moral e Política. Isso exige “[...] o desenvolvimento de padrões de racionalidade baseados mais na razoabilidade prudencial do que no cientificismo formal.”46 E, de fato, no procedimento das cortes, os mecanismos subsuntivo-formais têm cedido espaço a juízos fundados na consideração prudente das circunstâncias da situação, sob luz principiológica cada vez mais intensa.

Ora, a noção aristotélica de phrónesis é um exemplo clássico de aplicação de máximas/regras, considerando a situação, o contexto, daí “contextualmente vinculada”. Aristóteles entrega à faculdade de julgar (phrónesis) a tarefa de terçar a máxima ou regra frente às variantes estruturais de situação. Mas, é bom frisar, pressupõe a ação moral na base dessa entrega. Entrelaça, portanto, aspectos de dois mundos que a ciência jurídica, até meados do século XX, ensinou a separar.

Günther, neste ponto, entende que não se pode passar das máximas/regras diretamente à ação situacionalmente condicionada, deixando simplesmente ao alvitre do julgador e de seu discernimento o esforço racional de acomodação de premissas e fatos. Por isso, se a norma deve abrir-se à sensibilização do contexto, de outro se torna imperativo que padrões de racionalidade, moralmente aceitáveis e principiologicamente fundados, norteiem a ação do julgador.

Vale perguntar, então: pode-se ter como estabelecidos, hoje, evolutivamente, instrumentos para substituir, no momento mesmo da adjudicação do direito, ou da concretização dos conteúdos normativos abertos, a “faculdade de julgar”? Ou se continua na dependência daquela ferramenta “ético-hermenêutica” vislumbrada pelo filósofo grego?

5. Kant e Höffe e a adequação.

Kant considerava o imperativo categórico47 como princípio fundamental do ético. Uma ação só poderia ser considerada moral se atendesse a esse princípio fundamental da razão prática. Para a tradição kantiana, informa Klaus Günther48, as “ [...] éticas universalistas chegaram a uma conclusão lógica a partir da desvalorização e do enfraquecimento moral dos modos de vida, passando a negligenciar a definição precisa da faculdade de julgar[...] “, aspecto que será explorado mais à frente.

Mas Otfried Höffe, estudando o imperativo categórico, realça uma contribuição especial de Kant para a ética. Kant não reduz a ética à “dedução e análise da lei moral”, olhando e aceitando externamente essa lei moral como um “[...] princípio da generalização de quaisquer modos de agir e de quaisquer regras.”49 Para Kant, a ética não é uma pura ciência da moral, uma ciência que tem a lei moral como seu objeto. Ao contrário das demais ciências, que observam e generalizam, a ética vai se preocupar com o conteúdo daquilo que generaliza, zelando pelo que Manuel Atienza, em outro contexto, denomina de correção material50.

Segundo Kant, portanto, as regras que atendessem ao imperativo categórico constituíam uma espécie distinta, as máximas. As máximas seriam regras de “diferenciada graduação de generalização”, ou seja, aplicáveis pelo agente de forma adaptável à situação concreta de ação. O agente determinaria seu modo de agir adaptando a diretiva geral da máxima à situação especial que enfrentasse. As máximas seriam, portanto, “princípios da vontade subjetiva”, normas orientadoras da vontade subjetiva, o que Kant considerava suficiente para se fazer um juízo a respeito da atuação moralmente correta51.

Höffe, diz Klaus Günther, interpreta as máximas de outro modo. Para ele, a máxima é um princípio que exprime “o tipo de ser humano que alguém pretende ser”52. E ao fazer esse movimento interpretativo, Höffe debruçou-se sobre um problema existente na idéia kantiana. Considere-se, assim, que inicialmente, Höffe concorda que se deve contar com um conjunto de máximas para orientar a ação, em diversas e distintas situações. Isso permitirá que se pergunte sobre se uma ação “pretendida” (escolhida) é moralmente justificada por uma dessas máximas. Haverá, portanto, uma ajuda das máximas para a escolha de uma ação. As máximas são postas como balizas de validação, de justificação, das ações concretas.

Mas, aduz Günther53, para Höffe, se se levar a sério a idéia de que existe uma ciência de máximas, a ética então se divide em duas partes: A) a primeira que cuida da “[...] fundamentação54 ou dedução da própria lei moral e o seu ancoramento subjetivo na autonomia da vontade [...]”, ou seja, a definição da máxima e a aceitação de que seu resultado vai depender do bom uso pela vontade autônoma do agente e B) a segunda que se ocupará da “[...] legitimação moral de máximas éticas [...] “, quer dizer, da validação moral das máximas, e da “[...] sua aplicação em situações concretas”. Aparentemente, aqui, a idéia de legitimar corresponde à aceitação, à prova de utilidade, ao uso concreto. Ou seja, mediante a aplicação em situações concretas, demonstrando-se apta para o enfrentamento das situações, haveria a legitimação da máxima.

Feita a divisão, Höffe55 fecha o foco no momento da aplicação das máximas em situações concretas e diz que, neste momento, fica-se na dependência de uma “faculdade (ética) de julgar”, ou seja, daquela qualidade ética-interpretativa do elemento subjetivo do agente. Assim, a legitimação carecerá não só do conteúdo da máxima, mas da capacidade do agente de interpretá-la e concretizá-la com eficácia. Em termos aristotélicos, fica-se na dependência da phrónesis, que é uma faculdade “ético-hermenêutica”. Um atributo do sujeito agente, portanto.

Segundo Klaus Günther56, Kant não se interessou por esse aspecto explorado por Höffe, o qual distingue entre princípio moral – como princípio de fundamentação para máximas – e um “saber de contorno ou de base” de máximas para ação ética em diferentes situações que precisam ser concretizadas diante de uma situação isolada. Da mera fundamentação moral não decorre a validade prática da máxima. A fundamentação pode estar perfeita e instaurada. Mas a máxima, na prática, poderá ser “mal utilizada” pela ausência da phrónesis. Assim, Höffe diferencia fundamentação e aplicação de normas (subjetivas como máximas), num sentido semelhante ao sugerido por Günther.

As conseqüências da distinção de fundamentação e aplicação são entretanto diversas para Höffe e Günther. Tomando-se máxima como “princípio que expressa o tipo de ser humano que se pretende ser”, ela estará vinculada ao contexto ético em que se cresce e transita socialmente e sua interpretação deve ser feita sob essa diretriz. E a operação de aplicação da máxima se vincula exclusivamente ao respectivo contexto. Ela foi desenhada ou posta para orientar a ação naquele específico meio. E portanto não nos leva à consideração “imparcial” dos sinais característicos de uma situação, sem apego a um contexto particular.

Ressalta Rüdiger Bubner que:

Por mais numerosas que sejam as tentativas de interpretação, não ha­verá como fazer mudar de lado o fato de que a máxima apenas expressa o que parece correto a alguém, que na sua situação procura por orien­tação. Ele não estará pensando em uma lei que em si indique um modo de agir, igual para todos os seres racionais no céu e na terra e válido sob quaisquer condições. Diante de um certo pano de fundo de de­terminantes históricas, percebendo claramente as condições sociais ou não, frente a interesses bem nutridos e tendências ou disposições indisfarçadas, ele refletirá sobre qual caminho tomar entre as várias alternativas para a sua ação concreta 57.

Quer dizer que Höffe até percebeu a distinção entre a fundamentação moral da máxima e a sua legitimação pela aplicação, mas, pela significação que deu a máxima - princípio que expressa “o homem que se pretende ser” – para Günther ele perdeu o foco da universalidade e fechou-se num espaço específico, num contexto. E embora considere relevante e indispensável a contextualização, Klaus Günther contrapõe-se a tal visão, pois entende que contextualização e universalidade devem ser compatibilizadas.

6. Situacionalidade, finalidade e ação ética. Dupla abrangência.

Proceder assim em relação à pessoa certa, até o ponto certo, no momento certo, pelo motivo certo e da maneira certa, não é para qualquer um, nem é fácil58.

Três categorias precisam ser esclarecidas ao início deste tópico, ainda que brevemente:

Finalidade é o telos, a vida boa, o objetivo sempre e em cada ação perseguido. Às vezes é denominada, também, de meta mediata, porque é o norte geral, o ponto fulcral, fora do “aqui e agora”, para o qual devem voltar-se, harmoniosamente, todas as ações.

Situacionalidade59 é um indicador da consideração correta das circunstâncias contextuais relevantes para que a ação seja virtuosa. Esse conceito foi construído a partir da leitura da obra.

Meta, também denominada às vezes de meta imediata, é a ação virtuosa, a ação conforme à excelência, e que só se predica como tal se atende à finalidade e à situacionalidade. A meta é a busca da perfeição do ato em si. Traduz uma idéia de adequação situacional e final, ou seja, atinge-se a meta quando a ação praticada atende, na maior medida possível e simultaneamente, à finalidade e à situação.

Postos esses conceitos operacionais, lembre-se que ação (decisão) e situação são distintas mas precisam ser relacionadas. Os “modos de ação conforme à excelência”, determinados pelas condições especiais da situação, fazem parte da “ação virtuosa”, quer dizer, são da essência da ação virtuosa, compreendem-se no seu conceito. Concretizar um objetivo, sob condições contingenciais (que mudam; que poderiam ser diferentes), é agir de modo virtuoso ou segundo a excelência. Conforme Aristóteles, isso significa saber conjugar os elementos circunstanciais para decidir: “proceder assim em relação à pessoa certa, até o ponto certo, no momento certo, pelo motivo certo e da maneira certa, não é para qualquer um, nem é fácil.”60 Como informa Klaus Günther61, essas são determinações “[...] relacio­nais temporais, finais, locais, pessoais e quantitativas [...] pelas quais a ação é caracterizada de modo situacionalmente específico [grifo meu].”

Mas para Aristóteles os dois fatores da atuação são, já se viu, a situaciona­lidade (as circunstâncias de uma ação) e também a finalidade (objetivo). E a ação ética, virtuosa, precisa tomar as duas como referência. Essa estrutura condutora binária (os dois fatores conjugados e contemplados, num fenômeno de dupla abrangência) é característica de toda ação realmente voltada para a realização da vida boa. A ética preconizada por Aristóteles, fundada nessa estrutura ( situacionalidade e finalidade), pressupõe, em cada pessoa agente, uma postura ética básica, diz Günther62. Essa ética proporcionará as condições, mediante um “catálogo de virtudes”, para evidenciar, com mais clareza, aquela capacidade (função ) necessária para avaliar o telos (finalidade) e a situação, de modo a que a ação, segundo a intenção, seja uma ação virtuosa (meta). Essa capacidade (ou função) seria a “[...] única virtude racional, eticamente relevante, do entendimento ético ou da phrónesis”.

A phrónesis tem, portanto, para Aristóteles, uma constituição especial, voltada para agir atenta aos dois fatores básicos da ação virtuosa: a finalidade e a situação. Ela “[...] se refere ao telos da vida boa como finalida­de de todas as metas [...] “, embora não seja ela que fixa essa finalidade. A finalidade (telos) é “[...] predeter­minada pela constituição ontológica do ser humano e pela orientação, que se tornou habitual, no sentido das concretizações setorialmente específicas das virtudes”63.

Meta e finalidade, para Günther64, merecem uma marcação adicional de seus territórios semânticos porque a "predeterminação" da finalidade não significa que, em qualquer situação, haverá clareza da finalidade. Entra então a phrónesis para concretizar o telos da vida boa (finalidade) mediante uma ação situacionalmente adequada (meta). Numa ação particular, naquele momento, a phrónesis garante a ação virtuosa (meta), orientada pela finalidade e também pela situacionalidade. Conjuga, assim, o universal e o específico.

Fica estabelecido, desse modo, que a phrónesis, num caso isolado, não deduz o modo de agir virtuoso (meta) da finalidade, ou seja, de um dos elementos da estrutura da ação. Cada meta particular, informa Günther65, “[...] é determinada também pela seleção dos meios adequados a uma situação“ e a phrónesis induz a tomada de decisão ou a opção apta para que se concretize a vida boa (finalidade). A phrónesis, assim, não tem caráter instrumental, ela não pode ser usada pelo agente para perseguir quaisquer metas. Ela é uma virtude ética, voltada à concretização da finalidade da vida boa e, assim, “[...] só se tornará eficiente se o agente já tiver um ethos, portanto, se nas suas aspirações ele já estiver orientado em direção a fins éticos.” Havendo esse “mínimo ético” no agente, ele estará habilitado a perceber, numa situação, os “[...] sinais característicos rele­vantes e não se deixará arrastar por aquelas aspirações irracionais, que lhe serão prejudiciais e desfavorecerão as suas verdadeiras finalidades.”

Bem no início de sua investigação sobre a phrónesis, Aristóteles já antecipa que “é característica do ser humano, com uma percepção ética, a capacidade de ponderar corretamente o valor ou a utilidade de algo para a sua pessoa, e isso não no sentido especial de, por exemplo, meios e cami­nhos para a sua saúde e força, mas no sentido abrangente: meios e caminhos para uma vida boa e feliz.”66 Em seguida, chama a atenção ao variável, ao contingencial. “A ponderação e a reflexão corretas se referem ao que é variável, contingencial, e àquilo que poderá ser modificado por meio da ação [grifo meu]”67, devendo ser relevadas as coisas inalteráveis.

Por outro lado, o conhecimento do modificável é opinativo. “A reflexão esclarece o telos, imanente à ação boa [...] Quem conseguir agir desse modo, com reflexão correta, o fará a partir de uma postura que, diante do ‘desejo e da falta de vontade’, o conduzirá a preferir o que é adequado”68. Essas reflexões diretivas não se valem de um saber definitivo, mas de opiniões. O conhecimento do modificável (contingencial) só é possível de modo opinativo.

No tocante à phrónesis e à opinião, adverte Aristóteles, o saber do filósofo diz respeito às leis eternas, imutáveis. No caso isolado, somos levados a defrontar-nos com o contingente, o modificável. Aí, diante da situação, a phrónesis faz a síntese da finalidade (telos da vida boa) com os sinais eticamente relevantes, e determina a ação. Portanto, “somente a avaliação correta das perístases69 de uma circunstância, que a ação modaliza70 adequadamente, levará à opinião correta daquilo que aqui e agora é bom para nós”71.

Aristóteles exemplifica fazendo um paralelo entre a prudência72 em dois campos: na economia e na gestão do Estado. Em ambos os casos, é impossível construir um saber nomológico73 geral a respeito. Fica-se sempre na dependência da estimativa correta de condições concre­tas de ação74. Daí a importância das balizas éticas e da especificação de instrumentos racionais para orientação do julgador.

7. Phrónesis como resposta ao racionalismo essencialista

Nesses casos [hipóteses essencialistas] , uma ética universalista assume o aspecto de um rigorismo abstrato, cego para os fatos e obstinado, que é rapidamente posto a serviço de intenções imorais75.

Klaus Günther76, como já mencionado, chama a atenção para a desvalorização que as éticas universalistas, da tradição kantiana, aplicaram à definição precisa da faculdade de julgar. Sem admitir a aplicação contextual da norma ou máxima, elas tendem a declarar certos problemas irrelevantes. Baseiam-se num modo universalista de argumentar e “[...] especialmente nas oportunidades em que, de acordo com a tradição idealista, [esse modo universalista] é combinado com hipóteses essencialistas a respeito da razão”, tal ética “[...] assume o aspecto de um rigorismo abstrato, cego para os fatos e obstinado, que é rapidamente posto a serviço de intenções imorais.” Esta postura leva à aplicação da norma, passível de ser generalizada, sem o necessário exame da situação.

Ora, para Günther77, na fase da phrónesis que Aristóteles caracteriza como “estágio do procurar e do calcular”, são avaliadas várias possibilidades capazes de levar a uma atuação virtuosa, contextualmente adequada. Sem tal exame, incorre-se no erro de aplicar a norma, passível de generalização, com resultado afrontoso à ética e aos fundamentos da própria norma, como as experiências mais dramáticas da pós-modernidade demonstraram78.

Esse esforço inicial, para ser “bom” (não instrumental e ético), deve caracterizar-se por:

a) visar “[...] à consecução de algo valioso”;

b) formalmente, poder assumir a forma de um silogismo prático, no qual se ajustam reflexivamente as premissas maior e menor; ou seja, o fim justificará os meios pois haverá sempre a adaptação “reflexiva” das duas premissas para forçarem uma conclusão; Aristóteles, falando da inteligência, diz que “[...] nos raciocínios práticos ela apreende os fatos fundamentais e variáveis, ou seja, a premissa menor, já que os fatos fundamentais e variáveis são os pontos iniciais a partir dos quais inferimos as finalidades, porquanto chegamos aos universais a partir dos particulares[...] “79;

c) conceder tempo e amplitude: deve ocorrer, portanto, num tempo adequado e contemplar todas as perístases (circunstâncias relevantes da situação);

d) observar a dupla abrangência: deve objetivar a meta final da vida boa e a meta parcial (da ação concreta virtuosa).

Mas essa fase é apenas o início da phrónesis. Essa faculdade é “[...] normativa e conduz para o ato volitivo da decisão e da sua realização[...] “80, tornando imperativo o que se deve ou não fazer. O dado situacional será o objeto primordial do processo reflexivo que vai determinar o que se deve fazer aqui e agora (meta imediata), em sintonia com a meta mediata (telos geral), em clara rejeição das posturas universal-essencialistas.

É preciso abrir-se para os fatos, para todas as perístases da situação (situacionalidade), e afastar-se das posturas universal-essencialistas para alcançar, mediante um esforço efetivo e racional de adequação, a aplicação imparcial e ética da norma geral.

8. Tentativa de síntese

As terceira e quarta partes da obra de Klaus Günther dedicam-se, respectiva e imediatamente, à argumentação de adequação na Moral e no Direito. A norma posta, para condições invariáveis, na condição de disposição prima facie, deverá sofrer a reflexão situacional e, mediante um discurso de adequação, moldar-se para o caso concreto. A responsabilidade do magistrado, nesse esforço, levou Ronald Dworkin a criar a figura do juiz Hércules81, capaz de considerar imparcialmente todos os sinais característicos relevantes de uma situação, numa dimensão de tempo adequada, à luz dos grandes princípios do ordenamento jurídico, de modo coerente e indutor da integridade do sistema. Não é sem propósito a menção a Dworkin neste ponto. Klaus Günther finaliza sua tese, nas páginas 404 a 414 da obra em exame, exatamente com a exposição de integrity, o conceito inovador introduzido por Dworkin para orientação do esforço decisório.

Na pauta de formação de magistrados para aplicação do Direito em tempos de Nova Hermenêutica, dos hard cases, de elevada indefinição estrutural de situações de aplicação, de busca de caminhos para alcançar a segurança de expectativas apesar da exigüidade de tempo e do conhecimento incompleto, muitos aspectos suscitados acima devem ser considerados. Numa tentativa de sumarizar tudo o que foi exposto, destacam-se alguns:

a) os juízes precisam estar preparados para a liberdade inerente aos juízos de adequação (o que é correto dependerá da situação!)82 e para a reconexão das teorias da Moral, do Direito e da Sociedade, num movimento oposto ao que orientou a formação de muitos deles sob um enfoque positivista estrito; como Klaus Günther mesmo diz, criticando o pensamento de Tugendhat, é necessário derivar a idéia de imparcialidade dos pressupostos inevitáveis de uma argumentação moral83; mas é preciso que se sistematize uma “lógica da argumentação da adequação” que demonstre “[...] com quais meios argumentativos nós vamos, em discursos de aplicação, aproveitar uma descrição ampliada da situação e conseguir resolver as colisões dali oriundas”84;

b) a ação sob a égide do princípio de universalização U é condição de uma jurisdição ética; assim, também, a jurisdição ética exige a busca da consideração adequada de todos os sinais característicos especiais de uma situação, visando a aplicação da norma geral com imparcialidade85; como recomenda Dworkin, todo magistrado “deve considerar provisórios quaisquer princípios ou métodos empíricos gerais que tenha seguido no passado, mostrando-se disposto a abandoná-lo em favor de uma análise mais sofisticada e profunda quando a ocasião assim o exigir”86;

c) é preciso considerar a difusão da consciência dos princípios, tomados como comandos de otimização não absolutos, aplicáveis segundo as possibilidades circunstanciais de dada situação concreta e respeitando a constelação de ingerências principiológicas suscetíveis de simultânea aplicação, tudo conduzido racionalmente sob enfoque interno cognoscitivista e não decisionista87; essa idéia de aplicação situacionalmente dependente tem seu germe na “ação ética” de discernimento aristotélico, a phrónesis;

d) na base do pensamento güntheriano, está a contemplação do contingente nos discursos de aplicação, como condição da imparcialidade. “Já que não é possível reconstruir de modo plenamente racional a aplicação adequada de regras, Aristóteles pressupôs determinadas propriedades características, cuja elaboração dependerá das experiências biográficas de cada um e da instituição da comunicade política. Quem for ‘bom’ [...] saberá, segundo o entendimento ético, qual a atitude adequada a tomar em determinada situação.”88 A imparcialidade, portanto, deve apoiar-se numa competente consideração de todos os sinais característicos da situação;

e) por outro lado, destacando o contingente, o autor realça de Aristóteles a idéia de que o conhecimento do contingente é sempre opinativo. “Mesmo Kant admitia que esta capacidade é uma disposição que, originalmente, pode ser adquirida, exercida de modo melhor ou pior e corrigida por meio de exemplos, mas que não pode ser aplicada metodicamente.” O esgotamento em esforços de formulação de regras de aplicação [...] “conduz a um paradoxo, que também motivou Wittgenstein a caracterizar a observância de regras como ‘prática’ ou ‘hábito’”89. E continua numa citação de Kant: “[...] desse modo se evidencia que, ainda que a razão seja capaz de ser instruída e equipada por regras, a faculdade de julgar, porém, é um talento especial que nem sequer se pretende ensinar, somente exercitar”90. A base aristotélica do pensamento é evidente. Para Günther, ao contrário, é possível e deve-se enfrentar a formulação de uma lógica da argumentação de adequação para “[...] embasar a relevância afirmada de um sinal característico situacional [...] “91 e

g) no “estágio do procurar e do calcular”, quando são avaliadas as várias possibilidades capazes de levar a uma atuação boa, contextualmente adequada, é preciso conceder ao magistrado (1) a noção de que deve visar “[...] à consecução de algo valioso”; (2) formalmente, a noção de que deve e pode aceitar eticamente que o trabalho assuma a forma de um silogismo prático, com a adaptação “reflexiva” das duas premissas para forçarem uma conclusão; (3) tempo e amplitude; tudo deve ocorrer num tempo adequado e contemplar todas as perístases (circunstâncias relevantes da situação); (4) espaço para a persecução da dupla abrangência; deve-se objetivar a meta final da vida boa e a meta parcial (da ação concreta). O dado situacional será o objeto primordial do processo reflexivo que vai determinar o que se deve fazer aqui e agora (meta imediata), em sintonia com a meta mediata (telos geral). Tudo com a utilização de instrumentos lógicos indutores da observância de um caminho racional no esforço de adequação.

Considerações finais

Para Klaus Günther, a aplicação de normas é fase do jurídico que não tem merecido a necessária importância. A explicitação de uma “lógica da argumentação da adequação” pode fornecer instrumentos racionais para o aprimoramento da atuação dos magistrados.

No esforço de prova de sua tese, o jusfilósofo alemão leva a pensar em (a) faculdade de julgar, (b) consideração da situação concreta, (c) fatos relevantes situacionais para o julgamento, (d) reflexão (no sentido de ação sobre, propriedade reflexiva da relação de equivalência lógica, por exemplo) da situação sobre a norma geral, (e) moral e contexto, (f) perspectiva interna e ética do agente etc. O resultado de sua análise e a proposta de distinguir fundamentação e aplicação de normas trazem para o centro do palco a figura do magistrado, a quem defere papel funcional essencial na “’policontextualidade’ do sistema social”92.

Espera-se ter suscitado, ainda que sumaria e pontualmente, mediante a exposição crítica güntheriana das idéias aristotélicas relacionadas à faculdade de julgar – phrónesis, questões de indispensável consideração pelos magistrados e por aqueles que se dedicam à tarefa, árdua e relevante, da formação de magistrados para os tempos do pós-positivismo, da prevalência dos princípios, vistos como comandos de otimização, e da liberdade para repensar a norma a cada aplicação, consideradas a situacionalidade e a finalidade.

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Data da elaboração: Julho-setembro/2008.

Sobre o autor
S. Tavares-Pereira

Mestre em Ciência Jurídica pela Univali/SC e pós-graduado em Direito Processual Civil Contemporâneo. Autor de "Devido processo substantivo (2007)" e de <b>"Machine learning nas decisões. O uso jurídico dos algoritmos aprendizes (2021)"</b>. Esta obra foi publicada em inglês ("Machine learning and judicial decisions. Legal use of learning algorithms." Autor, também, de inúmeros artigos da área de direito eletrônico, filosofia do Direito, direito Constitucional e Direito material e processual do trabalho. Várias participações em obras coletivas. Teoriza o processo eletrônico a partir do marco teórico da Teoria Geral dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Foi programador de computador, analista de sistemas, Juiz do Trabalho da 12ª região. e professor: em tecnologia lecionou lógica de programação, linguagem de programação e banco de dados; na área jurídica, lecionou Direito Constitucional em nível de pós-graduação e Direito Constitucional e Direito Processual do Trabalho em nível de graduação. Foi juiz do trabalho titular de vara (atualmente aposentado).

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