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Lei seca: aspectos jurídicos e práticos

Agenda 15/01/2008 às 00:00

Com o incremento da criminalidade em nosso país, surgiram sugestões de medidas para reduzir os índices de violência e práticas ilícitas. Dentre essas medidas, encontra-se a restrição à venda de bebidas alcoólicas em determinados locais e horários, com o propósito de prevenir ocorrências policiais.

Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de "lei seca"; 3. A constitucionalidade da chamada "lei seca"; 4. A eficácia prática da chamada "lei seca"; 5. Conclusão.


1. Introdução

Com o incremento da criminalidade em nosso país, surgiram sugestões de medidas para reduzir os índices de violência e práticas ilícitas.

Dentre essas medidas sugeridas, encontra-se a restrição à venda de bebidas alcoólicas em determinados locais e horários, com o propósito de prevenir ocorrências policiais.

Nesta ocasião, faremos um estudo inicial sobre os aspectos jurídicos de referido ato restritivo por parte do Estado, principalmente levando-se em conta sua adequação aos comandos constitucionais.

Em seguida, abordaremos a própria viabilidade prática da medida, inclusive sua eficácia e eventuais danos à economia, provocados pelas restrições à venda de bebidas alcoólicas em certos locais e horários.


2. Conceito de "Lei Seca"

"Lei seca" é uma denominação popular da proibição oficial para o fabrico, varejo, transporte, importação ou exportação de bebidas alcoólicas, sendo certo que estas atividades se tornam proibidas e ilegais.

É conhecida mundialmente a experiência dos Estados Unidos que, precisamente em 1919, estabeleceu, pela 18ª Emenda à Constituição de 1787, a proibição de qualquer fabricação ou comércio de bebidas alcoólicas em território norte-americano.

Essa proibição genérica e absoluta estabelecida pela 18ª Emenda Constitucional Norte-Americana ficou conhecida universalmente por "Lei Seca".

A partir de então, qualquer forma de restrição estatal, ainda que pontual e mínima, relativa à comercialização de bebida alcoólica, passou a receber a denominação, geralmente em caráter pejorativo, de "lei seca".

Na verdade, o Brasil não possui, nem existe qualquer intenção de possuir, uma "lei seca" nos moldes que existiu nos Estados Unidos entre os anos de 1919 a 1933.

O que se discute atualmente no Brasil é a instituição, nos centros urbanos, de restrições por parte do poder público para a comercialização de bebidas alcoólicas em certos locais e em determinados horários.

Baseado nessa idéia é que se deve analisar a pertinência jurídica, bem como a eficácia prática, das restrições acima mencionadas em nosso país.


3. A constitucionalidade da chamada "lei seca"

Inicialmente, é fundamental perscrutar acerca da constitucionalidade e juridicidade das proibições de venda de bebidas alcoólicas em certos estabelecimentos, com a fixação de horário para essa comercialização.

Essas proibições constituem expedientes bastante utilizados atualmente em nosso país, como forma de se tentar conter o incremento dos índices de violência, sendo denominadas "lei seca".

Em termos jurídicos, as proibições acima mencionadas encontram-se no âmbito do chamado "poder de polícia administrativa", que é conferido a determinado ente estatal para regularizar certas atividades particulares, guardando consonância com o interesse público.

Neste sentido, o ensinamento do saudoso mestre Hely Lopes Meireles:

"O poder de polícia administrativa consiste na faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado" (Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 16ª edição, p. 110).

A venda de bebida alcoólica é uma atividade econômica particular absolutamente lícita. Porém, deve respeitar a regulamentação estatal pertinente, como qualquer outro setor privado, visando sua adequação aos interesses de toda a coletividade.

A chamada "lei seca", em sua conotação inserida na atual realidade brasileira, como medida restritiva e de não proibição absoluta e total, como ocorrera nos Estados Unidos entre os anos de 1919 e 1933, não possui qualquer óbice material quando a defrontamos com a Constituição Federal de 1988.

Outros diplomas legais igualmente estabelecem a aplicação do poder de polícia administrativo, inclusive definindo-o, como é o caso do artigo 78 do Código Tributário Nacional.

Em relação a este último dispositivo legal jamais se ousou apontá-lo como inconstitucional.

Além disso, a Constituição Federal, em seu artigo 170 e seguintes, tratando da ordem econômica e financeira, mesmo assegurando o princípio da livre iniciativa, não deixa de indicar que o Estado exercerá, na forma legal, a função de agente normativo e regulador da atividade econômica, inclusive em relação às atividades exercidas por particulares.

Dentro desse papel regulador do Estado, não pode restar dúvida de que existe a possibilidade de, observando o interesse coletivo, ser disciplinada a atividade econômica de venda de bebidas alcoólicas, inclusive limitando os locais e horários de comercialização do referido produto.

Essa regulamentação constitui opção política do ente estatal pertinente que, sem proibir integralmente a comercialização, apenas regula referida atividade econômica, sem afrontar o princípio da livre iniciativa na atividade econômica, prescrita na Constituição Federal.

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Vencida a questão da constitucionalidade material, passa-se a analisar quem poderá expedir essa regulamentação genérica proibindo a venda de bebida alcoólica em determinados locais e horários, bem como qual instrumento normativo poderá ser utilizado para tanto.

O poder de polícia é inerente a todas as esferas da Administração Pública, ou seja, é repartida entre União, Estados e Municípios, de forma comum, concorrente ou exclusiva, dependendo do assunto a ser tratado.

No caso específico da restrição à comercialização de bebidas alcoólicas, trata-se claramente de assunto de interesse local, cabendo apenas ao município discipliná-o, nos termo do artigo 30, inciso I, da Constituição Federal.

A respeito, o Supremo Tribunal Federal, em mais de um julgamento, já estabeleceu que o município é competente para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial, regulando a atividade econômica local em benefício da coletividade .

Eis alguns julgados sobre o tema:

"Os Municípios têm autonomia para regular o horário do comércio local, desde que não estaduais ou federais válidas, pois a Constituição lhes confere competência para legislar sobre interesse local"

(AI 622.405-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 22-5-07, DJ de 16-6-07).

"Competência do Município para estabelecer horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais. Art. 30, I. Inocorrência de ofensa aos artigos 5º, caput, XIII e XXXII, art. 170, IV, V e VIII, da CF"

(AI 182.976, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 12-12-97, DJ de 27-2-98).

No mesmo sentido: AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 15-2-05, DJ de 1º-4-05.

Consolidando esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal expediu a Súmula 645: "É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial".

Segundo o explicitado nos julgados acima, tem-se a confirmação, pelo Pretório Excelso, que só o município, como ente estatal, tem competência para estabelecer restrição à venda de bebidas alcoólicas, no que concerne à local e horários.

Contudo, surge a indagação: qual o instrumento jurídico que deverá ser utilizado pelo município para disciplinar a comercialização de bebidas alcoólicas ?

No nosso país, a partir de meados da década de noventa, alguns estados, como Pará, Piauí e Maranhão, resolveram disciplinar o comércio de bebidas alcoólicas através de portarias e resoluções administrativas.

Vimos anteriormente que somente o município pode disciplinar o referido assunto, sendo a iniciativa desses estados-membros absolutamente inconstitucional em sua forma, pois viola o artigo 30, inciso I, da Constituição Federal, bem como o Enunciado Sumular nº 645 do Supremo Tribunal Federal.

Por outro lado, o artigo 174 da Constituição Federal é explícito em indicar que o ente estatal atuará como agente normativo e regulador da atividade econômica, na forma da lei.

O que se extrai desse comando, conjugado com o princípio da legalidade genérica, prevista no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, em que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, é de que o instrumento normativo adequado para disciplinar o comércio de bebidas alcoólicas por parte do município deverá ser uma lei em sentido estrito, passando por todo o processo legislativo pertinente, com iniciativa, votação, promulgação, sanção e publicação, em atos de que participem os Poderes Legislativo e Executivo Municipal.

Esta circunstância faz com que se afaste, por inconstitucional, qualquer tentativa de se estabelecer mecanismos de restrição à venda de bebidas alcoólicas por atos normativos infra-legais, como portarias e resoluções, atos exclusivos do Poder Executivo local.

Ainda neste sentido, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 3691/MA – ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio, referente à Portaria nº 17/2005-ASPLAN/SSP, de 25.10.2005, editada pela Secretaria de Segurança Pública do Maranhão, se manifestou acerca da constitucionalidade de restrição ao comércio de bebidas alcoólicas, desde que realizada pelo município, nos termos do artigo 30, I, da Constituição Federal, utilizando para tal, como instrumento normativo, lei em sentido formal e estrito.

Baseando-se nos parâmetros acima, desde que sejam cumpridas as exigências de competência constitucional e utilização de instrumento normativo adequado, o estabelecimento de restrição à comercialização de bebidas alcoólicas a certos locais e horários é consonante com a Constituição Federal.


4. A eficácia prática da chamada "lei seca"

Feita a análise jurídica da chamada "lei seca", passa-se a vislumbrar as questões práticas de sua eventual aplicação, em especial sua eficácia no combate à criminalidade.

Segundo informações veiculadas pelo jornal Zero Hora, em pesquisa do Departamento de Medicina Legal do Rio Grande do Sul, precisamente na região metropolitana de Porto Alegre, 36 % (trinta e seis por cento) das vítimas de homicídio ingeriram bebida alcoólica antes de morrer. Ainda, cerca de 55% (cinqüenta e cinco por cento) dos acidentes de trânsito com feridos e mortos, bem como 80% (oitenta por cento) dos casos de violência contra a mulher, em Porto Alegre, envolve ingestão de bebida alcoólica.

O efeito deletério do álcool e sua importante participação trágica nos casos de violência de todos os tipos, independentemente das estatísticas acima mencionadas, é notório, bastando uma simples visita aos hospitais de emergência e às delegacias de polícia.

Apesar desta conclusão unânime, ainda existem discussões acaloradas sobre a necessidade ou conveniência de se restringir por meio de leis municipais a comercialização de bebida alcoólica em determinados locais e horários.

De um lado, aqueles que vêem estas restrições como abusivas à liberdade individual, carecendo de eficácia prática no combate à violência. De outro, os que advogam ser a medida restritiva necessária para ajudar na diminuição dos índices de violência.

Aqueles que rechaçam as chamadas "leis secas" municipais dizem que a restrição: a) não resolverá o problema da violência; b) causará prejuízos econômicos e c) afronta à liberdade individual, criando uma cultura segregacionista.

Passamos a analisar cada uma das teses contestatórias acima citadas.

A mera restrição de comércio de bebidas alcoólicas, realmente, não resolverá o problema da criminalidade em nenhuma cidade brasileira, nem em nenhuma outra do mundo inteiro.

Na verdade, nenhuma medida isolada, igualmente, como a aquisição de equipamentos policiais, a contratação de novos agentes de polícia, o monitoramento por câmeras em vias públicas ou políticas sociais em geral, quando aplicadas sozinhas, resolverá esse complexo e intrincado problema que é a violência urbana.

No combate à criminalidade, deve-se aplicar conjuntamente essas e outras medidas, sem esquecer que qualquer delas isoladamente não poderá ser a panacéia para a resolução do problema da violência, que precisa ser estabelecida em parâmetros pelo menos aceitáveis.

Portanto, a alegação daqueles que contestam a "lei seca", neste aspecto, não merece acolhida.

Não resta dúvida, por outro lado, que a proibição da venda de bebidas alcoólicas em certos horários trará, pelo menos, em um primeiro momento, impactos negativos em determinado setor da vida econômica do município.

Entretanto, não se pode olvidar que a vida humana é mais importante que qualquer questão puramente financeira ou monetária, devendo o interesse coletivo prevalecer sobre meras questões patrimoniais individuais.

Além disso, o consumo de bebida alcoólica, levando-se em conta o seu sentido macro-econômico, não beneficia a economia como um todo.

Deveras, os gastos públicos com assistência médica, inclusive internações, tratamentos e reabilitações de vítimas da violência, bem como a necessidade de amparo previdenciário destas últimas, constituem trágicos gastos públicos custeados pela sociedade como um todo.

Pior, geralmente as vítimas de violências provocadas pelo álcool são pessoas jovens, entre 15 e 35 anos, em pleno período de atividade produtiva, que vêem sua vida ceifada ou arruinada em razão, direta ou indiretamente, da bebida alcoólica.

Desta maneira, restringir a venda de bebida alcoólica, além de preservar a vida e a saúde humanas, é uma medida que reduzirá sensivelmente os prejuízos econômicos advindos com tragédias e atos criminosos provocados pelo álcool.

Ademais, além da violência em si, o consumo exagerado de álcool, em especial aquele oriundo da venda em determinados horários, provoca rixas e perturbações de sossego, atingindo em cheio o interesse coletivo.

Quanto à eventual afronta à liberdade individual provocada pela chamada "lei seca", igualmente tal afirmativa não pode ser considerada.

De fato, é cediço que nenhuma liberdade ou direito é absoluto, somente podendo persistir até o momento em que não conflite com o interesse social.

Desde que aplicada de forma genérica, sem privilégios ou atitudes discriminatórias, a "lei seca" não afronta qualquer liberdade constitucional. Ao contrário, harmoniza a livre iniciativa econômica aos ditames do bem comum.

Conforme dito acima, a partir do final da década de noventa do século passado, alguns municípios brasileiros passaram a adotar a chamada "lei seca" para auxiliar na contenção dos altos índices de criminalidade violenta.

Neste sentido, deve ser ressaltada a experiência adotada a partir de junho de 2002, pelo município de Diadema, na grande São Paulo.

Até o mês em que a medida foi adotada, Diadema, que contava 376.000 habitantes, registrava uma das mais altas taxas de assassinatos do mundo – 141 em cada grupo de 100.000,00 habitantes, número que resultava em 40 homicídios por mês.

Já em 2004, sob o pálio da "lei seca", a média mensal de crimes de morte em Diadema foi de menos de 11 pessoas.

Deve ser ressaltado que no município de Diadema, visando à diminuição dos índices de violência, a "lei seca" não foi uma medida isolada, tendo sido acompanhada por incrementos no aparelho policial, bem como por uma maior intensidade nas políticas sociais de inclusão de marginalizados.

Todavia, não se pode negar que, ainda em Diadema, onde os índices de violência eram elevadas, a restrição à venda de bebidas alcoólicas teve um papel fundamental na drástica redução da criminalidade, conforme foi bastante noticiado pela mídia.

Desta forma, no que tange à eficácia prática da chamada "lei seca", devemos constatar que a mesma, isoladamente, não causará uma redução significativa da criminalidade. Porém, associada a outras medidas, certamente é um importante instrumento da contenção da violência no meio urbano.


5.Conclusão

Tendo em vista todo o exposto acima, conclui-se o seguinte:

  1. a restrição à venda de bebidas alcoólicas a determinados horários, conhecida popularmente por "lei seca", é plenamente constitucional, pois decorre do poder de polícia administrativa e da intervenção estatal na ordem econômica, postulados inseridos na Constituição Federal;

  2. somente lei em sentido estrito e formal, com a participação dos Poderes Legislativo e Executivo, poderá instituir a chamada "lei seca", não sendo possível tal restrição ser fixada por portarias ou resoluções do Poder Executivo isoladamente;

  3. a competência para instituir a chamada "lei seca", por ser assunto de interesse local, é dos Municípios, nos termos do artigo 30, inciso I, da Constituição Federal e da Súmula 645 do Supremo Tribunal Federal e

  4. a chamada "lei seca", juntamente com outras medidas pertinentes, é importante instrumento no combate à criminalidade violenta, devendo a sua aplicação ser uma opção política de cada comunidade local.


Referências bibliográficas

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Sobre o autor
Jorge Romcy Auad Filho

Promotor de Justiça do Estado de Rondônia. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade da Amazônia - UNAMA e em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AUAD FILHO, Jorge Romcy. Lei seca: aspectos jurídicos e práticos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1658, 15 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10853. Acesso em: 5 nov. 2024.

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