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Da obrigatoriedade da vacinação de estudantes da Rede Pública

Agenda 21/02/2024 às 16:54

Introdução

"Aqui em Minas, todo aluno, independente de ter ou não vacinado, terá acesso às escolas”[1] foi a frase proferida por um governador e que causou polêmica no meio jurídico e político.  

A dúvida que surge é: a referida afirmação está em consonância com o nosso ordenamento jurídico?

A resposta ao questionamento em testilha é o que se pretende analisar no presente artigo por meio de uma metodologia exploratória e explicativa.

 

1.Vacinação forçada x vacinação obrigatória

De antemão, não podemos confundir vacinação forçada com a obrigação de se vacinar sob pena de sofrer alguma consequência. O presente tópico pretende analisar a primeira situação e no tópico seguinte analisaremos a segunda hipótese especificamente em relação aos estudantes.

Pois bem, ao contrário dos que muitos pensam, a pandemia do Novo Coronavírus não foi a primeira epidemia no Brasil, muito pelo contrário, já passamos por muitas outras, como a da varíola, a da febre amarela, a da peste negra, a do zica vírus, a da tuberculose, a da dengue[2] e, mais recentemente, a pandemia da H1N1[3].

Assim, a discussão sobre uma vacinação forçada não é nova e a referida possibilidade efetivamente já aconteceu no Brasil. Em 31 de outubro de 1904, foi aprovada a lei 126/04, que previa o seguinte:

 

  “Art. 1º A vaccinação e revaccinação contra a variola são obrigatorias em toda a Republica.

     Art. 2º Fica o Governo autorizado a regulamental-a sob as seguintes bases:

     a) A vaccinação será praticada até o sexto mez de idade, excepto nos casos provados de molestia, em que poderá ser feita mais tarde;

     b) A revaccinação terá logar sete annos após a vaccinação e será repetida por septennios;

     c) As pessoas que tiverem mais de seis mezes de idade serão vaccinadas, excepto si provarem de modo cabal terem soffrido esta operação com proveito dentro dos ultimos seis annos;

     d) Todos os officiaes e soldados das classes armadas da Republica deverão ser vaccinados e revaccinados, ficando os commandantes responsaveis pelo cumprimento desta;

     e) O Governo lançara mão, afim de que sejam fielmente cumpridas as disposições desta lei, da medida estabelecida na primeira parte da lettra f do § 3º do art. 1º do decreto n. 1151, de 5 de janeiro de 1904;

     f) Todos os serviços que se relacionem com a presente lei serão postos em pratica no Districto Federal e fiscalizados pelo Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, por intermedio da Directoria Geral de Saude Publica.

     Art. 3º Revogam-se as disposições em contrario”.

 

Conforme se percebe, a referida lei trouxe mais do que uma obrigatoriedade de vacinação, mas sim a previsão de que a vacina efetivamente deveria ocorrer, inclusive existindo a possibilidade de intervenção do exército para garantir o cumprimento. Assim, a lei em questão criou no Brasil a possibilidade de alguém ser forçado a se vacinar, o que gerou um descontentamento da população e, em consequência, a conhecida Revolta da Vacina[4].

Passado mais de um século, no contexto da pandemia da CPVID-19, a Lei 13.979/2020 trouxe a seguinte previsão:

“Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: III - determinação de realização compulsória de:

(...)

d) vacinação e outras medidas profiláticas; (Grifos Nossos)”.

 

Desse modo, a lei em questão menciona a possibilidade da vacinação compulsória. Sendo assim, alguém pode ser forçado a se vacinar?

A resposta é não. O Brasil tem a dignidade humana como um princípio fundamental[5], o que impede uma pessoa ser levada à força para tomar uma vacina.

Entretanto, é ao chegar nesse ponto que podemos perceber a diferença entre vacinação forçada e vacinação obrigatória. Na primeira a pessoa seria levada à força para se vacinar, o que não está em consonância com um Estado Democrático de Direito, como é o caso do Brasil[6]; já a segunda hipótese não seria o caso de o Estado Leviatã deitar a pessoa em uma maca e simplesmente aplicar a vacina, podendo efetivamente alguém optar por não se vacinar, porém quem assim o fizer vai ter que sofrer as consequências dos seus atos. 

É exatamente nesse sentido que decidiu o Supremo Tribunal Federal-STF ao julgar Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, conforme pode ser visto no trecho abaixo do acórdão

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“II – A obrigatoriedade da vacinação a que se refere a legislação sanitária brasileira não pode contemplar quaisquer medidas invasivas, aflitivas ou coativas, em decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, afigurando-se flagrantemente inconstitucional toda determinação legal, regulamentar ou administrativa no sentido de implementar a vacinação sem o expresso consentimento informado das pessoas. III – A previsão de vacinação obrigatória, excluída a imposição de vacinação forçada, afigura-se legítima, desde que as medidas às quais se sujeitam os refratários observem os critérios constantes da própria Lei 13.979/2020, especificamente nos incisos I, II, e III do § 2º do art. 3º, a saber, o direito à informação, à assistência familiar, ao tratamento gratuito e, ainda, ao “pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas”, bem como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a não ameaçar a integridade física e moral dos recalcitrantes. (Grifos Nossos)[7]”.

 

Desse modo, o STF adotou o entendimento aqui explanado: ninguém pode ser levado à força para se vacinar, mas quem não cumprir com a sua obrigação de receber a vacina ou de levar seus dependentes para se vacinar pode vir a sofrer as consequências legais por meio da restrição de direitos e do recebimento de sanções, tal como será visto no tópico seguinte em relação aos estudantes.

 

2.Da obrigação da vacinação dos estudantes

Muitas pessoas alegam que possuem o direito de escolher se vacinam ou não as suas filhas e os seus filhos, não podendo, segundo elas, o Estado intervir na referida opção.

Entretanto, de antemão é importante frisar que as mães e os pais não possuem um direito absoluto em tomar todas as decisões inerentes aos seus filhos. Por exemplo, não existe uma opção em educar ou não educar as crianças e os adolescentes; não se pode optar em deixar uma criança sozinha em casa nem mesmo em andar no elevador sozinha; assim como não existe a possibilidade de educar uma criança por meio de palmadas ou qualquer outro tipo de agressão ainda que leve[8].

Em relação especificamente ao recebimento de vacina, o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA prevê:

“Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos.

§ 1 o É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. (grifos nossos)”.

Assim, claro está que o ECA determina ser a vacinação das crianças obrigatória nos casos recomendados pelas autoridades competentes.

Desse modo, a mãe e o pai que não vacinarem seus filhos estão sujeitos às penalidades legais, que podem ser desde a perda do Poder Familiar até a aplicação do artigo 249 do ECA, que prevê: 

“Art. 249. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar: 

Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência”.

Questão mais tormentosa se dá sobre a possibilidade ou não de uma criança ser impedida de estudar porque não tomou a vacina.

Há de se reconhecer que uma criança ser impedida de frequentar as aulas porque não se vacinou gera para ela uma dupla punição: a de não se imunizar e a de não estudar. Por outro lado, existem as outras crianças que se vacinaram e vão acabar sendo mais expostas por causa de uma família que não cumpriu com a sua obrigação legal.

Diante dessa dicotomia, nos parece dever prevalecer a situação que mais se adeque ao interesse coletivo, qual seja: só permitir o ingresso na escola das crianças que estejam efetivamente imunizadas. Ao agir de outra forma um gestor público pode estar prejudicando a saúde pública e o interesse coletivo primário, o que pode vir a gerar sanções na esfera civil, penal, administrativa e ainda por improbidade administrativa[9].

Conclusão

Rudolf Steiner, pai da Antroposofia, afirmava que “Posicionar-se contra a vacinação é fanatismo[10]”.

De fato, dentro de uma realidade na qual as vacinas são aplicadas para salvarem vidas e após todo um estudo feito por especialistas, ser contra a vacinação é algo que só pode decorrer de uma ideologia e/ou de um estilo de vida extremista.

De qualquer forma, cada um deve assumir o ônus das suas escolhas desde que não exponha ninguém. Entretanto, quando nos referimos a crianças e adolescentes é dever do Estado, da família e da sociedade garantir a preservação dessas pessoas ainda incapazes por lei de praticar os atos da vida civil.

Desse modo, ao optarem pela não vacinação das suas crianças, as mães e os pais descumprem uma obrigação prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente e podem vir a sofrer sanções administrativas, como multa e até mesmo perder a guarda da criança.

Além disso, levar uma criança não vacinada para a escola é uma medida passível de gerar litígios entre as escolas e os familiares; entre os familiares dos vacinados e os familiares dos não vacinados e até mesmo entre as próprias crianças, uma vez que as vacinadas podem não aceitar pacificamente o convívio com quem não se vacinou.

Desse modo, o Poder Público deve tomar medidas para efetivamente garantir a vacinação de todas e todos os estudantes da Rede Pública sob pena também de vir a sofrer as sanções cabíveis em todas as esferas jurídicas existentes.

 

REFERÊNCIAS

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ªed, Rio de Janeiro: Forense, 2020

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ªed. São Paulo: Malheiros, 2020.

STEINER, Rudolf. Physiologish-Therapeutisches auf Grundlage der Geisteswissenschaft: zur Therapie und Hygiene. Dornach: Rudolf Steiner Verlag, 1989.

 



[1]Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/05/zema-minas-gerais-alunos-escola-sem-vacina.htm?cmpid=copiaecola

[2]Fonte: https://www.infoescola.com/saude/principais-epidemias-ocorridas-no-brasil/. Acesso em 19/02/2024.  

[3]https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52042879. Acesso em:  19/02/2024.  

 

[4]https://super.abril.com.br/historia/oswaldo-cruz-e-a-variola-a-revolta-da-vacina/. Acesso em 19/02/2024.

[5]CRFB88:  Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...). III - a dignidade da pessoa humana;

[6]SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ªed. São Paulo: Malheiros, 2020.p.114.

[7]Interior teor: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346093809&ext=.pdf. Acesso em 19/02/2024.  

[8]Nesse sentido, a lei 13.010/2014, conhecida como Lei Menino Bernardo, alterou o ECA para expressamente prever: “Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.

[9]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ªed, Rio de Janeiro: Forense, 2020.p.791.

[10]STEINER, Rudolf. Physiologish-Therapeutisches auf Grundlage der Geisteswissenschaft: zur Therapie und Hygiene. Dornach: Rudolf Steiner Verlag, 1989. p.288.

Sobre o autor
Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Capacitado em Gestão Pública pela FAVENI. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

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