Resumo: Este artigo tem por objetivo estabelecer relação teórico-conceitual entre a espécie recursal do Recurso Extraordinário, a formação de causa decidida, o instituto do pré-questionamento e o sistema difuso do controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro. Seu enfoque principal é a medida em que tais institutos se interpenetram e como pode ser estabelecida a dependência e harmonia teórica entre eles. Para tanto, investiga-se o controle de constitucionalidade, apresentando seus pressupostos, conceitos fundamentais e sistemas; elucida-se sobre o recurso extraordinário como espécie recursal prevista na Constituição da República para garantir a sua guarda pelo Supremo Tribunal Federal; e, por fim, busca-se estabelecer de que forma o sistema difuso do controle de constitucionalidade, que tem seu ápice, no Brasil, no Recurso Extraordinário, exige a formação da causa decidida, através do pré-questionamento, para o conhecimento desse recurso. Recorreu-se a dados recolhidos em fontes bibliográficas extraídas de livros, artigos em periódicos e disponíveis na rede mundial de computadores, aplicando a metodologia dedutiva para atingir os objetivos intentados. Ao final, pondera-se que a formação de causa decidida, através do pré-questionamento, complementa a adoção do modelo difuso do controle de constitucionalidade, estando em relação simbiótica com esse sistema, guardando total pertinência com sua construção conceitual.
Palavras-chave: Controle difuso de constitucionalidade. Recurso Extraordinário. Causa decidida e pré-questionamento.
INTRODUÇÃO
O constitucionalismo democrático, que já foi chamado de ideologia e forma de concepção de Estado dominante no Ocidente para o século XX3, caracteriza-se pelo estabelecimento de uma única norma ou um corpo normativo como Lei Fundamental, incumbida de repartir competências e atribuições entre os órgãos estatais e garantir direitos às pessoas sob sua tutela. Essa norma-base, a Constituição, é o fundamento jurídico-normativo do poder e da validade do direito, estabelecendo, ela mesma, instrumentos para sua preservação.
Chama-se de controle de constitucionalidade o conjunto de mecanismos e instituições de proteção da norma constitucional que visam a garantir sua supremacia perante outros atos normativos. Dentre os diversos institutos que compõem o sistema de controle de constitucionalidade do Brasil, o presente texto tratará especificamente do Recurso Extraordinário (RE).
Com efeito, o objetivo desta produção é estabelecer relação teórico-conceitual entre a espécie recursal do Recurso Extraordinário (RE), a formação de causa decidida, o instituto do pré-questionamento e o sistema difuso do controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro.
Para tanto, tratar-se-á do controle de constitucionalidade, seus pressupostos, fundamentos e sistemas identificados pela doutrina constitucionalista; do Recurso Extraordinário como espécie recursal prevista na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) para a realização do controle de constitucionalidade; do instituto do pré-questionamento como pressuposto recursal dessa espécie recursal e, por fim, demonstrar-se-ão as relações entre o Recurso Extraordinário, o conceito de “causa decidida”, o pré-questionamento e o sistema difuso de controle de constitucionalidade, com a aproximação teórica entre esses institutos.
Empós isso, em sede de considerações finais, entendeu-se restar demonstrada a relação simbiótica entre o controle difuso de constitucionalidade, o pré-questionamento e a exigência de formação de causa decidida para a admissão do recurso extraordinário, uma vez que o enfrentamento, pelas instâncias superiores, da matéria constitucional a ser conhecida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Recurso Extraordinário só é possível pela adoção do sistema difuso do controle de constitucionalidade.
1. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
1.1. Pressupostos e conceitos fundamentais
Antes de enfrentar a temática intentada propriamente dita, é importante trazer conceitos fundamentais à compreensão do objeto da presente explanação, a começar com noções acerca do controle de constitucionalidade.
Conceitualmente, leciona Cunha Jr. (2014, p. 214) que “o controle de constitucionalidade, [...], é uma atividade de fiscalização da validade e conformidade das leis e atos do poder público à vista de uma Constituição rígida, desenvolvida por um ou vários órgãos constitucionalmente designados.”.
É o controle de constitucionalidade, portanto, uma técnica, um instrumento de fiscalização da conformação das normas infraconstitucionais à norma constitucional cujo objetivo é justamente garantir a higidez do ordenamento jurídico face à norma fundamental positiva.
Reconhece-se a existência de certos pressupostos jurídico-normativos do ordenamento jurídico para que se possa falar em controle de constitucionalidade. Ainda que para o operador do direito contemporâneo, especialmente no Brasil, possa parecer evidente a supremacia da Constituição em face das outras normas do ordenamento jurídico, essa aparente verdade evidente nem sempre foi tão clara assim.
Como lembram Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2018, p. 40):
Embora a noção de constituição, compreendida em sentido material, ou seja, como o modo de organização da sociedade política, seja bem mais antiga, o fato é que a ideia de uma constituição formal, no sentido de uma constituição jurídica ou normativa, portanto, como expressão de um poder constituinte formal, encontrou sua afirmação (teórica e prática) apenas a partir do final do século XVIII.
A ideia de uma norma fundamental que significasse limitação ao poder da sociedade politicamente organizada (Estado), como dizem os autores, não é algo novo4. Foi porém com eventos históricos como a Revolução Gloriosa (1688), a Revolução Americana (1776), a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Haitiana (1791) que a ideia de uma Constituição como norma jurídica que expressasse um poder superior (a vontade da nação ou do povo) e, portanto, suprema, tomou forma.
Daí a noção de Constituição no sentido formal, expressa, como diz Barroso (2020, p. 91), no seu reconhecimento como “[...] norma fundamental e superior, que regula o modo de produção das demais normas do ordenamento jurídico e limita o seu conteúdo”.
Tem-se aqui o primeiro fundamento do controle de constitucionalidade: a Constituição, que funcionará como parâmetro do controle de constitucionalidade, deve ser formal, isto é, deve servir como instrumento de regulação, fiel da balança para as demais normas do ordenamento. Deve conter comandos jurídicos formalmente expressos (proibições, permissões, deveres, direitos). Deve, em suma, possuir um conteúdo mínimo que sirva como parâmetro.
Acrescente-se ao aspecto da formalidade o aspecto da dogmatização da constituição através de texto escrito. Segundo Cunha Jr. (2014, p. 215) “o controle de constitucionalidade dos atos normativos requer a existência de uma Constituição formal e escrita. Quer dizer, demanda um conjunto normativo de princípios e regras escritas, plasmados num texto jurídico supremo”5.
Além da formalidade e textualidade percebe-se a necessidade de rigidez do texto constitucional para a viabilidade do controle de constitucionalidade. Isso porque quando se está a falar de constituição flexível, aquelas em que o legislador ordinário pode alterar o texto constitucional sem maiores limites através do processo legislativo comum (BARROSO, 2020), é difícil imaginar controle de constitucionalidade6. É o que acontece nas constituições legalistas, um conjunto de leis ordinárias que se conformam em texto constitucional (MORAES, 2018).
Outro fundamento para o controle de constitucionalidade, e este é amplamente aceito pela doutrina, é a noção de supremacia da Constituição. Nos dizeres de Silva (2016, p. 46), a supremacia da norma constitucional:
[...] significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas.
Não se pode pensar em um sistema de controle constitucional que não reconheça a Constituição como norma suprema. Sua supremacia jurídica, qualidade de norma diferenciada das demais leis e atos normativos estatais, é o que garante a existência do controle de constitucionalidade. Adicione-se a essa característica ao que já se falou sobre constituição formal e rígida como pressupostos para o controle de constitucionalidade.
Esses fundamentos implicam a necessidade de identificação de um parâmetro para se aferir a constitucionalidade. Como se disse, o controle de constitucionalidade é o procedimento de verificação da conformidade dos atos infraconstitucionais com as disposições constitucionais. Os pressupostos trazidos se preocupam com a formação do parâmetro (Constituição) em relação ao objeto (demais normas).
Discorrer sobre esses pressupostos do controle de constitucionalidade é importante porque garante o melhor entendimento da importância da adoção de mecanismos de defesa da Constituição pelo ordenamento jurídico. Segundo Mendes e Branco (2021, p. 2322):
O reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força vinculante em relação aos Poderes Públicos torna inevitável a discussão sobre formas e modos de defesa da Constituição e sobre a necessidade de controle de constitucionalidade dos atos do Poder Público, especialmente das leis e atos normativos.
Assim sendo, como consequência do reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força normativa vinculante, e em razão do seu caráter formal e dogmático, exsurge a necessidade de sua proteção, notadamente diante da edição de atos normativos que transbordem a competência legada constitucionalmente ou ofendam os direitos nela expressos.
1.2. Modos de exercício do controle de constitucionalidade
Observando as características percebidas na práxis pela qual os países desenvolvem o controle constitucional, tem-se o que a doutrina cognominou de sistemas de controle de constitucionalidade, categoria didática para o enfrentamento da matéria.
Historicamente, o primeiro desses sistemas vem do direito norte-americano. Trata-se do controle de constitucionalidade realizado pelo Poder Judiciário (Judicial Review), razão pela qual, naturalmente, chama-se de sistema de controle jurisdicional. Segundo Carvalho (2011, p. 341)
Esse sistema tem sua origem nos Estados Unidos da América, onde não havia previsão constitucional expressa relativamente ao controle de constitucionalidade, e teve ampla repercussão após a decisão da Corte Suprema acerca do caso Marbury v. Madison, em que o juiz Marshall (achava-se no lugar certo, na hora exata) demonstrou que o ato legislativo ou executivo incompatível com a Constituição é nulo, irrito, sem valor algum, desprovido de força vinculativa, desobrigando de seu cumprimento os indivíduos e o Poder Público.
Para compreensão panorâmica do assunto, veja-se o que fora escrito em O Federalista, conjunto de ensaios de autoria de Alexander Hamilton, John Jay e James Madison, pais fundadores dos Estados Unidos, entre outubro de 1787 e maio 1788, no artigo n. 787:
É muito mais racional supor, que os tribunais foram projetados para ser um organismo intermediário entre o povo e o Legislativo, com o objetivo, dentre outras coisas, de manter o último dentro dos limites atribuídos à sua autoridade. A interpretação das leis é a província adequada e peculiar dos tribunais. A Constituição é, de fato, e deve ser considerada pelos juízes, como uma lei fundamental. Pertence a eles, portanto, determinar o seu significado, bem como o significado de qualquer ato particular procedendo do corpo legislativo. Se houver de acontecer uma discrepância irreconciliável entre os dois, aquela que tem a obrigação e validade superiores deve, naturalmente, ser preferida; ou, em outras palavras, a Constituição deve ser preferida ao estatuto, a intenção das pessoas à intenção de seus agentes.
Acabou que o entendimento acima, publicado no momento de discussão sobre as instituições políticas americanas nos manifestos d’O Federalista, dirigidos ao povo de Nova Iorque e aos Estados Unidos em geral por alguns dos Pais Fundadores americanos (sendo o trecho acima de autoria de Alexander Hamilton), sobre quem deve realizar o controle de constitucionalidade, prevaleceu.
Em 1803, a Suprema Corte Americana declarou, pela primeira vez, um ato infraconstitucional como incompatível à Constituição e o derrubou. Estava aberta a senda do controle difuso de constitucionalidade.8
Afirmou-se, neste julgamento paradigmático, a supremacia da norma constitucional sobre as normas infraconstitucionais – no caso, fixou-se o entendimento de que as competências da Suprema Corte não poderiam ser alargadas por lei federal ordinária, apenas por emendas à Constituição, que não contemplava a interposição do remédio intentado pelo autor junto àquele Tribunal.
Estava confirmada a supremacia da Constituição, um dos fundamentos do controle de Constitucionalidade. A Suprema Corte dos Estados Unidos (Supreme Court of the United States - SCOTUS) declarou o conteúdo jurídico plenamente coercitivo, e não apenas político-organizacional, do compromisso firmado entre os representantes dos Estados na Convenção Constitucional que originou a Constituição Americana de 1787.
A partir do caso Marbury v. Madison estabeleceu-se que qualquer corte federal tem o poder de realizar o controle de constitucionalidade, reconhecendo como inconstitucional um ato federal ou estadual que viole a legislação federal (PILLSBURY, 1923). Os precedentes de Martin v. Hunter's Lessee e Cohens v. Virginia pavimentaram o caminho da supremacia da jurisdição federal sobre a jurisdição estadual em matérias envolvendo a lei federal9.
A análise da constitucionalidade das normas no direito americano se dá através da apreciação, por parte do Poder Judiciário, em demandas concretas que lhe são submetidas, da compatibilidade da norma impugnada com a Carta Constitucional, por meio de um sistema de recursos e apelos que leva os casos decididos pelas Cortes Estaduais ou outras jurisdições para a Suprema Corte, valendo-se do writ of certiorari para tanto (ARAÚJO, 2020).
Por essa razão, pela atuação do controle de constitucionalidade através da análise, em concreto, da pretensão levantada pelas partes junto ao Poder Judiciário, diz-se que o modelo constitucional americano é difuso, considerando a quantidade de órgãos competentes. Mais será dito a esse respeito a seguir.
O segundo sistema de controle de constitucionalidade percebido pela doutrina constitucionalista é o sistema de controle político. Nesse sistema de controle, um órgão apartado do Poder Judiciário, instituído pela Norma Fundamental, à maneira que o costume jurídico dos países que o adotam determinar, exerce o controle de constitucionalidade das normas. A natureza eminentemente política desse sistema se revela por sua composição: na França, maior expoente desse sistema, até mesmo os ex-presidentes da República fazem parte do Conselho Constitucional (CARVALHO, 2011).
Agora, passe-se à análise do controle de constitucionalidade à luz do critério da quantidade de órgãos competentes para o seu exercício.
Com o surgimento do controle de constitucionalidade no direito americano, inaugurador do judicial review, reconheceu-se a possibilidade de qualquer órgão do Poder Judiciário declarar a inconstitucionalidade de um ato infraconstitucional. Trata-se do critério ou método difuso-incidental de controle constitucional. Para Cunha Jr. (2014, p. 246), “pelo método difuso-incidental, todo e qualquer juiz ou tribunal pode exercer, por ocasião de uma demanda judicial concreta, o controle de constitucionalidade dos atos e das omissões do poder público [...].”.
Pelo controle difuso de constitucionalidade obtêm-se as decisões com força vinculativa apenas entre as partes demandadas, pois é a sua lide, a sua demanda, a sua questão particular que é submetida, sendo a arguição da constitucionalidade da norma apenas questão de fundo da lide principal. Como lembram Didier Jr. e Cunha (2013, p. 345) “o controle difuso é sempre incidenter tantum, pois a constitucionalidade é questão incidente, que será resolvida na fundamentação da decisão judicial assim, a decisão a respeito da questão somente tem eficácia inter partes”.
Diz-se que, nesse sistema, a questão constitucional é a questão incidente, e não principal, porque ela não é exatamente o objeto do litígio. Nos processos em que se discute a constitucionalidade de determinado ato normativo de maneira difusa tal questão, a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do ato normativo, apresenta-se como obstáculo ou caminho para viabilizar ou inviabilizar o bem da vida pleiteado no caso concreto. O que se pede é o direito controvertido (p.ex., nomeação em cargo público, cancelamento de crédito tributário, prestação pecuniária) com o fundamento na constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma que lastreia esse pedido.
O contrário do controle de constitucionalidade difuso é o controle de constitucionalidade exercido de forma concentrada. Segundo Carvalho (2011, p. 351) “o controle concentrado é aquele exercido ou reservado a um ou a poucos órgãos criados especificamente para esse fim, ou que têm nessa atividade sua função principal[...]”.
Nesse critério de controle de constitucionalidade, cumpre a um ou mais órgãos específicos o julgamento das demandas relativas à constitucionalidade dos atos normativos infraconstitucionais. Esses órgãos exercem a jurisdição sobre a constitucionalidade de maneira concentrada, protagonista, única, daí porque a nomenclatura desse critério, através de ações constitucionais específicas para determinados propósitos.10
Quando se exercita o controle de constitucionalidade por esse critério de protagonismo (concentração), enfrenta-se a questão constitucional como questão principal. O objeto do processo não é um bem da vida concretamente considerado mas sim a própria constitucionalidade ou não do ato normativo impugnado.
2. DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
2.1. Generalidades sobre o recurso extraordinário
Após o enfrentamento de noções fundamentais para a compreensão do objeto desse artigo propriamente dito, passa-se a analisá-lo com detenção.
Como dito, o controle de constitucionalidade, fundamental para preservação do modelo constitucional de Estado, instrumento de garantia da supremacia da Constituição rígida, é exercido, tradicionalmente, por um sistema jurisdicional, político ou misto; e, ainda, de maneira difusa-concreta ou concentrada, tipicamente abstrata.
Segundo Tavares (2012, p. 252) o controle realizado no Brasil é:
[...] tanto o controle abstrato-concentrado como o controle difuso-concreto. Por isso, pode-se dizer que, no Brasil, o modelo é combinado: só o STF (= controle concentrado) pode realizar controle abstrato (objetivo, em tese). E qualquer instância judicial (= difuso) pode fazer o controle de constitucionalidade para resolver adequadamente o caso concreto (que é a preocupação principal nesse modelo). (grifo do autor)
Para efetivar o controle difuso-concreto de constitucionalidade as partes podem se valer de todo o instrumental processual disponível pelo ordenamento jurídico para veicular suas pretensões, uma vez que, acolhendo o Brasil a possibilidade de qualquer juízo ou instância declarar a inconstitucionalidade de norma, poderá fazê-lo em qualquer tipo de processo, da ação de cobrança aos remédios constitucionais.
O Recurso Extraordinário, espécie recursal prevista na Constituição da República, art. 102, III, e no Código de Processo Civil, arts. 1.029. e seguintes, dentre outros diplomas normativos, desempenha papel de destaque nesse quadro de instrumentos processuais de controle constitucional.
À guisa de nota histórica, quando o Brasil organizou-se em uma Federação, a partir da Constituição de 1891, o constituinte da época também sentiu a necessidade de criar uma espécie recursal capaz de garantir a supremacia da Constituição e do direito federal. Problemas de invasão de competência entre entes não existiam no Brasil Imperial, pois a organização político-jurídica era unitária.
Ao tornar o país uma federação republicana e reconhecer Estados-membros independentes jurídica e politicamente, a Constituição de 1891 previu um instrumento de garantia da ordem constitucional e respeito ao direito federal: o recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal11.
Do surgimento dessa espécie recursal, com a Constituição de 1891, até o advento da Emenda Constitucional à Constituição de 1967 de nº 1, do ano de 1969 (Constituição de 1969, para muitos), o Recurso Extraordinário no Brasil objetivava garantir a supremacia da Lei Federal e da autoridade central sobre os atos dos governos estaduais.
A partir de 1969, o regramento e os objetivos do apelo extraordinário foram modificados, configurando-se de modo semelhante ao que se tem hoje, como um dos instrumento de guarda da Constituição. Na ordem constitucional vigente, o RE, como é conhecido na prática forense, serve à efetivação do comando constitucional previsto no Art. 102, caput, da Constituição da República, que erige o Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição.
A respeito dele, lecionam lecionam Didier Jr. e Cunha (2013, p. 349) que:
No espectro dessa função desempenhada pelo STF, insere-se o recurso extraordinário, mercê do qual a Corte Suprema rejulga decisões proferidas, em última ou única instância, que tenham violado dispositivo da Constituição Federal. No particular, além de corrigir a ofensa a dispositivo da Constituição, o STF cuida de uniformizar a jurisprudência nacional quanto à interpretação das normas constitucionais.
Em síntese, o Recurso Extraordinário desempenha relevante papel para garantir a higidez do ordenamento jurídico, pois se trata de via recursal direcionada ao Supremo Tribunal Federal que põe em movimento sua jurisdição, como Suprema Corte, acerca de matéria constitucional decidida nos juízos inferiores, garantindo, portanto, a uniformidade na interpretação da Constituição.
2.2. O esgotamento das vias ordinárias como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário
Um dos pressupostos12 de admissibilidade do recurso extraordinário é o chamado esgotamento das vias ordinárias de decisão. Esse pressuposto assume, essencialmente, feições teleológicas e uma normativas.
Os recursos extremos são medidas de caráter excepcional, destinadas a garantir a higidez do ordenamento jurídico. Sendo assim, tais recursos não se prestam à revisão geral e irrestrita de todos os atos judiciais, mas apenas daqueles em discordância com as normas do direito constitucional posto. Sua finalidade (teleologia) é garantir a higidez do ordenamento jurídico por meio da correta aplicação da norma constitucional.
Por essa razão, seu conhecimento pelo Supremo Tribunal Federal pressupõe que todos os órgãos jurisdicionais possíveis e competentes, através de todas as vias possíveis garantidas pelo ordenamento jurídico, já hajam se manifestado a respeito da controvérsia jurídica que se quer submeter à análise das cortes superiores através dos recursos extremos.
Em suma, é preciso que o pronunciamento judicial impugnado seja o último possível, emanado do último órgão antes dos Tribunais Superiores ou mesmos destes.
Segundo Assis (2017, p. 620) “é indispensável, em qualquer caso, que o pronunciamento do juiz singular ou do tribunal seja ‘final’. Significa que o provimento há de se mostrar imune a outro recurso na instância ordinária, exceção feita ao próprio extraordinário ou aos embargos de declaração”.
Essa construção se extrai de leitura do art. 102, III da Constituição da República:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: (grifo nosso)
Assim sendo, é exigência para a admissibilidade do recurso extraordinário que o seu manejo se dê contra ato do qual não se possa desafiar nenhum outro recurso. Essa disposição confirma a natureza excepcional dos recursos extremos como instrumentos de revisão do direito posto, quando outra alternativa recursal não for possível.
Evita-se, com isso, a supressão de instância, o salto entre as vias ordinárias, as quais poderiam e deveriam rever a questão. Igualmente, evita-se que os Tribunais Superiores, que desempenham função relevante e específica na organização judiciária, abarrotem-se com demandas de toda natureza. Além disso, privilegia-se a organização lógica do ordenamento jurídico. Imperaria a desordem se fosse possível transitar livremente entre os órgãos de jurisdição em busca da tutela recursal.
Desse modo, mostra-se imprescindível, para o conhecimento dos recursos extremos, que todos os graus de jurisdição hajam prolatado decisão acerca da matéria contra qual se deseja recorrer pela estreita via dos recursos extraordinários.
2.3. O pré-questionamento
O estudo do pré-questionamento é dos mais instigantes na matéria recursal. Muitos são os posicionamentos doutrinários a seu respeito, igualmente plurais são as correntes jurisprudenciais sobre ele e o Código de Processo Civil disciplinou-o em alguns dos seus dispositivos13.
Diante da ampla gama de repercussões que esse instituto pode causar, convém determinar seu enfoque para esse artigo.
Como consignado na introdução, pretende-se apresentar o pré-questionamento na exata medida da sua relação com o sistema difuso de controle de constitucionalidade. Questões outras como seu conceito ou o que se considera matéria pré-questionada foram trazidas apenas para se chegar a esse fim.
Outros temas, como os tipos de pré-questionamento reconhecidos pela doutrina não serão objeto de consideração pois entende-se não pertinentes ao objetivo deste artigo. Feita essa consideração, passa-se à análise do instituto e depois às considerações centrais para essa produção, na seção seguinte.
Reforçando o que foi dito sobre a dificuldade científica por trás do pré-questionamento, veja-se o que Medina (1997, p. 276), em obra clássica sobre o tema, leciona a respeito da pluralidade do entendimento conceitual desse instituto:
[...] podemos sistematizar tais entendimentos em três grupos: a) pré-questionamento como manifestação expressa do tribunal recorrido acerca de determinado tema; b) pré-questionamento como debate anterior à decisão recorrida, acerca do tema, hipótese em que o mesmo é muitas vezes considerado como ônus atribuído à parte; c) a soma das duas tendências citadas, ou seja, pré-questionamento como prévio debate acerca do tema de direito federal ou constitucional, seguido de manifestação expressa do tribunal a respeito.
O primeiro posicionamento, trazido por Medina (1997, p. 276), vê o “pré-questionamento como manifestação expressa do tribunal recorrido acerca de determinado tema”. Certamente, essa definição é correta, com as ressalvas feitas, logo mais, a respeito da relação entre pré-questionamento e causa decidida.
Devido ao costume arraigado na praxe processual brasileira, é preciso reconhecer a importância do entendimento de pensar no pré-questionamento como manifestação expressa do tribunal a quo a respeito da matéria questionada. Aqui se confundiria o pré-questionamento com a própria formação de causa decidida, necessária à admissibilidade do recurso extremo; traduziria, portanto, a exigência de que a corte de origem se manifeste a respeito daquilo que se está questionado em sede de extraordinário para o Supremo Tribunal Federal.
Do mesmo modo, também é correto encarar o pré-questionamento como debate anterior sobre a temática em questão através da iniciativa das partes, o que encarta o segundo posicionamento trazido por Medina (1997). O problema dessa ideia é considerar o pré-questionamento como ônus exclusivo das partes, como podendo surgir apenas a partir de sua iniciativa. Em que pese José Miguel Garcia Medina posicionar-se no sentido de ser o pré-questionamento ônus das partes em juízo, é preciso discordar nesse particular.
Tal discordância existe porque há pré-questionamento quando a questão que se pretende subsumir à jurisdição do Supremo Tribunal Federal é decidida nas instâncias inferiores. Na verdade, a formação de “causa decidida” é o verdadeiro requisito de admissibilidade dos recursos extremos, que encontra respaldo, inclusive literal, no texto constitucional, na locução “causa decidida” trazida expressamente no art. 102, III, da Constituição da República. Recorde-se que, conforme trazido, o pré-questionamento é um instrumental, um meio, um expediente para se atingir a causa decidida. Mas não é o único.
Pode-se afirmar que o dever de fazer pré-questionamento, encarando-o, insista-se, como ato instrumental no processo, poderia recair sobre a parte, tornando-se seu ônus. O que não se pode afirmar é que só existirá causa decidida se houver ato da parte no sentido de provocar o juízo. Isso porque é possível que o magistrado ou o tribunal conheça de ofício certas questões que, por essa razão, estarão pré-questionadas, para fins de Recurso Extraordinário - ainda que se reconheça que, por força do art. 10. do Código de Processo Civil de 2015, as partes sempre seriam instadas a se manifestar, mesmo que se trate de matéria sobre a qual o magistrado possa decidir de ofício.
Por fim, o terceiro entendimento apontado por José Miguel Garcia Medina, o de ser o pré-questionamento ato da parte e manifestação do Tribunal a respeito da causa também não está errado. Realmente, a formação da causa decidida pode se dar dos dois modos: através da provocação das partes, o mais correto e seguro método de se garantir a causa decidida, e através da manifestação do Tribunal acerca de alguma questão.
Trazendo uma definição do instituto em apreço lançada por Camara (2013, p. 34), tem-se que “o pré-questionamento é a submissão da matéria às instâncias ordinárias, e sua exigência decorre da própria natureza dos recursos excepcionais e da necessidade de formalização do requisito específico de admissibilidade previsto no texto constitucional que é a causa decidida.”.
Atinge-se a formação de causa decidida justamente a partir do que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a doutrina nominam de pré-questionamento. Trata-se de um instituto a serviço da construção de decisão a respeito da matéria constitucional ou federal debatida. Não goza de autonomia como categoria jurídica própria; é a instrumentalidade dentro da instrumentalidade que é o processo constitucional-civil. Por essa razão, merece ser encarado como conceito acima de tudo prático.
O que se pode sintetizar, a partir das considerações trazidas, é que o pré-questionamento consiste na forma através da qual se instrumentaliza a manifestação dos juízos inferiores acerca da matéria constitucional controversa, formando a chamada “causa decidida”, verdadeiro requisito de admissibilidade do recurso extraordinário.