Neste pequeno texto alinho, uma vez mais, algumas considerações a respeito do Projeto de Lei 03/2024, que altera regras da Lei 11.101/05.
O foco deste escrito é tão somente o agente econômico falido e sua participação no processo de falência. A respeito de outras questões, não menos relevantes (mandato de administrador judicial, a [nova] figura do gestor fiduciário; a representação processual da massa falida por gestor fiduciário no âmbito de incidente de desconsideração da personalidade jurídica e assim por diante)2, serão apresentadas em artigos científicos mais abrangentes, oportunamente.
Desde já é de se ressaltar que o Projeto de Lei 03/2024 não faz qualquer distinção entre pequena, média e grande falência3.
Primeiro ponto: a alteração de uma lei, a Lei 11.101/05, que ingressou no sistema jurídico brasileiro há menos de duas décadas – sendo relativamente nova, portanto – precisa(ria) ser debatida à saciedade. Aliás, a Lei 11.101/05 passou por recentíssima alteração em 2020, com novas disposições também acerca de alguns aspectos da falência. Agora, novamente, busca-se “aprimorar” o instituto da falência.
Diante de sucessivas reformas, de fato, nunca poder-se-á saber se, efetivamente, a lei cumpriu seu exato objetivo. A Lei 11.101/05, quer-se crer, ainda não passou - ao menos no que diz com a falência -, pelo indispensável teste do tempo.
Ainda há aspectos que provavelmente serão objeto de análise pelos tribunais. Um último detalhe: a almejada celeridade da falência já está escrita, como todas as letras, no art. 99, §3º, com a redação da Lei 14.112/2020.
Trocando em miúdos, estabelece a lei que o administrador judicial deverá em até 60 (sessenta) dias, a partir da assinatura da nomeação, apresentar o plano acerca da realização dos ativos, realização essa que deverá ocorrer em até 180 (cento e oitenta) dias a partir da juntada do auto de arrecadação. A lei sobre insolvência, desde 2020, já prevê a necessidade de juntada do “plano de realização do ativo”4.
Transcrevo aqui, uma vez mais – por reputar oportuno -, o pensamento esposado por Jeremy Waldron:
Um projeto de lei não se torna lei simplesmente sendo decretado, ocupando o seu lugar em Halsburry ou no livro de estatutos. Torna-se lei apenas quando começa a desempenhar um papel na vida da comunidade, e não podemos dizer qual papel será – e, portanto, não podemos dizer ‘qual lei’ foi criada -, até quando ela comece a ser administrada e interpretada pelos tribunais. Considerado um pedado de papel com o selo de aprovação do parlamento, um estatuto não é direito, mas apenas uma possível ‘fonte de direito’5
Volto, como sempre, ao entendimento do humanista Michel de Montaigne:
As leis extraem da aplicação e do uso sua autoridade; é perigoso levá-las de volta a seu nascimento6
Finalizo este ponto com a lição de Emilio Betti:
O objetivo da lei, em geral, é a convivência social, que não se pode dizer alcançado com a simples emanação, mas apenas com a aplicação dessa norma na vida de relação7
Segundo ponto: a propriedade dos ativos arrecadados na falência é do falido.
A propriedade é transferida a quem adquire bens quando da realização do ativo (art. 139 e seguintes da Lei 11.101/05. Não se olvide, por óbvio, a regra do at. 144-A, que trata da doação de bens8. Tanto é verdade que um dos efeitos jurídicos decorrentes da sentença que determina a abertura da falência do devedor é justamente a formação da massa falida (ver art. 103 da Lei 11.101/05, acerca da indisponibilidade, mas não perda de propriedade de ativos9).
De acordo com a regra do art. 110, §4º, da Lei 11.101/05, incumbe ao administrador judicial fazer a juntada, no prazo de 15 dias após a arrecadação, certidões de registro imobiliário, extraídas posteriormente à decretação da falência, com todas as indicações que nele constarem.
Em termos de registro imobiliário, averba-se a sentença de falência10.
Inexiste transmissão de propriedade do imóvel da falida, em decorrência da abertura da falência, por óbvio ululante11.
É equivoca, salvo engano, a redação do art. 82-C, §1º, incisos I e II, que estabelecem:
I - a aquisição dos bens da massa falida, pelos credores, mediante a utilização de créditos incontroversos;
II - a transferência dos bens da massa falida a uma nova sociedade,...
Os ativos arrecadados não pertencem à massa falida e sim à falida. A propriedade sobre todos os ativos arrecadados é da falida; com a abertura judicial da falência não se transmite propriedade. A massa falida tem a posse direita sobre os ativos arrecadados, tão somente.
Terceiro ponto: poucos dispositivos legais tratam da figura do agente econômico falido. Um exemplo: art. 82-C, §4º, que trata dos anexos ao plano de falência.
Conforme já escrevi alhures, a regra do art. 82-D não abre espaço para intimação da falida a fim de que aduza, querendo, sobre o plano de falência, plano esse relativo aos bens arrecadados e gestão de recursos financeiros. A não previsão legal de abertura de vista à falida a fim de que se pronuncie a respeito de plano sobre a destinação de bens seus ofende, crer-se quer, o princípio da ampla defesa e contraditório.
Na mesma esteira, a regra do art. 82-D também não estabelece a intimação da falida a fim de que se posicione sobre o plano de falência. Aliás, o §5º estabelece que:
O plano de falência não estará sujeito ao consentimento do falido ou, no caso de sociedade empresária, dos seus sócios ou administradores, assegurados, porém, os direitos de informação e de manifestação e a legitimidade para impugnação, exceto se o administrador judicial ou o gestor fiduciário estimarem que os ativos arrecadados serão superiores ao valor do passivo, nos termos do art. 153 desta Lei
A questão, salvo engano, não é nem sobre consentimento (ou não) da entidade falida, mas sim a respeito do direito de impugnação; a questão não é se há ativo com valor superior ao passivo. Independente do valor do ativo arrecadado, é de ocorrer a intimação da falida para querendo, impugne o plano de falência. É direito seu se posicionar sobre bens cuja propriedade ainda lhe pertence.
Em linhas gerais, a regra do art. 82-D, §5º, é no sentido de que: (i) o plano de falência não se sujeita ao consentimento da falida; (ii) há direito de informação e manifestação Porém, se o valor do ativo seja superior ao do passivo, não haverá direito de informação e manifestação.
O direito de manifestação e de impugnação deve ser respeitado, independentemente dos valores verificados no âmbito da falência. Caso não é de se “condicionar” o direito de manifestação ao valor dos ativos em comparação com o passivo.
A lei não prevê o direito recursal da entidade falida quanto a questão que envolve o plano de falência, o que se nos parece incorreto e vai contra os ditames constitucionais.
Prosseguindo, estabelece a lei que, após a aprovação do plano de falência (após, não antes!), o falido terá o prazo de 10 (dez) dias para apresentar eventuais oposições, assim como os credores. Entrementes, o §8º, do art. 82-D traz hipóteses exaustivas, de modo que o devedor não pode questionar, por exemplo, a alienação direita de ativos seus; o porquê da dispensa de avaliação de bens (não se ignora a regra do art. 22, inc. III, letra “h”).
Ressalte-se que o parágrafo único do art. 103 teve redação alterada.
Alguns aspectos relevantes: a fiscalização da falida agora é de forma “ampla”, vocábulo inexiste no texto legal atual; a intervenção da falida em processos judiciais é na qualidade de litisconsorte, sendo que o litisconsórcio também não é previsto atualmente12.
De qualquer forma, não obstante a interessante alteração da lei, a regra do art. 103, parágrafo único, não é observada quando se tem em mesa a analise do art. 82-D, do Projeto de Lei, por exemplo. Há certa restrição de direito do falido.
Para finalizar este pequeno texto, duas questões.
A primeira se refere à questão do “estigma” em relação ao “falido”. Aqui me refiro especificamente à pessoa física dos sócios, acionistas, titulares de sociedade limitada unipessoal e empresário individual. Não faço referência ao agente econômico (a pessoa jurídica) sob regime falimentar.
A abertura judicial da falência acarreta, não raro, a sensação de que o sócio/acionista é o responsável direito, único, pela derrocada da atividade econômica exercida. É considerado, não raro, mau gestor da empresa (atividade econômica).
Porém, a insolvência patrimonial nem sempre é “culpa” de sócio ou acionista, mas essa “culpa” persiste em muitas situações13. A crise sanitária mundial pode ser citada como exemplo de que nem sempre o fechamento da “empresa” é em decorrência de má gestão. Fatores externos podem ocasionar a crise patrimonial de caráter irreversível, que dá ensejo à abertura judicial da falência.
O insigne Rubens Requião bem resume a questão:
Muito embora o direito moderno tenha de há muito abandonado os conceitos antigos e medievais, que estigmatizavam o falido com a infâmia, tisnando seu nome, seria irrealismo social negar ou desconhecer que a declaração da falência do devedor abala profundamente a sua idoneidade moral e seu conceito social, com reflexos em sua família. Se a falência notoriamente não for consequência de fraude ou de dissipação do comerciante, no mínimo ser-lhe-á imputada a falência como fruto de sua inépcia, inabilidade ou incompetência. A sociedade humana não perdoa os fracassados14
Outra questão diz respeito aos credores envolvidos no processo de falência15.
Quanto ao “dualismo” pendular”, referido pelo insigne Fábio Konder Comparato na década de 1970, em sua clássica obra “Aspectos jurídicos da macro-empresa”, de fato, a legislação concursal, num determinado momento histórico “protege” os interesses do devedor insolvente [considerado de boa-fé e infeliz nos negócios]; noutro, o universo de credores, levando-se em conta, sobretudo, os passos da economia.
A redação de determinados enunciados legais também vai contra as linhas básicas do Processo Civil: Quaisquer incidentes de desconsideração da personalidade jurídica promovidos contra a sociedade falida ou os seus sócios, controladores e administradores (art. 82-A, §4º)...As decisões de desconsideração da personalidade jurídica contra sociedades falidas, empresas em recuperação judicial, seus sócios... (art. 82-A, §5º). Imediatamente vem à memória o entendimento de há muito esposado por Frederico A. Monte Simionato acerca da Lei 11.101/05: a nova Lei não é necessariamente ‘liberal’; trata-se de lima legislação ‘simplista e redigida de maneira atabalhoada’, bem ao gosto dos tempos atuais. Tratado de direito falimentar. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 3. Destaques no original da obra.︎
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Nessa esteira, pontuou Eronides A. Rodrigues dos Santos: Um breve levantamento das principais dificuldades decorrentes da imediata aplicação do PL 3/2024, feita por institutos especializados, revela diversas questões preocupantes. Primeiramente, a ausência de distinção entre casos grandes e os demais pode agravar as distorções existentes. https://www.conjur.com.br/2024-mar-26/urgencia-debate-e-democracia-dilema-do-pl-03-24-sobre-falencias-empresariais/. Acesso: 04/04/2024, às 13h28minutos.︎
Art. 22, inc. II, “j”: proceder à venda de todos os bens da massa falida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data da juntada do auto de arrecadação, sob pena de destituição, salvo por impossibilidade fundamentada, reconhecida por decisão judicial. A nova redação do Projeto de Lei: proceder à liquidação e venda de todos os bens da massa falida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, ou em outro que venha a ser estabelecido no plano de falência, contado da data da confirmação da sua nomeação, sob pena de destituição, salvo por impossibilidade fundamentada, reconhecida por decisão judicial.︎
A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 11-12. Grifos no original.︎
Os ensaios. Livro II. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 376. Sobre a lei: CLARO, Carlos R. Claro. Temas de recuperação judicial e falência. Curitiba: Editora Íthala, 2012.︎
Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 232.︎
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Ainda, caso inexiste interessado em receber bens a título de doação, estes voltam à mão da falida (art. 144-A, parágrafo único). Em havendo adjudicação de ativos, por parte dos credores (art. 145), de igual formal, haverá a transferência da propriedade. Em se tratando de bem imóvel, adquirido no âmbito da falência, o magistrado determina a transferência da propriedade junto ao registro imobiliário. É neste momento, portanto, que o falido perde a propriedade sobre seus bens imóveis, não antes. Por fim, o parágrafo único do art. 153 é no sentido de que: Sendo superavitária a falência e havendo projeção de saldo a restituir ao falido, este poderá decidir pela reversão desde logo de ativos sobejantes, respeitadas as reservas legais e contingências necessárias, ou optar pelo levantamento final da falência, com recuperação da gestão sobre a personalidade jurídica reabilitada. Ora, se os ativos eventualmente poderão voltar à falida, é sinal de que não perde a propriedade.︎
Com a formação da massa falida, esta passa a ter a posse direta sobre os bens arrecadados, enquanto a falida detém a posse indireta e a propriedade. A falência acarreta a posse, por parte da massa falida, não a propriedade, frise-se uma vez mais.︎
A respeito: art. 129, inc. VII, da Lei 11.101/05, que trata da ineficácia relativa de ato em relação à massa falida.︎
Sobre o tema: CLARO, Carlos R. A propriedade e a administração dos bens na falência. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, n. 66, maio/2010-ago/2010. Porto Alegre: AMP/RS, 2010.︎
Quanto ao litisconsórcio – ativo, passivo ou misto – tem a ver com o princípio da economia processual, fenômeno que decorre da lei processual civil.︎
A Lei 11.101/05 praticamente manteve a regra do vetusto Decreto-lei 7.661/45, em seu art. 63, inc. II. A regra do art. 22, inc. III, letra “d”, da Lei 11.101/05 é neste exato sentido. Apenas excluiu: “abri-la em presença deste ou de pessoa por ele designada”. O texto atual: receber e abrir a correspondência dirigida ao devedor, entregando a ele o que não for assunto de interesse da massa.︎
Curso de direito falimentar. 1º Volume. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 167.︎
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Os quais nem sempre têm interesses convergentes, obviamente, considerando inclusive as classes previstas no art. 83 da lei de regência. As classes de credores nem sempre têm interesses e objetivos comuns. No âmbito da falência sempre há interesses distintos, quer-se crer.︎