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Tese para anular auto de infração por desmatamento na Amazônia

Agenda 06/03/2024 às 17:00

São comuns os autos de infração ambiental tipificados na conduta no art. 50 do Decreto 6.514/08, cuja autuação é motivada por dano à Floresta Amazônica, considerada objeto de especial preservação sem autorização do órgão ambiental, conforme consta registrado no auto de infração anexado aos autos.

Nestes casos, o auto de infração ambiental ainda será registrado com base no art. 225 da Constituição Federal, que trata as áreas consideradas Patrimônio Nacional, mas que submete sua utilização à edição de lei regulamentadora (art. 225, § 4º, CF/88), in verbis:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. (...)

§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

Nem todas as áreas desmatadas se enquadram no artigo 50 do Decreto 6.514/08

Da maioria dos autos de infração ambiental lavrados com base no art. 50 do Decreto 6.514/08 que nosso Escritório analisa, pode-se concluir que, no entendimento dos agentes de fiscalização, qualquer área de floresta amazônica, seja pública ou privada, é considerada objeto de especial proteção, simplesmente por se situar dentro da Amazônia Legal, em razão da interpretação atribuída ao § 4º do art. 225 da Constituição Federal.

Para esses agentes de fiscalização, portanto, a proteção seria automática e incontinenti. Contudo, o art. 50 do Decreto 6.514/08 não faz qualquer menção específica acerca da Floresta Amazônica ser considerada ou não objeto de especial preservação e, mais ainda, não específica a amplitude de referida preservação. Vejamos:

Art. 50. Destruir ou danificar florestas ou qualquer tipo de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas, objeto de especial preservação , sem autorização ou licença da autoridade ambiental competente: Multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por hectare ou fração. (...)

Atenção maior merece o § 2º do art. 50 do Decreto 6.514/08:

§ 2º Para os fins dispostos no art. 49 e no caput deste artigo, são consideradas de especial preservação as florestas e demais formas de vegetação nativa que tenham regime jurídico próprio e especial de conservação ou preservação definido pela legislação.

Nesse caminhar, constata-se, sem grandes esforços, que o núcleo do tipo administrativo impõe a necessidade de regime jurídico próprio e especial de conservação, ou seja, definição, limites e contornos detalhadamente descritos exatamente na forma de lei criada exatamente para complementar o mandamento constitucional instituído no art. 225, § 4º, da Constituição Federal.

Floresta Amazônica não possui regime jurídico próprio

A despeito da previsão constitucional de proteção especial, a própria Constituição Federal submete a utilização das referidas áreas à edição de lei específica regulamentadora.

Ou seja, a utilização da floresta amazônica deve ser regulada por lei, entendendo-se não ser possível infração ambiental (ou qualquer outra) sem norma anterior que a defina.

Encontramos em nosso ordenamento jurídico um conjunto de normas que regulamentam o preceito constitucional, a exemplo da Lei 11.428/06 (Lei da Mata Atlântica) e da Lei 12.651/12, que estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, de áreas de preservação permanente (APPs) e da Reserva legal.

Todavia, apesar da previsão constitucional de proteção especial, não houve, até o momento, edição de norma específica para disciplinamento da Floresta Amazônica como área de proteção especial – diferente, como visto acima, do bioma Mata Atlântica.

Fica claro no § 2º do art. 50 do Decreto 6.514/2008, acima citado, que há uma definição do que seja especial preservação: regime jurídico próprio e especial definido em legislação.

Quais áreas são de especial preservação?

Mas então, considerando a tese aqui defendida, quais áreas da Amazônia seriam objeto de especial preservação?

A resposta é muito simples: são de especial preservação as áreas que possuem regime jurídico próprio de proteção.

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Por exemplo, as áreas de preservação permanente e as de Reserva Legal, bem como as unidades de conservação criadas na forma da legislação, têm regime jurídico próprio e especial.

Frise-se, não há regime jurídico especial para as áreas particulares situadas na Amazônia, onde é permitido o uso alternativo do solo.

Partindo dessa análise, constatamos que nem todo o território abrangido pela Floresta Amazônica é área de proteção especial, pelo simples fato de não existir legislação específica, ou seja, “regime jurídico próprio”.

Sendo assim, para fins de lavratura de auto de infração ambiental com base no art. 50 do Decreto 6.514/08, devem ser identificadas áreas de preservação permanente e Reserva legal – que no caso da Amazônia Legal podem variar entre 20 e 80%, conforme art. 12, da Lei 12.654/12 (Código Florestal), verbis:

Art. 12. Todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, sem prejuízo da aplicação das normas sobre as Áreas de Preservação Permanente, observados os seguintes percentuais mínimos em relação à área do imóvel, excetuados os casos previstos no art. 68 desta Lei:

I - localizado na Amazônia Legal:

a) 80% (oitenta por cento), no imóvel situado em área de florestas;

b) 35% (trinta e cinco por cento), no imóvel situado em área de cerrado;

c) 20% (vinte por cento), no imóvel situado em área de campos gerais;

Perceba que se fosse adotado entendimento diverso, nenhuma área da Amazônia Legal poderia ser desmatada ou cultivada, mas se assim fosse, qual o sentido do art. 12 do Código Florestal em impor ao proprietário de área localizada na Amazônia Legal o dever de preservar a Reserva Legal?

Portanto, para aferição de infração ambiental em área situada na Amazônia Legal, mister se faz a delimitação dessas áreas (preservação permanente e Reserva legal) dentro da área total do imóvel, para que, então, seja aplicado o art. 50 do Decreto 6.514/08.

Não há regime jurídico próprio e especial da Floresta Amazônica

De fato, o regime aplicável às áreas de preservação permanente - APPs e Reserva legal da Amazônia é o mesmo das demais matas comuns do resto do país.

O cuidado que se deve ter com tais áreas na Amazônia é o mesmo cuidado que se deve ter com qualquer área de APP ou Reserva Legal das propriedades localizadas em outras regiões.

Não há regime mais ou menos gravoso só por ser floresta amazônica. Igualmente, nas áreas de uso alternativo do solo em imóveis da Amazônia não há diferença de regime jurídico em relação às áreas de mesmo uso em relação aos imóveis fora daquela região.

Isso é a prova de que não há regime jurídico próprio e especial. Conforme já visto, a caracterização da flora objeto de especial proteção não surgiu com o Decreto 6.514/08, esse conceito já existia anteriormente, tendo o Decreto a função de fixá-lo na legislação visando afastar as discussões existentes.

Essa é a função da interpretação autêntica (lei interpretativa), não inovando no mundo jurídico, mas esclarecendo situações dúbias e uniformizando o entendimento.

O que diz a doutrina sobre o regime jurídico de proteção do Bioma Amazônia

Essa é a lição da doutrina e o que prevê nosso ordenamento jurídico, nos moldes do art. 106 do Código Tributário Nacional [1], quando determina que a lei exclusivamente interpretativa se aplica aos fatos pretéritos.

Pretende o legislador, por meio da Lei de Crimes Ambientais e seus regulamentos, uma punição mais severa de quem danifica florestas objeto de especial preservação. Tanto o faz que comina multa para tal infração em valor muito superior àquela cominada para destruição de matas que não são objeto de especial proteção.

A doutrina segue o mesmo entendimento. Paulo Afonso Leme Machado [2] cita como exemplos de espaços territoriais especialmente protegidos as unidades de conservação, as áreas de preservação permanente e as reservas legais florestais, asseverando que são criadas por meio de resolução, decreto, lei ou portaria. Esse é também o entendimento de Edis Milaré [3].

Da mesma forma, José Afonso da Silva [4] afirma que a transformação dos biomas citados em patrimônio nacional visa impedir qualquer forma de internacionalização da Amazônia ou qualquer outra área.

Jurisprudência

No mesmo sentido da doutrina e da tese aqui defendida, caminha a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

CRIME CONTRA A MATA ATLÂNTICA: COMPETÊNCIA A Turma considerou que a inclusão da Mata Atlântica no "patrimônio nacional", a que alude o mencionado art. 225, § 4º, da CF, fez-se para a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado a que a coletividade brasileira tem direito, configurando, assim, uma proteção genérica à sociedade, que também interessa à União, mas apenas genericamente, não sendo capaz, por si só, de atrair a competência da Justiça Federal ( CF, art. 225, § 4º:"A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais."). Precedentes citados: RE 89.946-PR (RTJ 95/297), RE 166.943-PR (DJU de 4.9.95). ( RE 300.244-SC, rel. Min. Moreira Alves, 20.11.2001, informativo 251 do STF) (grifei)

RECURSO EXTRAORDINÁRIO - ESTAÇÃO ECOLÓGICA - RESERVA FLORESTAL NA SERRA DO MAR - PATRIMÔNIO NACIONAL ( CF, ART. 225, PAR.4.)- LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA QUE AFETA O CONTEÚDO ECONÔMICO DO DIREITO DE PROPRIEDADE - DIREITO DO PROPRIETÁRIO A INDENIZAÇÃO - DEVER ESTATAL DE RESSARCIR OS PREJUIZOS DE ORDEM PATRIMONIAL SOFRIDOS PELO PARTICULAR - RE NÃO CONHECIDO. (...) A proteção jurídica dispensada às coberturas vegetais que revestem as propriedades imobiliárias não impede que o dominus venha a promover, dentro dos limites autorizados pelo Código Florestal, o adequado e racional aproveitamento econômico das árvores nelas existentes. (...) O preceito consubstanciado no ART. 225, § 4º, da Carta da República, além de não haver convertido em bens públicos os imóveis particulares abrangidos pelas florestas e pelas matas nele referidas (Mata Atlântica, Serra do Mar, Floresta Amazônica brasileira), também não impede a utilização, pelos próprios particulares, dos recursos naturais existentes naquelas áreas que estejam sujeitas ao domínio privado, desde que observadas as prescrições legais e respeitadas as condições necessárias à preservação ambiental. - A ordem constitucional dispensa tutela efetiva ao direito de propriedade ( CF/88, art. 5., XXII). Essa proteção outorgada pela Lei Fundamental da República estende-se, na abrangência normativa de sua incidência tutelar, ao reconhecimento, em favor do dominus, da garantia de compensação financeira, sempre que o Estado, mediante atividade que lhe seja juridicamente imputável, atingir o direito de propriedade em seu conteúdo econômico, ainda que o imóvel particular afetado pela ação do Poder Público esteja localizado em qualquer das áreas referidas no art. 225, § 4º, da Constituição. - Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a consagração constitucional de um típico direito de terceira geração ( CF, art. 225, caput). ( RE 134297, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 13/06/1995, DJ 22-09-1995 PP-30597 EMENT VOL-01801-04 PP-00670) (Grifei)

Percebe-se, assim, não haver cabimento entender que qualquer área da Amazônia seria objeto de especial proteção.

Conclusão

Por falta de norma que regulamente a Amazônia como sendo de especial proteção, serão protegidos de forma específica só os espaços assim designados em lei, como no caso da Reserva legal, da área de preservação permanente ou unidades de conservação.

Se este, porém, não for o procedimento adotado quando da lavratura do auto de infração ambiental, isto é, se não há referência quanto a áreas de preservação permanente ou de Reserva legal, haverá nulidade do ato.

E esse tipo de situação é muito comum na prática, porque os órgãos ambientais lavram autos de infração ambiental “por danificar floresta nativa, objeto de especial preservação”, com base no art. 50 do Decreto 6.514/08, para qualquer área desmatada na Floresta Amazônica.

Porém, se a área desmatada estiver fora da área de Reserva legal, ou ainda, caso não seja área de preservação permanente, encontra-se por demais equivocado o auto de infração ambiental.

Ressalte-se ainda que o Estado de Direito adota como postulado basilar o Princípio da Legalidade, consagrado primariamente no art. 5º da Constituição Federal, ao determinar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

No tocante à legalidade administrativa traduz-se na possibilidade de atuação quando exista lei que determine (atuação vinculada) ou que autorize (atuação discricionária), devendo, portanto, obedecer estritamente à lei ou os termos, condições e limites autorizados na lei.

É óbvio que a flora deva ser preservada, bem como os infratores punidos por seus atos. Porém, a punição deve ocorrer da forma correta, dentro dos princípios basilares de nosso ordenamento, primando-se pela legalidade do ato, afastando-se atos eivados de ilegalidade.

Assim, a Administração, além de não poder atuar contra a lei ou além da lei, somente pode agir segundo a lei. Os atos praticados em desobediência a tais parâmetros são atos inválidos e podem ter sua invalidade decretada pela própria administração, em consonância ao princípio da autotutela, ou ainda, pelo Poder Judiciário, através de uma ação declaratória de nulidade de ato administrativo.

Portanto, quando um auto de infração ambiental é aplicado contra uma pessoa com base no art. 50 do Decreto 6.514/08 sem especificar se a área destruída ou danificada era de preservação permanente, reserva legal ou unidade de conservação, únicos regimes abrangidos pelo tipo administrativo, haverá vício insanável que causará sua nulidade.

Se não há especificação do tipo de floresta ou qualquer tipo de vegetação nativa nativa ou de espécies nativas plantadas, objeto de especial preservação, que o autuado tenha danificado ou destruído, haverá nulidade do auto de infração ambiental.

Tal fato decorre da violação do Princípio da Legalidade, já que a fundamentação utilizada nestes casos, para embasar a punição, é inidônea

E, por consequência da declaração de nulidade do auto de infração ambiental, também deve ser anulado eventual termo de embargo em face da evidente prejudicialidade com a nulidade apontada.

Obviamente, a invalidação do auto de infração ambiental por si só não impede a administração de expedir outro, sem o vício apontado, desde que haja capitulação da conduta e não tenha ocorrido a prescrição punitiva.

Referências

[1] Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I - em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;

[2] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21ª Edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 168.

[3] MILARÉ, Édis. Direito ambiental. 12a Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 561.

[4] Apud SILVA, Romeu Faria Thomé. Manual de direito ambiental. 12 ed. Salvador: Juspodivm.

Fonte: https://advambiental.com.br/artigo/tese-para-anular-auto-de-infracao-por-desmatamento-na-amazonia/

Sobre o autor
Cláudio Farenzena

Escritório de Advocacia especializado e com atuação exclusiva em Direito Ambiental, nas esferas administrativa, cível e penal. Telefone e Whatsapp Business +55 (48) 3211-8488. E-mail: contato@advambiental.com.br.

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