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A formação do neoconstitucionalismo e sua prevalência na contemporaneidade

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Agenda 12/01/2008 às 00:00

6. Notas sobre os efeitos do neoconstitucionalismo sob o direito privado.

Fazendo um parêntese no texto, perece-nos relevante, para demonstrar efeitos práticos da recente supremacia dos textos constitucionais anotada acima, apresentar algumas passagens da doutrina de Lênio Streck e Luís Roberto Barroso, em que ressaltam a decadência do paradigma jusprivatitico em detrimento da hermenêutica constitucional. O tema, pela sua relevância, merece ser tratado com mais profundidade, no que fica, para os leitores, a sugestão de pesquisa.

Tem-se, pois, que com a idealização do Estado social, chega ao fim o reinado absoluto do Código Civil e da ideologia liberal nele escancarada para dar lugar atuação positiva do Estado na defesa dignidade da pessoa humana e da democracia material. A Constituição, por ser o documento ideológico da nação toma o papel de dirigente na busca por aqueles ideais tidos como os que devem ser perseguidos, e sendo assim todo o ordenamento jurídico deve girar sob ao redor de sua órbita, cabendo ao intérprete (todo intérprete, na nova hermenêutica, é necessariamente intérprete constitucional) expulsar do mundo jurídico toda e qualquer manifestação que se insurja contra seus preceitos constitucionais. Como bem afirma Lênio Sterck "a plenipotenciariedade da lei – como fonte e pressuposto do sistema – cede lugar aos textos constitucionais que darão guarida às promessas da modernidade contidas no modelo do Estado Democrático (e Social) de Direito [24][25]".

A partir desta premissa, o autor arrola alguns efeitos da impositividade dos mandamentos constitucionais, dentre os quais destacamos: (A) representa uma autorização constitucional para que o legislador e os demais órgãos adotem medidas que visem a alcançar, sob a ótica da justiça constitucional, nas vestes de uma justiça social; (B) perfila-se como elemento de interpretação, obrigando o legislador, a administração e os tribunais, a considerá-lo como elemento vinculado da interpretação das normas a partir do comando do princípio da democracia econômica, social e cultural."

Não diverge o professor da UFRJ, Luís Roberto Barroso (2005). Afirma o insigne constitucionalista que

"qualquer operação de realização do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Lei Maior. Aplica-se a Constituição: a) Diretamente, quando uma pretensão se fundar em uma norma do próprio texto constitucional. Por exemplo: o pedido de reconhecimento de uma imunidade tributária (CF, art. 150, VI);b) Indiretamente, quando uma pretensão se fundar em uma norma infraconstitucional, por duas razões: (i) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a Constituição, porque se não for, não deverá fazê-la incidir.; (ii) ao aplicar a norma, o intérprete deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais."

Nesse sentido, a força cogente das regras e princípios constitucionais passa a ter papel de criação no ordenamento jurídico, lapidando as normas infraconstitucionais conforme seus mais caros postulados. Exemplo claro deste corte ideológico que o neoconstitucionalismo operou no ordenamento jurídico é dado pelo mesmo constitucionalista fluminense ao retratar a drástica mudança do direito infraconstitucional alemão após tomada de posição do Tribunal Federal Constitucional a favor da dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Segundo ele:

"A partir daí, baseando-se no catálogo de direitos fundamentais da Constituição alemã, o Tribunal Constitucional promoveu uma verdadeira "revolução de idéias" [37], especialmente no direito civil. De fato, ao longo dos anos subseqüentes, a Corte invalidou dispositivos do BGB, impôs a interpretação de suas normas de acordo com a Constituição e determinou a elaboração de novas leis" (BARROSO, 2005)

O mesmo caminho trilhou a jurisdição constitucional italiana, o que se pode notar por estes dados, conferidos novamente por Luís Roberto Barroso:

"De 1956 a 2003, a Corte Constitucional proferiu 349 decisões em questões constitucionais envolvendo o Código Civil, das quais 54 declararam a inconstitucionalidade de dispositivos seus, em decisões da seguinte natureza: 8 de invalidação, 12 interpretativas e 34 aditivas. Foram proferidos julgados em temas que incluíram adultério, uso do nome do maridoe direitos sucessórios de filhos ilegítimosem meio a outros".

Operou-se, pois, com a aplicação da hermenêutica constitucional, uma notável mudança de enfoque, retirando a proeminência de princípios de direito liberal privado, como, por exemplo, a autonomia contratual e o caráter absoluto da propriedade, obrigando-os a obedecer a diretrizes constitucionais e o Estado materialmente democrático de direito.


7. Conclusão-síntese

Enfim, para concluir e sistematizar tudo o que foi dito, pelo menos quanto ao aspecto jurídico-hermenêutico, pode-se justificar a tese da importância primacial da Constituição no paradigma hermenêutico pós-moderno (pós-positivista), da seguinte forma.

- Hermeneuticamente, como esta época opera-se melhor pelo consenso, é evidente que as decisões sejam tomadas a partir de enunciados gerais somado a um processo interpretativo conjunto (círculo hermenêutico) e não a partir de cláusulas fechadas que admitem apenas uma hipótese, restringindo o debate as sua razoabilidade. Nesse contexto, nada melhor que a Constituição, receita política e social dirigente (interpretável por todos os agentes – Härbele) como bússola para guiar o restante do ordenamento jurídico;

- Metodologicamente, visto que o determinismo universalista mostrou-se inadequado no seio das ciências sociais, e dado que o direito é um produto da cultura, influenciado pela nuances políticas e sociais, é relevante que o direito seja interpretado a partir destas condicionantes, premiando a razão prática e a obtenção de resultados socialmente mais aceitáveis. À Constituição, como documento de cunho político-programático e social-dirigente, cabe esta função, devendo o intérprete utilizar-se de seus mandamentos – como p.ex., a dimensão normativa do pluralismo (Canotilho, 1998:1257) – e irradiar a ideologia democrática da Constituição ao restante do ordenamento, vinculando-o.

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- Epistemologicamente, pois a lógica-formal que ocupou a filosofia em geral e a do direito em particular, retirando de raciocínios matemáticos suas conclusões foi substituída pela tópica e retórica, que buscam de espectros mais amplos de atuação, melhor funcionando em situações que lhes dêem mais fundamentos para resolver os problemas práticos postos em debate. Os Códigos apresentam soluções particularizadas e pontuais, ficando a dever na solução de casos difíceis e pobres diante de sociedade dinâmicas. A utilização mais freqüente dos princípios constitucionais e sua normatização pode ser vista como uma devida ampliação dos catálogos de topoi utilizáveis na seara jurídica.

- Politicamente, pois a democracia material exigiu que o Estado participasse ativamente da consecução dos ideais sociais de igualdade e justiça, empreendendo seus esforços neste objetivo ainda que o princípio da autonomia da vontade fosse repensado. Certamente é nesse aspecto que mais empiricamente evidencia-se a submissão dos Códigos às Constituições visto que os institutos e princípios de direito privado tiveram que se amoldar a uma nova ordem de prioridades: onde, no estado liberal, o centro do ordenamento jurídico era a propriedade, ou o usufruto do ser humano, no estado social, o ordenamento deve subserviência completa agora ao principio da dignidade da pessoa humana – seu protoprincípio, no dizer do Ministro Carlos Ayres de Britto.

- Socialmente, por fim, em virtude da necessidade de operar-se o sistema jurídico com a maior legitimidade possível, respeitando a pluralidade de idéias. Sendo a Constituição um sistema aberto e repleto de possibilidades, há espaço para aquilo que Habermas chama de democracia discursiva e para a tese de Härbele, defendendo "o pluralismo como teoria e como práxis da Constituição" (apud Bonavides, 471). A Constituição é onde melhor situa-se o debate valorativo, e é o instrumento retórico pelo qual as grandes questões sociais são resolvidas. Tomada a solução destas questões, o importante é que tenha sido oportunizada a participação de todas as vertentes plurais no debate, o que confere a legitimação ao sistema e racionaliza as decisões. O desenvolvimento do ordenamento jurídico ocorre, nesse viés, a partir da atuação crítica dos mais variados atores [intérpretes] sociais, também detentores do leme da Constituição.


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Notas

01 Para uma boa compreensão do tema, conferir: SANTOS, Boavantura de Sousa. Introdução a uma ciência Pós-moderna. São Paulo, Graal, 1989; MORIN, Edgard. Ciência com consciência. Tradução: Maria D. Alexandre, Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

02 Para uma análise resumida da construção destas teorias e suas influências no mundo contemporâneo, conferir CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1986; SANTOS, Boaventura de Sousa, Discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003.

03 Dado que, segundo Descartes, caso algum tivesse uma visão clara e nítida dela, poderia expô-la ao adversário de tal modo que acabaria por forçar-lhe a convicção. (PERELMAN, 1996a).

04 Esta perspectiva esbarra hodiernamente na idéia de que o objeto em si é apreensível, sendo o sujeito o criador o refletor da sua imagem, mormente nas ciências da cultura, como é o caso da jurídica.

05 Para uma análise filosófica do "sonho iluminista" ver GRAY, John. Cachorros de Palha. Record, Rio de Janeiro, 2006; Al-Qaeda e o que significa ser moderno. Rio de Janeiro, Record., 2004. GIANETTI, Eduardo. Felicidade. Companhia das Letras. São Paulo, 2003.

06 Dilthey, Wilhelm. Introducción a las Ciencias del Espítitu. Madrid: Revista de Occidente, 1956.

07 Apud Lopes (2000)

08 O tema é instigante, mas não se pretende discutir aqui profundamente como isto ocorreu. Mas de qualquer forma, é válido – porém parcial – dizer que a noção de racionalidade do homem começa a ruir a partir das lições psiquiátricas de Freud, legando a noção de subconsciente; Darwin, na sua até hoje avassaladora tese da seleção natural; das obras de Marx, introduzindo o conceito de ideologia, como limitadora da autonomia da razão; Nietchze, com seu desconcertante desmascaramento das bases pretensiosamente racionalistas da sociedade européias. Luís Fernando Veríssimo trata do tema com a genialidade peculiar, em artigo entitulado "a quarta virada", publicado na revista Caros Amigos de out/07, e encontrado no site http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=49&Itemid=52>

09 Também expondo o pensamento de Popper, Morin destaca que, segundo aquele autor, o que torna algo "científico" é o fato de poder ser contestado ou, "falseado". O que faz que uma teoria seja científica, se não for a sua "verdade"? Popper trouxe a idéia capital que permite distinguir a teoria científica da doutrina (não científica): uma teoria é científica quando aceita que sua falsidade pode ser demonstrada. Uma doutrina, um dogma encontram neles mesmos a autoverificação incessante. O dogma é inatacável pela experiência. A teoria científica é biodegradável. (2001:23)

10 Faz-se referência ainda ao termo reflexividade quando se quer ressaltar a reentrada do conhecimento produzido pelas ciências sociais após sua colocação na sociedade, que ao mesmo tempo, influencia e é modificada pela ação social, voltando tal objeto em outros caracteres, ao pesquisador. Sobre o tema conferir GIDDENS(1991)

11 A ciência moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante especializado, faz do cidadão comum um ignorante generalizado. Ao contrário, a ciência Pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta, pois, penetrar por outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas (2003:88)

12 Nesse sentido, a história que se resume ao desenvolvimento, ao progresso linear e segundo uma ordem preestabelecida e que nada mais é que o desenvolvimento do espírito e do pensamento segundo leis também.preestabelecidas é explicada (e compreendida) pela mera apresentação de suas fases.

Nessa visão de história cabe ao homem apenas resignação: é preciso aguardar o desenvolvimento e aguardá-lo sua ordem natural, seu tempo, seus limites, num processo em que é, ele também, ordeiro (destaque nosso)

13 A isto responde um fator sociológico. Trata-se do caminho de produção e aplicação do direito, trilhado pela classe dominante para obter o controle do aparelho ideológico do direito. Disto tratamos no artigo "O controle do aparelho ideológico do direito pela influência dos espaços formais de produção e aplicação jurídica"

14"A questão de saber qual é, dentre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar a "correta" não é [...] uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema da Teoria do Direito, mas de Política do Direito" (Kelsen apud Camargo 1999:111)

15 A esta construção que premia o arbítrio injustificado, Perelman lhe atribui o epíteto de "escandalosa". Eis: "As teses apresentadas por esse mestre inconteste do pensamento jurídico, com a clareza e a força convincente que lhe caracterizam todos os seus escritos questionavam tantas idéias comumente aceitas, resultaram em tantas conseqüências paradoxais - sendo a mais escandalosa delas a referente à concepção tradicional da interpretação jurídica, bem como a do papel do juiz na aplicação do direito – que nenhum teórico do direto as podia ignorar nem se abster de posicionar-se a seu respeito" (Perelman, 1996:474)

16"O direito não se identifica com a totalidade das leis escritas. Em certas circunstâncias, pode haver um ‘mais’ de direito em relação aos estatutos positivos do poder do Estado, que tem a sua fonte na ordem jurídica constitucional como uma totalidade de sentido e que pode servir de corretivo para a lei escrita; é tarefa da jurisdição encontrá-lo e realizá-lo em suas decisões". BVerGE 34, 269, apud Jürgen Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, v. 1, 1997, p. 303

17 Quanto a esta função que exercem os princípios, de serem parâmetros interpretativos de uma hermenêutica aberta, veja-se: "A forma jurídica mais definida mediante a qual a fecundidade dos princípios se apresenta é, em primeiro lugar, a função interpretativa e integrativa. O recurso aos princípios se impõe ao jurista para orientar a interpretação das leis de teor obscuro ou para suprir-lhes o silêncio. Antes ainda das cartas constitucionais, ou, melhor, antes que, sob o influxo do jusnaturalismo iluminista, máximas jurídicas muito genéricas se difundissem nas codificações, o recurso aos princípios era já uma necessidade para interpretar e integrar as leis".

18 Não se deve esquecer, que não obstante esta afirmação, a maioria dos autores considera que se deve interpretar regras e princípios de forma diversa. Destacam-se nesse sentido, as formulações de Alexy e Dworkin, sendo que para este último, as regras são aplicáveis à maneira all or nothing, enquanto os princípios aplicam-se pelo seu peso ou valor (Dwokin apud Bonavides, 2002)

19apud Coelho, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional, Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 1997

20 idem

21 Como destaca BONAVIDES, Paulo in Curso de direito constitucional. 12ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 453: "Sendo a Constituição aberta, a tópica também o é. Valem para todas as considerações e pontos de vista que concorram ao esclarecimento do caso concreto, não havendo graus de hierarquia entre os distintos loci ministrados pela tópica".

22apud COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit.

23Apud BONAVIDES, op. cit., p. 470.

24 STRECK, Lênio. A revolução copernicana do (neo)constitucionalismo e a (baixa) compreensão do fenômeno no Brasil – uma abordagem à luz da hermenêutica filosófica.Disponível.no.site..http://www.trf4.gov.br/trf4/upload/arquivos/emagis_atividades/lenioluizstreck.pdf. Acesso em 16/09/2006.

25 Assevera ainda o autor, no mesmo texto, remetendo à mudança de perspectiva política a que nos remetemos anteriormente: "Permito-me insistir: a função do direito – no modelo instituído pelo Estado Democrático de Direito – não é mais aquela do Estado Liberal-Abstencionista. O Estado Democrático de Direito representa um plus normativo em relação ao Estado Liberal e até mesmo ao Estado Social. A Constituição do Brasil, como as de Portugal, Espanha e Alemanha, por exemplo, em que pese o seu caráter aberto, é uma Constituição densa de valores, compromissória e voltada para a transformação das estruturas econômicas e sociais."

Sobre o autor
Vitor Costa Oliveira

Advogado. Pós-graduando em Direito Constitucional pela Unisul/IDP/Rede LFG. Bacharelando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Sergipe

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Vitor Costa. A formação do neoconstitucionalismo e sua prevalência na contemporaneidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1655, 12 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10850. Acesso em: 22 nov. 2024.

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