INTRODUÇÃO
A Constituição da República de 1988 prevê, no seu artigo 5º, caput, que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes do País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.”
Já no seu artigo 3°, inciso IV, a Constituição anuncia como um de seus objetivos “a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Na mesma linha, o artigo 5º, inciso XLI, prevê que “a lei punirá qualquer forma de discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
Por fim, no artigo 5º, inciso XLII, da nossa Carta Política, encontramos um mandado de criminalização: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
Como se pode perceber, a Lei 7.716/89 surge com o objetivo de conferir efetividade a todas estas normas constitucionais, enfrentando o racismo por meio do Direito Penal, exigindo que esta prática seja não apenas criminalizada, mas, sobretudo, punida a qualquer tempo, excepcionando, assim, o direito fundamental à prescrição.
Registre-se, todavia, que não foi este o primeiro diploma normativo a tratar do combate ao racismo. A “Lei Afonso Arinos” (Lei 1.390/51) foi a primeira a reprimir, penalmente, esta prática, mas de forma extremamente branda, considerando o racismo uma mera Contravenção Penal.
Nesse cenário, com o advento da Constituição de 1988, verificou-se a incompatibilidade da Lei Afonso Arinos com o mandado constitucional do artigo 5º, inciso XLII, o que resultou na sua não recepção, afinal, conforme já destacado, o racismo deve ser considerado “crime” e punido com “reclusão”.
Embora nosso primeiro diploma legal de enfrentamento ao racismo tenha pecado por ser excessivamente brando, seus tipos penais já anunciavam uma das principais características do racismo, qual seja, a segregação. Punia-se, tal como também pune a Lei 7.716/89, condutas que limitam direitos e liberdades públicas por conta de uma ideologia preconceituosa.
Segundo consta, o fato catalizador da primeira Lei Antirracista teria sido um episódio vivenciado pelo deputado federal mineiro, Afonso Arinos de Mello Franco, que ao entrar em uma confeitaria no Rio de Janeiro acompanhado de seu motorista negro, teve seu funcionário barrado em razão de sua cor.
Percebe-se, assim, uma marca do tratamento jurídico-penal conferido aos atos racistas, punindo condutas que inviabilizam o exercício de liberdades públicas em razão de preconceitos, destacando-se que com a Lei 7.716/89, de iniciativa do deputado Carlos Alberto Caó (“Lei Caó”), um grande militante a favor da igualdade racial, as penas impostas aos crimes passaram a observar o novo panorama constitucional, revogando tacitamente a Lei Afonso Arinos.
RIGORES PENAIS
Como visto acima, a Constituição da República elegeu o Direito Penal como um dos mecanismos de enfrentamento ao racismo, exigindo a punição da discriminação com pena de reclusão e estabelecendo a inafiançabilidade e imprescritibilidade dos crimes. Mas é possível verificar a previsão de outro rigor jurídico-penal que passa praticamente despercebido pela doutrina.
Ao criminalizar as condutas de “praticar”, “induzir” ou “incitar” a discriminação e o preconceito no artigo 20, da Lei 7.716/89, o legislador, por uma legítima opção de política criminal, transformou condutas acessórias que, em regra, caracterizam a participação, em crime autônomo, transformando o partícipe em autor no racismo.
Vale registrar que o crime em destaque foi inserido nesse diploma normativo por meio da Lei 9.459/97, criando, assim, uma espécie de infração residual, com previsões mais genéricas de enfrentamento ao racismo, sem detalhar as circunstâncias em que o ato discriminatório é perpetrado. Isso significa que esta figura só irá se caracterizar quando a ação não se enquadrar em outro tipo penal específico.
Como exemplo, citamos o caso em que a mãe de um aluno promove a discriminação no interior de uma escola, se posicionando de forma contrária à matrícula de um estudante negro. Considerando que o crime do artigo 6º, da Lei, exige um vínculo entre o sujeito ativo e o estabelecimento de ensino (crime próprio), a conduta em questão vai se enquadrar no tipo penal genérico do artigo 20.
Como se pode perceber, o crime é comum em relação ao sujeito ativo, não exigindo uma qualidade especial por parte do autor. A vítima é a coletividade que se enquadra na mesma condição da pessoa que sofre a conduta discriminatória.
Nos termos já mencionados, no artigo 20, caput, são punidas as condutas de “praticar” (executar, concretizar), “induzir” (fazer nascer a ideia) e “incitar” (instigar ou reforçar uma ideia já existente) a discriminação. Tendo em vista que os núcleos, “induzir” e “incitar”, caracterizam o que tecnicamente é chamado de “participação” (moral), a previsão destas condutas seria dispensável, pois, nos termos do artigo 29, do Código Penal, quem, de qualquer forma, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
Nesse cenário, aquele que, por exemplo, incitasse a exclusão de um candidato do concurso público por razões de homofobia, deveria responder como partícipe do crime do artigo 3º, da Lei. Contudo, o nosso legislador optou por punir a participação de forma autônoma nos crimes de racismo, criando, portanto, uma exceção pluralista à teoria monista do concurso de crimes, fazendo com que o partícipe responda como autor do delito tipificado no artigo 20, ora em estudo.
Sobre o tema, mister consignar o entendimento de NUCCI no sentido de que o tipo penal em questão viola o princípio da legalidade, na sua vertente da taxatividade, pois foi construído de forma muito aberta. Segundo o autor, “praticar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, na essência, representa todos os tipos previstos nesta Lei. Logo, a previsão feita pelo artigo 20 (praticar discriminação ou preconceito) não quer dizer nada e pode dizer respeito a absolutamente tudo”.1
NUCCI destaca, ademais, que nos núcleos “induzir” e “incitar” o agente seria partícipe de um dos crimes anteriormente estudados, o que tornaria o artigo 20 inaplicável na prática. Conforme já pontuado, não é este o nosso entendimento, haja vista que, em nosso sentir, o legislador, por uma opção legítima de política criminal, insista-se, resolveu punir a participação de forma autônoma nos crimes de racismo, transformando o partícipe em autor, o que nos parece emblemático, uma vez que confere protagonismo a cada ato individual de discriminação.
Por exemplo, se “A” instiga “B” a postar em suas redes sociais uma mensagem induzindo o boicote aos comércios de propriedade de judeus, “A” responde como autor do crime do artigo 20, caput, no núcleo “instigar” e “B”, se efetuar a postagem, também responde como autor do mesmo delito, mas no verbo “induzir”.
No mesmo sentido, se o cliente de um bar induzir o gerente a proibir o ingresso de uma pessoa negra no local, tendo em vista que o crime do artigo 5º, da Lei 7.716/89, é próprio e exige um vínculo entre o sujeito ativo e o estabelecimento, o gerente responde por esta figura, mas o cliente não será partícipe, respondendo como autor do crime previsto no artigo 20, caput, violando o núcleo “incitar”. Daí por que, em nossa percepção, a previsão genérica do artigo 20, da Lei, inviabilizou a caracterização da “participação” nos crimes de racismo, podendo haver, no máximo, um cenário de coautoria.
Conclui-se, portanto, que foi bem o legislador ao conferir protagonismo a cada conduta discriminatória, transformando em autor aquele que, em regra, seria um mero partícipe. Ao estabelecer essa previsão, a Lei qualifica o enfrentamento ao racismo, impondo mais um rigor jurídico-penal para aqueles que insistem em externar a sua visão preconceituosa e destorcida do outro. Mais do que isso, a opção legislativa é pedagógica ao dar destaque e autonomia aos atos racistas.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Vol.1. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 299.︎