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Judicialização do direito à saúde

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  1. INTRODUÇÃO

A sociedade está, e sempre esteve, sujeita a transformações delineadas, sobretudo, pelo avanço das ciências e é necessário que o Direito acompanhe essa evolução, sendo sua função primordial oferecer soluções para possíveis crises sociais que venham a surgir.

Com o amplo leque de direitos fundamentais que surgiram positivados com a Constituição Federal de 1988, as demandas trazidas ao Judiciário aumentaram de uma forma nunca antes vista no direito brasileiro. Nesse contexto se insere a crescente judicialização do direito à saúde.

A sociedade brasileira conscientizou-se de sua condição como destinatária final da proteção estatal com o advento da Constituição Federal de 1988, que positivou expressamente em seu texto o direito à saúde, de forma integral. Nesse contexto, e diante da escassez de bens públicos, o judiciário tornou uma “porta de entrada” não oficial ao Sistema Único de Saúde para aqueles que visem o acesso integral a essas demandas. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça1, entre 2008 e 2017 o número de demandas relacionadas à saúde, cujo objeto refere-se à obrigatoriedade de prestar serviços relacionados ao Sistema Único de Saúde cresceu 130% no Brasil. De acordo ainda com o Ministério da Saúde, tais demandas têm impacto direto no orçamento do órgão.2

As demandas trazidas à juízo, no entanto, tanto por sua complexidade, quanto pela carência de legislação disciplinando os procedimentos ligados à saúde e qualidade de vida, encontram diversos óbices no que se refere à materialização dos direitos pleiteados.

De fato, é frequente que os operadores do direito deparem-se com questões em que o direito positivado, ou mesmo a ausência deste, colidam frontalmente com situações existenciais extremas. A discussão vai ainda mais além quando se questiona o papel do judiciário, que adentra cada vez mais no aspecto organizacional das políticas públicas, cuja execução no sistema brasileiro é encargo do Poder Executivo. Tal interferência gera debates em torno do Princípio da Separação dos Poderes e da legitimidade do ativismo judicial, que se mostra mais evidente em se tratando de demandas em que se pleiteia a materialização de direitos fundamentais sociais a cargo do Estado.

Ademais, é impossível discutir a obrigatoriedade do Estado de tutelar materialmente o jurisdicionado, garantindo-lhe o mínimo existencial para uma vida digna, sem adentrar no campo da reserva do possível, que analisa a capacidade financeira do Estado de arcar com os custos decorrente da efetiva concretização dos direitos sociais.

Aos tribunais superiores, ao apreciar os casos que são trazidos, cabe ponderar e determinar no caso concreto qual circunstância será mais relevante. Tais decisões constituem precedentes e norteiam os demais órgãos do judiciário, uma vez que frequentemente dotadas de generalidade e abstração face à carência de normas regulamentadoras. Inegável, portanto, a importância de seu estudo e evolução.

O presente trabalho nasce do interesse acerca de tais discussões, bem como da inegável importância do estudo e evolução da judicialização do direito à Saúde no Brasil, mormente no que tange à natureza desse direito e aos impactos das decisões judiciais na esfera administrativa face à imprescindibilidade das prestações materiais para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.

  1. O DIREITO À SAÚDE

    1. REGIME JURÍDICO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

Conforme ensina Robert Alexy, entre o conceito de norma fundamental e o conceito de direito fundamental há estreitas relações, de modo que quando existe em determinado ordenamento jurídico um direito fundamental, sempre há uma norma que garante este direito, já o contrário – conforme afirma o autor - é duvidoso.3

A ampliação e constante evolução dos direitos fundamentais dificulta atribuir-lhes um conceito simples e conciso. De modo geral, na expressão “direitos fundamentais do homem”, tal como adotada pela Magna Carta, o qualificativo “fundamentais”, indica de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive.4 A nomenclatura remete, ainda, aos direitos da pessoa humana explícita ou implicitamente reconhecidos pela ordem constitucional vigente em determinado Estado.

Os direitos fundamentais figuram na ordem jurídica como direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva de forma concomitante, tendo em vista que, enquanto direito subjetivos, concedem aos titulares a prerrogativa de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Em seu aspecto objetivo, como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais integram a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito, democrático.5 Por se relacionarem intimamente com o momento histórico vivido pela sociedade, e em face de seu aspecto principiológico, a ausência de positividade não é capaz de tirar-lhes a perspectiva.

Os direitos sociais constituem espécie de direitos fundamentais e emergiram do anseio por concretizar o ideal de igualdade, exprimido desde a Declaração Universal dos Direito dos Homem, em 1948.

Segundo José Afonso da Silva,

“Podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se conexionam com o direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que por sua vez, porporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.”6

Os direitos fundamentais sociais são compreendidos como normas programáticas plasmadas no texto constitucional, funcionando como diretrizes para as funções do estado que devem ser concretizadas.7 Essas normas deixaram de ser apenas pretensões, passando a ser verdadeiras prerrogativas garantidas pela Constituição de 1988, sendo oponíveis ao próprio Estado e a outros indivíduos. Isto significa que, além da dimensão negativa, contam com a dimensão prestacional por parte do Estado.8

A previsibilidade dos direitos fundamentais sociais na Constituição consagrou o objetivo do Estado de concretizar o Estado Social de Direito, que pressupõe a sua atuação e interferência a fim de possibilitar o preenchimento de lacunas e o alcance da dignidade e mínimo existencial pelo indivíduo.

Frequentemente entendidas como normas programáticas, ou seja, como objetivos a serem alcançados futuramente pelo Estado, o ordenamento jurídico brasileiro enfrenta, desde o reconhecimento de tais direitos, óbices à sua efetiva concretização. Para garantir essa atuação positiva é necessário que sejam asseguradas condições ao Poder Público, mormente no que diz respeito à questão orçamentária e organizacional. Do mesmo modo, é imprescindível que sejam assegurados ao cidadão meios de exigir a efetivação de seus direitos.

Nesse sentido, um dos principais meios de concretização das prestações sociais ocorre por intermédio do Poder Judiciário. É notável o aumento de demandas envolvendo direitos sociais, o que acarreta também a crescente discussão acerca da interferência do judiciário na atividade organizacional do Poder Executivo, responsável por assegurar mínimo existencial à sociedade. Tal discussão engloba ainda a questão da legitimidade do ativismo judicial e desrespeito ao princípio da separação dos poderes.

  1. DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Na Constituição Federal brasileira, o direito a saúde materializa uma norma formal do direito fundamental:

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”9

A Constituição Federal de 1988, de forma inédita, inseriu a saúde no rol de direitos sociais. Da mesma forma, ao tratar de Seguridade Social (artigos 196 a 200), a carta magna destinou uma seção inteira somente a saúde, ganhando grande destaque no ordenamento jurídico brasileiro. Anteriormente ao atual diploma, os textos constitucionais brasileiros referiram-se à saúde apenas para determinar competências, sem qualquer aprofundamento na previsão. A consagração desse direito foi decorrência de proposta de emenda popular apresentada à Assembleia Constituinte por sanitaristas, como consequência da VIII Conferência Nacional de Saúde.10

Do mesmo modo, decorre do artigo 5º, caput, da CF/88 que a saúde é um componente obrigatório na manutenção da vida, seja como elemento existencial, seja como agregado à sua qualidade. Assim, a proteção dos direitos à vida estaria esvaziada se não houvesse tutelado o direito à saúde.

Uma das principais características dos direitos sociais, conforme já abordado, diz respeito a sua indeterminação conceitual, o que abre espaço a diversas interpretações, principalmente por parte do judiciário, e para o consequente aumento de demandas envolvendo a obrigação estatal de prestações materiais.

O conceito amplo de saúde, que foi adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) abrange não só a ausência de doenças, mas também a presença das condições de vida. Assim, de acordo com o que preceitua a OMS, “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”.11 Segundo esta definição o conceito de saúde considera não apenas a ausência de doenças, mas também as condições ambientais, econômicas e sociopolíticas necessárias para assegurar o bem-estar do cidadão.

Da mesma forma, denota-se que a saúde está estritamente relacionada ao bem-estar social, interligada com os direitos humanos, ao constatar que apesar de não expressamente positivada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o direito a saúde se encontra em seu texto como elemento implícito condicionante para o bem-estar social:

“1.Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.

2.A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma protecção social.”12

A amplitude da definição permite interpretações que por vezes não condizem com os recursos disponíveis pelo poder público, tais como a garantia de saúde plena. Além disso, para garantir o direito à saúde na generalidade em que está positivado, o Estado deve buscar a prevenção, promoção e recuperação da saúde sob diferentes perspectivas. No âmbito coletivo, deve-se buscar o implemento e a concretização de políticas públicas prévias que garantam à população de forma geral o direito à saúde e ao bem-estar. No âmbito individual, o poder público deve ser capaz de proporcionar ao cidadão cuidados sanitários indispensáveis e proporcionar-lhes o acesso, sempre que necessário, a medicamentos comprovadamente eficazes e aptos a restabelecer qualidade de vida.

Do direito do cidadão de obter do Estado as prestações necessárias a assegurar-lhe o gozo do direito é vida da forma mais digna possível, é que se extrai a importância de ter o direito à saúde reconhecido como direito fundamental social positivado na Constituição Federal, tendo ocorrido importantes avanços no que diz respeito ao tema desde então.

No entanto, dificuldades que se instalam principalmente na amplitude do conceito e na capacidade do Estado de prover satisfatoriamente as demandas que lhe são apresentadas contribuem diretamente para a ingerência cada vez maior do judiciário para a implementação material do direito à saúde no Brasil.

  1. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – SUS

Ao entender o direito à saúde no contexto dos direitos fundamentais sociais, resta clara a obrigatoriedade do Estado, que neste sentido abrange todas as suas esferas federativas, de assegurar à população acesso de maneira universal e igualitária.

Para promover esse acesso, foi criado o Sistema Único de Saúde – SUS, que surgiu como resultado de uma reforma sanitária ligada a movimentos sociais e foi instituído por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988.13 Atualmente, o SUS é o maior responsável pela promoção de políticas de saúde pública no país, beneficiando cerca de 180 milhões de brasileiros e realizando por ano cerca de 2,8 bilhões de atendimentos, desde procedimentos ambulatoriais simples a atendimentos de alta complexidade, como transplantes de órgãos.14

Segundo Rizzoto15, o SUS foi instituído com a intenção de superar a divisão no campo da saúde existente desde a Era Vargas em 1930, entre o modelo médico assistencial privatista que privilegiava a medicina curativa em detrimento de ações preventivas e promocionais de saúde, e o setor público, o qual ficava em segundo plano na agenda governamental.

Nos termos da Constituição Federal, O SUS constitui um sistema único, descentralizado, responsável por garantir atendimento integral e com participação da população:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Além da previsão constitucional, o SUS encontra fundamento legal na Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/90), que estabelece diretrizes para seu funcionamento e permite a participação privada no sistema, de forma complementar e com vistas a diminuir a escassez de recursos públicos.

Ainda no plano infraconstitucional, o SUS é disciplinado também pela Lei n. 8.124/90, que disciplina a participação da comunidade na gestão do Sistema e a aplicação de recursos financeiros na garantia do direito à saúde. Nas palavras de Nádia Marques:

“Podemos destacar que os principais marcos normativos após a Constituição Federal são: a Lei 8078/90, que dispõe sobre a proteção do consumidor e organiza o Sistema Nacional de Proteção ao Consumidor; a Lei 8080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, organizando o Sistema Único de Saúde; Decreto nº 109/91, que reorganiza o Ministério da Saúde, trazendo para sua estrutura o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social; a Portaria 1565/94, que define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, estabelecendo as bases para a descentralização dos serviços e ações; a Lei 9782/99, que cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária; o Decreto 793/93, que estabelece a obrigatoriedade de colocação da denominação genérica de medicamentos e a Lei 9787/99, que transforma parte de suas fundamentações em Lei”.16

No que diz respeito à política de assistência farmacêutica, muito antes da criação do SUS já existiam Decretos e Portarias contendo previsões normativas a fim de assegurar o fornecimento de medicamentos essenciais. Dentre eles, cabe citar o Decreto nº 53.621/1964, que dispunha sobre uma lista básica de produtos de uso farmacêutico para orientar as compras do governo federal, o Decreto nº 68.806/1974, que criou a Central de Medicamentos (CEME), a Lei nº 6.259/1975, que institui o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica e a Portaria 514/MPAS/GM, de 1976, que homologa a Relação Nacional de Medicamentos Básicos.17

Com a previsão constitucional, que trouxe como consequência a vinculação direta da atuação estatal à prestação dos direitos sociais, o Poder Público assumiu um aumento de despesa exponencial e não diretamente proporcional ao gerenciamento do Estado no que tange a sua receita e à organização fiscal.18

O resultado da maior atenção dada ao assistencialismo, conforme se aferiu, resultou também em maior evolução legislativa, de cunho principalmente regulamentador, de forma que o conceito de saúde permaneceu indeterminado. Em razão da indeterminação restou aos órgãos judiciários promover a expansão interpretativa do conceito, sendo possível afirmar que a evolução do direito deu-se paralelamente à evolução do próprio conceito de saúde.19

De fato, a amplitude do conceito de saúde e a indeterminação do alcance e extensão dos direitos fundamentais sociais ensejam o incremento da atividade do Poder Judiciário na seara da garantia do direito à saúde pelo Estado.

Outrossim, a atribuição cada vez maior do papel de garantidor do direito fundamental à saúde ao judiciário decorre também do fato de que embora consista em um sistema grandioso, o SUS enfrenta uma série de desafios e limitações, seja de ordem financeira, seja referente à má-administração de seus recursos, o que expõe a ineficiência do Poder Público em promover a universalidade do sistema.

“Um dos principais desafios para o Sistema Único de Saúde é resolver os problemas histórico-estruturais do sistema de saúde, com destaque para a superação das profundas desigualdades em saúde, com o respeito à diversidade regional e local, vindo a acarretar uma mudança substantiva no papel do Estado nas três esferas de governo, o fortalecimento da gestão pública com finalidades diferenciadas no âmbito nacional, estadual e municipal, a definição de competências para cada esfera de governo e o desenvolvimento de ações, no intuito de articular princípios nacionais de política com decisões e parâmetros locais e regionais.”20

  1. JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

    1. A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

Conforme já se aferiu, os direitos sociais, ou segunda geração (dimensão) de direitos fundamentais, constituem prestações positivas a serem implementadas pelo Estado, com o escopo de reduzir as desigualdades socioeconômicas, e proporcionar melhores e mais adequadas condições de vida.

Como característica principal, os direitos sociais impõem ao Estado a obrigação de agir, garantindo a existência e o exercício de um núcleo mínimo direitos a todos os participantes da sociedade, tais como saúde, educação, moradia, etc.

Tradicionalmente atribuiu-se às normas sobre direitos sociais natureza programáticas, ou seja, normas que “veiculam programas a serem implementados pelo Estado, visando à realização de fins sociais.” 21 Contudo, é certo que o conteúdo de tais normas devem ser dotados de certo grau de imperatividade, tendo em vista que não cumpre à uma Constituição que se entenda normativa o elenco de normas tendente a apenas recomendar, sugerir, e representar um simbolismo destoado de qualquer eficácia.22

Dessa forma, em decorrência da força normativa atribuída às normas constitucionais, a doutrina entende que os direitos sociais, enquanto normas constitucionais, são dotados de aplicabilidade e eficácia, não sendo meras recomendações. Segundo Andréas Krell:

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“As normas programáticas sobre direitos sociais, que hoje encontramos na grande maioria dos textos constitucionais dos países europeus e latino-americanos definem metas e finalidades, as quais o legislador ordinário deve elevar a um nível adequado de concretização. Essas ‘normas-programa’prescrevem a realização, por parte do Estado, de determinados fins e tarefas. Nesses termos, elas não representam meras recomendações (conselhos) ou preceitos morais com eficácia ética-política meramente diretiva, mas constituem Direito diretamente aplicável.”23

Nesse sentido, tais normas possuem aplicação imediata (art. 5º, §1º da CRFB):

“Em primeiro lugar, significa que elas são aplicáveis até onde possam, até onde as instituições ofereçam condições para seu atendimento. Em segundo lugar, significa que o Poder Judiciário, sendo invocado a propósito de uma situação concreta nelas garantida, não pode deixar de aplicá-las, conferindo ao interessado o direito reclamado, segundo as instituições existentes.”24

Conclui-se ser imprescindível a atuação do Poder Público para a concretização desses direitos, o que deve ocorrer por meio do estabelecimento e implementação de políticas públicas pelos Poderes Legislativo e Executivo. A esse respeito ensina Daniel Sarmento:

“O Estado incorpora funções ligadas à prestação de serviços públicos. No plano teórico, a sua atuação passa a ser justificada também pela necessidade de promoção da igualdade material, por meio de políticas públicas redistributivas e do fornecimento de prestações materiais para as camadas mais pobres da sociedade, em áreas como saúde, educação e previdência social.”25

Não obstante, o Poder Público falha em projetar boas e eficientes políticas públicas, o que repercute na concretização dos direitos fundamentais, surgindo a necessidade de intervenção do Judiciário, a fim de zelar pelos direitos não atendidos completa ou suficientemente.

  1. RESERVA DO POSSÍVEL

Todos os direitos dependem, de uma forma ou de outra, de gastos públicos para a sua materialização, por isso, estão sujeitos à chamada cláusula de reserva do possível. Esta pode ser compreendida como uma série de limitações e restrições fáticas e jurídicas oponíveis, ainda que não de forma absoluta, à materialização dos direitos fundamentais de cunho prestacional.26

Em outras palavras, tal cláusula constitui uma limitação à implementação dos direitos sociais, pois, enquanto insuficientes os recursos financeiros do Estado, esses direitos somente serão concretizados na medida exata em que isso for possível.

Apesar de não permitir ao Poder Público eximir-se de suas obrigações constitucionais sob a alegação genérica de insuficiência financeira, a reserva do possível tem sido utilizada como salvaguarda do Estado nas demandas judiciais versando sobre a prestação do direito à saúde.

Nesse diapasão a alegação estatal trazida pela Fazenda Pública acerca da impossibilidade de prestação efetiva do direito à saúde em face da carência do orçamento público é, muitas vezes, exposto genérica e concisamente, de forma a não evidenciar e comprovar realmente a referida escassez de dinheiro público.

Numa crítica ao Poder Público, Andréas Krell evidencia que o princípio da reserva do possível constitui uma falácia, pois,

“Se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transportes, fomento econômico, serviço da dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade e saúde.” 27

Contudo, é inegável que as necessidades são infinitas e os recursos disponíveis são finitos, dessa forma, é preciso reconhecer que há sim um limite material imposto ao Estado na prestação dos direitos fundamentais, pois, de nada adiantará a previsão normativa e a imposição constitucional de concretização desses direitos, especialmente do direito à saúde enquanto expressão do próprio direito à vida, se não houver dinheiro para custeá-los.

“Dada a íntima conexão desta problemática com a discussão em torno da assim designada “reserva do possível” na condição de limite fático e jurídico à efetivação judicial (e até mesmo política) de direitos fundamentais – e não apenas dos direitos sociais, consoante já frisado – vale destacar que também resta abrangida na obrigação de todos os órgãos estatais e agentes políticos a tarefa de maximizar os recursos e minimizar o impacto da reserva do possível. Isso significa, em primeira linha, que se a reserva do possível há de ser encarada com reservas, também é certo que as limitações vinculadas à reserva do possível não são, em si mesmas, necessariamente uma falácia. O que tem sido, de fato, falaciosa, é a forma pela qual muitas vezes a reserva do possível tem sido utilizada entre nós como argumento impeditivo da intervenção judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais, especialmente de cunho social.”28

Na mesma linha, a reserva do possível não pode sequer ser discutida quando se trata de garantir as condições materiais essenciais à dignidade humana (o mínimo existencial), pois estas constituem a prioridade e o fim constitucional do Estado, devendo este compatibilizar o dispêndio de recursos públicos à consecução desses fins:

“A limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. (...) Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. (...) A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-á estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.” 29

Faz-se necessária, portanto a análise do que seriam essas condições materiais mínimas de existência, visto que a dificuldade estatal decorrente da limitação dos recursos financeiros disponíveis não afasta o dever constitucional do Poder Público de efetivar os direitos fundamentais, especialmente aqueles garantidores do mínimo necessário para uma existência digna.

  1. MÍNIMO EXISTENCIAL

Segundo Ingo Sarlet, pode-se conceituar a dignidade humana nestes termos:

“Qualidade intrínseca e distintiva de todo ser humano que o faz merecedor de respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável.” (grifo nosso) 30

Entendido como o núcleo material do postulado da dignidade humana, o mínimo existencial consiste no piso mínimo de direitos que atendem e concretizam as necessidades básicas indispensáveis à existência digna.

Não obstante, essa proteção vai além da garantia de mera sobrevivência do ser humano, o propósito da teoria do mínimo existencial é assegurar uma existência física, espiritual e intelectual do indivíduo31, ou seja, representa um dever do Estado de agir, por meio da prestação de serviços ou de impedir que direitos dos cidadãos sejam prejudicados, proporcionando uma vida plena, digna e com qualidade.

Como preleciona Ana Paula de Barcellos,

“Há um núcleo de condições materiais que compõe a noção de dignidade de maneira tão fundamental que sua existência impõe-se com uma regra, um comando biunívoco, e não como um princípio. Ou seja: se tais condições não existirem, não há o que ponderar ou otimizar, ao modo dos princípios; a dignidade terá sido violada, da mesma forma como as regras o são.”32

Frente à dimensão do princípio da dignidade humana, imprescindível definir o que compõe esse seu núcleo mínimo essencial. Para a maior parte da doutrina, tal núcleo revela as condições materiais básicas de vida estariam diretamente ligadas aos direitos à saúde e à autonomia individual (alimentação, educação, moradia, vestuário, etc.). Há também entendimentos no sentido de que o conteúdo do conceito é relativo, não podendo ser definido abstratamente, sem levar em consideração situações concretas e específicas.33

Isto posto, ainda que não haja consenso sobre qual seria o conteúdo mínimo e exigível do princípio da dignidade, cita-se a formulação de Ana Paula de Barcellos (2011, p.302), para quem o mínimo existencial encerra quatro elementos judicialmente exigíveis:

“O mínimo existencial que ora se concebe é composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação básica, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça. (...) Esses quatro pontos correspondem ao núcleo da dignidade da humana a que se reconhece eficácia jurídica positiva e, a fortiori, o status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário.”34

A negativa de uma vida saudável, em diversos graus, consiste em violação ao mínimo existencial e, em última análise, à dignidade da pessoa humana, o que confere ao poder público um status de omissão ilícita, ocasião em que abre-se espaço para que o Judiciário atue na efetivação do direito à saúde.

  1. EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE POR MEIO DA JUDICIALIZAÇÃO

O direito à saúde, enquanto direito fundamental social subjetivo, equivale a um conjunto de prestações de saúde, exigíveis por força e em consequência da Constituição, a que os poderes constituídos estão obrigados a colocar à disposição das pessoas.35

Essas prestações são disponibilizadas por meio de políticas públicas, entretanto, mesmo possuindo um sistema (SUS) criado para garantir o acesso à saúde de forma universal e igualitária, a prestação estatal ainda é falha e omissa.

Em razão dessa omissão legislativa e/ou dessa incapacidade administrativa na implementação das políticas públicas existentes para a materialização do direito à saúde na sociedade, ao cidadão não resta alternativa senão recorrer à tutela jurisdicional.

Assim, fica a cargo do Poder Judiciário, após provocação, a tarefa de preencher as lacunas e sanar a ineficiência das instâncias políticas tradicionais o Congresso Nacional e o Poder Executivo36, o que resulta no fenômeno da judicialização da saúde, tendo em vista que o acesso à justiça é o elemento instrumental e indispensável da eficácia positiva reconhecida aos elementos materiais do mínimo existencial. 37

Contudo, a temática da saúde é complexa e as críticas à efetivação do direito à saúde por meio do cumprimento de decisões judiciais são variadas, visto que ainda estão sendo sedimentados os parâmetros a serem utilizados.

Dentre as muitas críticas apresentadas, Barroso (2007) cita que as mais freqüentes talvez sejam a atribuição de natureza programática às normas garantidoras do direito à saúde e a limitação orçamentária do Estado, expressa na cláusula de reserva do possível.38

Além disso, também a separação dos poderes tem sido utilizada como crítica ao conhecimento e deferimento, pelo Poder Judiciário, de prestações positivas a serem custeadas pelo Poder Público, em especial o direito à saúde.

Cumpre ressaltar que, na medida em que o Judiciário figura como responsável pelo resguardo de direitos e por assegurar o respeito ao ordenamento jurídico nas hipóteses de omissão ou inércia dos Poderes Públicos, não há que se falar em ilegítima atuação do órgão judicante no tocante à obrigação de assegurar o mínimo existencial,39 e modo que não há macula à legitimidade democrática (princípio majoritário) tampouco ao princípio da separação dos poderes.

A intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações à Administração Pública para que forneça gratuitamente medicamentos em uma variedade de hipóteses, procura realizar a promessa constitucional de prestação universalizada do serviço de saúde.40

Além disso, a ideia de que as normas de direitos sociais, por terem natureza programática, são insuscetíveis de criar direitos subjetivos plenamente exigíveis judicialmente vai de encontro à doutrina da efetividade41. Ora, com o reconhecimento da força normativa da Constituição e pautado na ideia de que todas as normas constitucionais são dotadas do atributo da imperatividade, ainda que em diferentes medidas, e diante do caso concreto, havendo o seu descumprimento é possível exigir judicialmente a sua efetivação.

O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (grifo nosso) 42

Por fim, crucial reiterar que o argumento de que os direitos prestacionais exigem ações positivas do Poder Público e, portanto, um maior dispêndio de recursos públicos com o qual o Estado não pode arcar não se sustenta.

Nos termos constitucionais, garantir condições materiais essenciais à dignidade humana (mínimo existencial) é a prioridade do Estado brasileiro. Essa prioridade constitucional haverá de refletir na forma como são gastos os recursos públicos, que deverão ser canalizados prioritariamentente para a prestação dos serviços e/ou a entrega de bens necessários a produzir, no mundo dos fatos, a assertiva referida: garantir condições materiais essenciais à dignidade humana. E, se é assim, a discussão sobre a reserva do possível não deveria ser sequer substancialmente relevante nesse ambiente, já que se está cuidando da prioridade. 43

Nessa perspectiva, a Constituição estabelece os fins prioritários e objetivos fundamentais a serem obrigatoriamente atingidos pelos Poderes Constituídos, entre eles está a preservação da dignidade humana a partir da concretização dos direitos a ela inerente. Como meios para atingi-los a Constituição é prevista a despesa pública, orçada com o intuito de fazer gente aos gastos prioritários do Estado, entre os quais figura soberamente a saúde pública.

  1. ANÁLISE DE CASOS

    1. EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF E STJ E CASOS CONCRETOS

Conforme se aferiu, a judicialização da saúde no Brasil é fenômeno recente, resultado do aumento da inclusão social obtido nas últimas décadas após o advento da Constituição Federal de 1988.44

As primeiras demandas atinentes ao direito à saúde chegaram às cortes superiores na década de 1990, nas quais se almejava basicamente o direito de acesso ao fornecimento de medicamentos pelo poder público. Desde então, e principalmente a partir do início dos anos 2000, o número de ações judiciais relacionadas ao direito à saúde cresceu exponencialmente.

Em razão da alta demanda, em 2009 foi convocada audiência pública pelo Supremo Tribunal Federal a fim de discutir parâmetros de atuação do judiciário em relação ao direito à saúde. Na ocasião, analisou-se a obrigação do Estado de (a) fornecer prestação de saúde prescrita por médico não pertencente ao quadro do Sistema Único de Saúde (SUS), (b) custear prestações de saúde não abrangidas pelas políticas públicas existentes, (c) disponibilizar medicamentos e tratamentos experimentais não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou não aconselhados nos protocolos clínicos do SUS e (d) fornecer medicamento não licitado e não previsto nas listas do SUS.45

Já em 2010, o Conselho Nacional de Justiça editou a Regulamentação 31/201046, por meio da qual regulamentou medidas de apoio ao Judiciário no que diz respeito à efetividade das demandas relacionas à saúde.

A complexidade que envolve o direito à saúde reside, principalmente, na infinidade de ações passíveis de serem manejadas, aliada à carência de regulamentação sobre integralidade de assistência, nos termos do artigo 198, inciso II, da Constituição Federal de 1988. Por esta razão, e em decorrência da cláusula de inafastabilidade de jurisdição, elevou-se o Judiciário ao papel de estabelecer os limites para estas demandas, bem como uniformizá-las, o que criou na consciência judiciária brasileira, uma “espécie de normativa a ser seguida para as ações que tratam do tema”47.

Nesse diapasão, cumpre discorrer brevemente acerca da evolução jurisprudencial relativa às demandas sobre direito à saúde nos tribunais mais importantes do país, sendo possível apontar ao menos três fases distintas e principais.

  1. PRIMEIRA FASE

A primeira fase, iniciada em meados da década de 90 (após o advento da Constituição Federal de 1988, é caracterizada pela prevalência das teses da Fazenda Pública, no sentido da impossibilidade de concessão das demandas judicializadas relacionadas ao direito à saúde por parte do Poder Público. O primeiro precedente do STJ que analisou diretamente um pleito de fornecimento de medicamentos pelo SUS foi o Recurso em Mandado de Segurança n. 6564/RS48, julgado em1996 pela corte.

No caso concreto, a impetrante foi uma menor portadora de síndrome de hipoventilação alveolar central. Internada desde o nascimento, a impetrante pleiteou a necessidade de obter um aparelho marca-passo importado dos Estados Unidos, no valor à época de aproximadamente cinquenta mil dólares. Parte do valor necessário para adquirir o marca-passo foi arrecadado por meio de campanha publicitária, e com o mandamus objetivava-se que a diferença faltante fosse custeada pelo Estado.

Anteriormente à impetração do mandado de segurança, em 1994, vários requerimentos foram encaminhados ao governador solicitando a complementação da diferença, todos negados sob o fundamento da ausência de previsão legal.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, igualmente, denegou a segurança. A fundamentação da negativa considerou que o direito à saúde e as normas que o garantiam na Constituição Federal tinham natureza pragmática49, de modo que careciam de maior regulamentação pelo legislador. Devido a essa carência legislativa, faltava à parte a certeza e liquidez indispensáveis. Nas palavras do ministro Demócrito Reinaldo, relator do feito:

“In casu, consoante se observa da inicial e demais peças do processo, a impetrante invoca, a favor de sua pretensão, regras constitucionais (art. 6°, 195, 196, 204 e 227) que, na lição dos constitucionalistas, constituem “normas programáticas”, ou, em outras palavras, “normas de eficácia limitada”. Essas normas, embora tenham imediata aplicação, “não têm força para desenvolver-se integralmente” – ou não têm eficácia plena, posto que dependem, para ter incidência sobre os interesses tutelados, de normatividade ulterior – ou de legislação complementar.50

A negativa foi fundamentada ainda na impossibilidade de realização de despesa sem previsão expressa na lei orçamentária.51

Denota-se que diante de um caso envolvendo a necessidade de prestação material para satisfazer de forma adequada o direito à vida, e, principalmente, à qualidade de vida, o STJ utilizou-se de pelo menos dois argumentos restritivos da possibilidade de satisfação da prestação de direitos sociais por meio do judiciário.

Por cerca de uma década, essa foi a visão tradicional das cortes brasileiras no que diz respeito à judicialização de questões envolvendo direito à saúde.

  1. SEGUNDA FASE

Na segunda fase, mais propriamente a partir do ano 2000, foi perceptível a mudança de entendimento no sentido de buscar resguardar mais vigorosamente o princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, estabeleceu-se a discussão, já abarcada, entre a necessidade de promover o mínimo existencial e o dever de respeitar e equilibrar os limites impostos pela reserva do possível.

Nesse período, foi possível acompanhar a superação de algumas teses comumente elencadas pela Fazenda Pública.

No Superior Tribunal de Justiça, a alteração de posicionamento concretizou-se com o julgamento do Recurso em Mandado de Segurança n. 11183/PR52. No caso, a impetrante pretendia o fornecimento de medicamento para tratamento de grave doença neurológica – esclerose lateral amiotrófica, o qual foi denegado pela justiça estadual.

Diante da negação em primeira instância, houve recurso para o supracitado tribunal, fundamentado na existência de prova pré-constituída da necessidade do medicamento e na preponderância do direito à vida. O recurso foi acolhido, fundamentando-se no grave estado de saúde da recorrente, na eficácia comprovada do medicamento para melhorar a qualidade de vida, ainda que de forma parcial e na impossibilidade de questões financeiras do país sobreporem-se ao direito à vida, em outras palavras, no caso concreto entendeu-se pela preponderância de garantir o mínimo existencial à paciente em detrimento da alegada reserva do possível:

“Penso que os argumentos articulados pelo Estado do Paraná, além de serem juridicamente inconsistentes, revelam o total desprezo por parte das autoridades públicas encarregadas da saúde no país. O Estado/recorrido preocupa-se, nitidamente, em contrapor-se à situação delineada nos autos com teses jurídicas de custosa credibilidade (desestabilização do Estado de Direito; quebra orçamentária; anarquia dos poderes; falência institucional) para negar à ora recorrente o sagrado direito à sobrevivência”.53

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, emitiu também diversos entendimentos que contribuíram para sedimentar a ideia da prevalência do direito à vida e da necessidade garantir a dignidade da pessoa humana em detrimento alegada ausência de possibilidades materiais do Estado. Uma das questões trazida a esse juízo foi o julgamento do Recurso Extraordinário n. 195.192/RS26, em 2000, originariamente um mandado de segurança na instância a quo. No caso, um portador de fenilcetonuria pleiteou, por meio de MS, o fornecimento de medicamento importado dos Estados Unidos. A ordem foi concedida pelo Tribunal de Justiça, motivo pelo qual a Fazenda Pública recorreu sob o argumento da natureza pragmática do direito à saúde previsto no artigo 196 da Constituição Federal, de modo que o pleito careceria de liquidez e certeza. O recurso não foi conhecido, no entanto, o seu relator, ministro Marco Aurélio, teceu na ocasião algumas considerações:

“No caso, restou constatada enfermidade rara e que alcança cerca de vinte crianças em todo o Estado do Rio Grande do Sul com sérios riscos para a saúde e desenvolvimento das mesmas. O Estado deve assumir as funções que lhe são próprias, sendo certo, ainda, que problemas orçamentários não podem obstaculizar o implemento do que previsto constitucionalmente.”54

Outro caso notório julgado pelo Supremo Tribunal Federal no período foi o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271286/RS55. No caso, houve apreciação do mérito, no qual exarou-se a necessidade em tratar a saúde como prerrogativa indisponível.56

O objeto da discussão envolveu o fornecimento de medicamentos pelo Estado para pacientes soropositivos. Formou-se o entendimento que a obrigação de fornecer tais medicamentos para pacientes financeiramente necessitados era solidária entre os entes federados estado e o munícipio, concretamente, entre o estado do Rio Grande do Sul e o município de Porto Alegre. Na época, a obrigação de fornecer medicamentos aos portadores de HIV57 já havia sido positivada na Lei n. 9.313/1996. O município de Porto Alegre recorreu sob o fundamento de violação do artigo 167, inciso I, da Constituição Federal de 198858. Argumentou ainda que a Lei 9.313/1996 era classificada como de eficácia limitada, carecendo de regulamentação para que pudesse ser aplicada. Por esta razão, aduziu que o acordão afrontara o art. 167, III59, e parágrafo 5º60, além do artigo 5º, II61, todos da Constituição Federal.

O ministro relator do julgamento, Celso de Mello, ratificou a fundamentalidade do direito à saúde, que ostenta verdadeira evolução dos direitos básicos, configurando dever de prestação positiva que só poderá ser efetivado pelas instâncias governamentais quando estas promoverem em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional.62 Ainda, o ministro ressaltou que a essencialidade dos direitos discutidos impossibilitada retirar do judiciário a possibilidade de ordenar pleitos que almejassem garantir a efetivação do direito à saúde.

“Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar o Ministério Público e o Poder Judiciário naquelas hipóteses em que órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.”63

Denota-se, portanto, que o STF permeou sua decisão na obrigação do Estado de concretizar o direito à saúde, considerando a inércia intolerável omissão.

  1. TERCEIRA FASE

A partir dos anos 2000, a judicialização de questões relacionadas à saúde ganhou contornos peculiares, pois passou-se a analisar pedidos de ordem técnica acerca de medicamentos experimentais, produtos não registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por exemplo. A nova face das demandas gerou ao menos três eventos importantes para a judicialização da saúde no Brasil: (a) a realização da audiência pública no STF, em 2009; (b) o julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175, em 17 de março de 2010; e (c) a edição da Lei n. 12.401/2011.64

Julgado importantíssimo do período diz respeito ao Mandado de Segurança n. 8895/DF65, julgado em 2004, que versou acerca de um pedido para que o SUS custeasse tratamento de uma rara doença oftalmológica, conhecida como retinose pigmentar, em Cuba. Conforme aduziu o impetrante, apenas país oferecia tratamento adequado e eficaz para a doença.

A ministra relatora, Eliana Calmon, em sua decisão, explicitou a ausência de comprovação da eficácia do tratamento, e que, por conta dessa posição, o Ministério da Saúde havia editado a Portaria n. 763/1994, que vedava o custeio de tratamento de retinose pigmentar no exterior. Ademais, ressaltou o risco de atribuir ao SUS a obrigação de custear tratamentos experimentais:

“Entendo que a recusa da autoridade coatora está devidamente respaldada na conclusão do órgão técnico que congrega os especialistas. Dentro do que foi até aqui exposto, independentemente da análise do dever do Estado em patrocinar os tratamentos, alguns deles até no exterior, no específico caso da doença de que é portador o impetrante, não há recomendação médico-científica. No campo do Direito administrativo, sobre o tema tenho a compreensão de que o serviço médico-social, prestado pelo Estado via órgão competente, além da observância do parecer técnico, deve atentar para os critérios próprios do serviço, jungido a um orçamento e a uma política de prioridades, própria do executivo. A Medicina social a cargo do Estado tem, necessariamente, de fixar critérios para os atendimentos excepcionais, dentre os quais os dispendiosos tratamentos no exterior, sob pena de haver um comprometimento de toda a política de saúde.”66

A ministra, no ensejo, reiterou a necessidade de estabelecer parâmetros para atendimento a demandas excepcionais, sob risco de completa desordem do sistema de saúde brasileiro.

O posicionamento contrário ao pleito da ministra, apesar de vencedor, não foi unânime. Contrapondo-se a ela, os ministros José Delgado e Luiz Fux, entenderam que deveria prevalecer o princípio da dignidade da pessoa humana. Eis um trecho do voto daquele diante do caso apresentado:

“Sr. Presidente, eminentes Ministros, o art. 1º, incisos II e III, da Constituição Federal, diz que o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, dentre tantos, é zelar pela dignidade humana e pela cidadania. Não há dignidade humana nem cidadania mais forte a ser zelada pelo Estado do que proporcionar todos os meios que sejam possíveis a quem necessita da saúde, em uma situação como a descrita, para que haja uma tentativa de solução. Não me impressiona a discussão científica a respeito porque não é o que está em jogo. O que me surpreende é que um cidadão está rigorosamente em vias de ficar cego, se já não ficou, sem direito à luz, sem direito ao sol, enfim, ao mínimo direito do cidadão, que é a visão.”67

A importância desse precedente reside no fato de que a partir dele passou-se a discutir mais a fundo sobre a natureza absoluta do princípio da dignidade da pessoa humana relativamente à obtenção de prestações materiais por parte do Estado. A discussão, de fato, transcendeu o grau de eficácia das normas constitucionais e adentrou em questões até então alheias ao direito, como eficácia do tratamento.

À medida que o direito à saúde tornava-se mais abrangente, as demandas passaram a apresentar maior complexidade.

No julgamento da Suspensão de Segurança n. 3073/RN68, o foco do debate voltou-se à possibilidade de obrigar o poder público a fornecer medicamento experimental. A ministra Ellen Gracie, que decidiu monocraticamente, entendeu por configurada a lesão à ordem pública uma vez que, além do custo ao Estado, o medicamento não figurava na lista do SUS:

“Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se deferir o custeio do medicamento em questão em prol do impetrante, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, o medicamento solicitado pelo impetrante, além de ser de custo elevado, não consta da lista do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde, certo, ainda, que o mesmo se encontra em fase de estudos e pesquisas.”69

Não obstante o entendimento acima explicitado, no julgamento do o julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175/CE70, no ano de 2010, o entendimento da STF orientou-se de maneira distinta.

O caso concreto teve como pedido a condenação solidária do estado do Ceará e do município de Fortaleza de fornecer medicamento não registrado na Anvisa (remédio Zavesca) para tratamento de enfermidade rara conhecida como doença de Niemann-Pick Tipo C, cujo custo mensal estimado era de cerca de R$ 52.000,00. O Tribunal Regional Federal da 5ª Região concedeu antecipação de tutela, a fim de que fosse imediatamente fornecido o medicamento. Aviado pedido de suspensão da tutela antecipada à Presidência do STF, foi mantida a posição do Tribunal Regional. A União agravou da decisão, levando-a ao Plenário da corte, e argumentando em síntese:

“(a) violação do princípio da separação dos poderes, em razão da interferência judiciária nas políticas públicas da Administração Pública; (b) inexistência de previsão normativa que disponha sobre a solidariedade entre integrantes do SUS, o que levaria ao polo passivo da ação apenas o ente responsável pela dispensação do medicamento; e (c) grave lesão às finanças e saúde públicas e possibilidade de efeito multiplicador’71

O julgamento apresentou ao Supremo Tribunal Federal a possibilidade de apreciar diversas questões rotineiras ao judiciário no que diz respeito à demandas envolvendo direito à saúde, e por fazê-las de forma genérica e abstrata, serviram de baliza à atuação de todos os demais órgãos do Poder Judiciário. Na ocasião, o voto ministro Gilmar Mendes foi seguido à unanimidade pelos demais membros da corte. Sinteticamente, este explicitou:

“(a) se existe a política pública e a Administração Pública não fornece a prestação material ali prevista, o cidadão tem direito subjetivo a obtê-la. Neste caso, o Poder Judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando seu cumprimento;

(b) se não existe política pública que abranja a prestação material requerida, deve-se verificar o motivo da falta de fornecimento, que pode ser: (i) uma omissão legislativa ou administrativa; (ii) uma decisão administrativa de não fornecê-la ou (iii) a vedação legal expressa à sua dispensação. De qualquer forma, é vedado à Administração Pública fornecer prestação material que não possua registro na Anvisa, por força de lei;

(c) outro dado a ser considerado é a motivação para o não fornecimento de determinada ação de saúde pelo SUS. Há situações em que se ajuíza a ação com objetivo de garantir prestação de saúde que o SUS decidiu não custear, por entender que inexistem evidências científicas suficientes para autorizar sua inclusão. Nesse caso, há duas hipóteses a se considerar: (i) o SUS fornece tratamento alternativo, mas não adequado a determinado paciente. Esta situação exige cautela, pois os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas adotados representam um consenso científico sobre a condução de determinada doença. São instrumentos das políticas públicas de saúde, que visam à universalidade e à igualdade, principalmente porque equalizam as demandas da coletividade com a escassez dos recursos públicos para atendê-las. Assim, como regra, deve ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS, salvo em situações excepcionalíssimas, nas quais restar assentada a ineficácia ou impropriedade da política pública existente. (ii) O SUS não fornece nenhuma prestação material para determinada doença. Neste caso, é possível que existam tratamentos experimentais, que não têm ainda comprovação científica de sua eficácia. Tais drogas, porque ainda não aprovadas pelas autoridades sanitárias, não podem sequer ser comercializadas e, menos ainda, fornecidas pelo SUS. Outra hipótese é a existência de novos tratamentos, ainda não incorporados aos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas do SUS. É cediço que a burocracia administrativa pode eventualmente dificultar a incorporação desses novos tratamentos ao sistema público. Assim, não se afasta a possibilidade de que a omissão administrativa seja objeto de impugnação judicial.”72

O julgamento analisado constituiu verdadeiro norte de orientação para todo o judiciário brasileiro, mormente por existir um movimento cada vez maior e mais evidente de valorização da jurisprudência como fonte criadora do direito. Prova disso são os chamados efeitos “erga omnes” que são conferidos a algumas decisões. Esta ideia de conferir maior valor à jurisprudência como fonte do direito pode ser atribuída à evolução pela qual o judiciário passou, de modo que a figura do juiz, cuja função era precipuamente aplicar a norma, passou a ser, também, de interpretá-la.

Em verdade, o sistema judiciário vive atualmente uma crise que se instalou em virtude da grande demanda de processos e recursos nos Tribunais Superiores. Paralelamente, vivemos um direito que deixou de ser eminentemente positivista, para vivenciar uma experiência de interpretação das normas na qual a neutralidade dos juízes é cada vez menos evidente, característica marcante de nosso sistema pós-positivista.73 Elival da Silva Ramos, em sua obra Ativismo Judicial – Parâmetros Dogmáticos, evidencia a ideia de que:

“o que hoje se constata é que o magistrado, longe de meramente declarar ou reproduzir um direito preexistente, contribui para sua configuração, entretanto, não de forma livre ou inteiramente desvinculada e sim a partir do texto a aplicar, cujo teor normativo resulta, precisamente da atividade de concretização.”74

Restou clara, a partir do julgado explicitado, a necessidade de organização da prestação de saúde pública brasileira diante das infinitas demandas dos usuários desse serviço. De fato, conferir aplicabilidade ao direito à saúde implica a necessidade de delinear qual o alcance e os limites delineados no artigo 196 da Constituição Federal brasileira.

Os entendimentos acima expostos orientaram as decisões judiciais que se seguiram, de modo a buscar, cada vez mais, elencar critérios objetivos para o estabelecimento do dever do Estado de cumprir a prestação de tutelar de forma eficiente o direito à saúde, sem promover um desequilíbrio na máquina pública.

Mais recentemente, seguindo a orientação de estabelecer a prevalência da dignidade da pessoa humana e do direito à vida, o STJ no julgamento do REsp 1.657.156-RJ75 em 2018, fixou critérios objetivos para sujeitar o Poder Público a prover medicamentos que não constam na lista oficial do Sistema Único de Saúde:

“A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:

i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;

ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;

iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.

STJ. 1ª Seção. EDcl no REsp 1.657.156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 12/09/2018 (recurso repetitivo).”76

Após o precedente descrito acima, o STF apreciou em 2019 um aspecto ainda mais peculiar da questão, referente à possibilidade de determinar o fornecimento pelo Estado de medicamento não incluso no registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). É cediço que o processo de registro de medicamentos na Anvisa pode se mostrar demasiado demorado, de modo que podem existir medicamentos eficazes para enfermidades específicas de potencial gravidade em outros países que carecem de registro no órgão.

Com base nessas premissas, houve o julgamento em Repercussão Geral pelo plenário do STF do RE 657718/MG77, no qual além de se determinar competência exclusiva da União, se estabeleceram critérios para fornecimento de tais medicamentos:

“A ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.

É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:

a) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);

b) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e

c) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

STF. Plenário. RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/5/2019 (repercussão geral).”

Na ocasião, o ministro Roberto Barroso defendeu a impossibilidade de obrigar à prestação caso o registro haja sido negado pela Anvisa.

Não obstante a clara evolução na prestação material relacionada ao direito à saúde, que desenvolveu-se, sobretudo, diante da atuação do Poder Judiciário, é certo, conforme se aferiu, que o próprio conceito do direito está ainda em pleno desenvolvimento.

Com a eclosão da pandemia mundial do Sars-CoV-2 (Covid-19), assim declarada pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março de 2020, é possível assistir ao surgimento de novas facetas no que tange à condução das políticas públicas no campo sanitário, e uma delas traduziu a fusão do direito à saúde e à informação.

O Supremo Tribunal Federal, em recente decisão proferida na ADPF 692, exarou entendimento no sentido de que a interrupção abrupta da coleta e divulgação de importantes dados epidemiológicos, imprescindíveis para a análise da série histórica de evolução da pandemia (Covid-19), caracteriza ofensa a preceitos fundamentais da Constituição Federal, nomeadamente o acesso à informação, os princípios da publicidade e da transparência da Administração Pública e o direito à saúde.

“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ATOS DO PODER PÚBLICO. RESTRIÇÃO À DIVULGAÇÃO DE DADOS RELACIONADOS À COVID-19. PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E DA TRANSPARÊNCIA. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DA DIVULGAÇÃO DIÁRIA DOS DADOS EPIDEMIOLÓGICOS RELATIVOS À PANDEMIA. CONFIRMAÇÃO DA MEDIDA CAUTELAR REFERENDADA PELO PLENÁRIO. PROCEDÊNCIA PARCIAL. 1. A Constituição Federal de 1988 prevê a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantindo sua universalidade e igualdade no acesso às ações e serviços de saúde, e consagra expressamente o princípio da publicidade como um dos vetores imprescindíveis à Administração Pública, conferindo-lhe absoluta prioridade na gestão administrativa e garantindo pleno acesso às informações a toda a Sociedade. Precedentes: ADI 6347 MC-Ref, ADI 6351 MC-Ref e ADI 6353 MC-Ref, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, DJe de 14/8/2020. 2. A gravidade da emergência causada pela COVID-19 exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde, entre elas o fornecimento de todas as informações necessárias para o planejamento e o combate à pandemia. 3. A interrupção abrupta da coleta e divulgação de informações epidemiológicas, imprescindíveis para a análise da série histórica de evolução da pandemia (COVID-19), caracteriza ofensa a preceitos fundamentais da Constituição Federal e fundamenta a manutenção da divulgação integral de todos os dados que o Ministério da Saúde realizou até 4 de junho 2020, e o Governo do Distrito Federal até 18 de agosto passado, sob pena de dano irreparável. 4. Julgamento conjunto das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 690, 691 e 692. Confirmação da medida cautelar referendada pelo Plenário. Procedência parcial. (ADPF 692, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-071 DIVULG 14-04-2021 PUBLIC 15-04-2021.”78

Os principais argumentos que embasaram a decisão firmaram-se à ideia de que uma das principais finalidades do Estado é a efetividade de políticas públicas destinadas à saúde, incluindo as ações de vigilância epidemiológica, entre elas o fornecimento de todas as informações necessárias ao planejamento e combate da pandemia causada pela Covid-19, e que a gravidade da emergência ocasionada exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção das medidas possíveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde.

A Constituição elencou o princípio da publicidade de forma expressa como um dos vetores imprescindíveis à Administração Pública, atribuindo-lhe absoluta prioridade na gestão administrativa e assegurando pleno acesso às informações a toda a sociedade.

À elevação constitucional da publicidade e transparência relaciona-se o mandamento imperativo do Estado em fornecer as informações necessárias à sociedade O acesso às informações consubstancia-se em verdadeira garantia instrumental ao pleno exercício do princípio democrático.

Assim, salvo casos excepcionais, o Estado tem o dever de absoluta transparência na condução dos negócios públicos, nos termos disciplinados nos arts. 37, caput e 5º, XXXIII e LXXII da Constituição Federal.

Mais recentemente, em decisão liminar proferida na ADPF 822, cujo julgamento encontra-se atualmente suspenso em virtude de pedido de vistas do Ministro Gilmar Mendes, o Supremo decretou uma série de medidas a serem tomadas pelo Poder Executivo, reconhecendo a gestão ineficiente do governo no enfrentamento da crise. Uma das providências requeridas na ação pretendeu que o Judiciário decretasse lockdown e toque de recolher de forma liminar, como meio de conter o avanço da doença. Liminarmente, o relator do caso, Marco Aurélio, denegou tais pedidos. Não obstante a negativa, declarou que o Estado brasileiro ostenta a condição de "estado de coisas inconstitucional na condução das políticas públicas destinadas à realização dos direitos à vida e à saúde”. Segundo aduziu,

“ocorre violação generalizada de direitos fundamentais em relação à dignidade, à vida, à saúde, à integridade física e psíquica dos cidadãos brasileiros, considerada a condução da saúde pública durante a pandemia covid-19. Ha falência estrutural.” 79

O ministro frisou que compete ao Tribunal fomentar o debate, planejamento e a implementação de políticas públicas, ao passo que cumpre ao campo de atuação do Legislativo e do Executivo o esfera democrática e técnica das escolhas, mormente orçamentárias, no que tange a forma mais convergente e adequada à superação da crise.

  1. CONCLUSÃO

A partir da análise delineada restou evidente a importância do judiciário no que tange a dar concretude e eficácia aos direitos fundamentais sociais positivados. Para o renomado jurista Luiz Werneck Viana80, toda a problematização em torno do Judiciário como determinante na concessão material de direitos sociais e, portanto, da enorme demanda que lhe é trazida nesse sentido estaria ligada a uma “crise geral das relações entre o Estado e a sociedade”, sendo esta o resultado da evolução da democracia no Estado brasileiro, para a qual este poder não estaria preparado material, conceitual e doutrinariamente para lidar com os novos problemas que lhe são apresentados.

Antes visto como um instrumento capaz de solucionar litígios e resolver direitos, o Judiciário assumiu de forma revolucionária o papel de garantidor dos direitos e garantias amplamente assegurados à sociedade, aproximando-se, sobremaneira, da vida social brasileira. O mencionado autor traz à baila o “diagnóstico consagrado pelos estudos comparados em sociologia do direito” de José Eduardo Faria, o qual entende essa nova relação entre o Judiciário e a sociedade como devida:

‘[à] expansão desordenada das matérias submetidas a controle jurídico, [à] diluição das fronteiras entre o público e o privado, [à] emergência de um sem-número de fontes materiais do direito, abrindo caminho para um efetivo pluralismo jurídico, e [à] tendência ao esvaziamento básico do direito positivo’. Resulta daí que, tanto pelo ângulo da questão institucional quanto pelo da afirmação de novos direitos, a função jurisdicional do Judiciário recebe uma sobrecarga, ao mesmo tempo em que o apelo crescente a esse Poder põe em evidência as suas carências quanto a meios e pessoal, e a inadequação do seu sistema de orientação normativista em face do novo ambiente que passou a estar exposto.81

A partir destas ideias é que se observa a valorização e protagonismo dado ao Judiciário atualmente, bem como a suas decisões, o que aponta para a tendência de decodificação e constitucionalização da ordem legal vigente, fenômeno chamado por alguns estudiosos de “revolução silenciosa”, pois seria responsável por erigir o Judiciário, antes tido como “Poder mudo” a “Terceiro Gigante”, de modo que “os juristas talvez sejam chamados a desempenhar o principal papel na sociedade política que procura nascer”.82

Deve-se levar em conta, no entanto, que ao prolatar suas decisões, cabe ao órgão judicante evitar excessos, a fim de não promover a desigualdade, atendo-se ao mínimo existencial, e restringindo, na medida do possível, a interferência que mostra-se muitas vezes necessária no papel do Poder Legislativo, e, principalmente, do Poder Executivo. Além disso, a análise deve se pautar também na existência de regulamentação a embasar a política pública diante do caso concreto.

A importância de delinear tais limites reside ainda na noção de que o direito à saúde sofre uma transformação perene, evoluindo conforme se dá a evolução do próprio Estado, o que traduz a ideia da permanente necessidade de desenvolvimento de prestações materiais aptas a assegurar o direito fundamental a uma vida digna.

Entende-se, portanto, que o judiciário não é capaz, por si só, de efetivar plenamente o mínimo existencial no tocante ao direito à saúde, tampouco regulamentar todas as facetas que advém da necessidade da concretização social das prestações requeridas cotidianamente. Nesse sentido, é necessário que se promova um diálogo institucional, visando resguardar não apenas o direito dos cidadãos à uma vida plena, mas também os limites de interação entre as atribuições de cada um dos poderes, de modo a concretizar o ideal de democracia positivado na Constituição Federal.

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