A participação popular é um princípio caro à democracia brasileira. Participar, numa perspectiva jurídica, é o fato de tomar parte em alguma coisa, realizando uma interferência, uma contribuição ou cooperação, um exercício cidadão para além do voto e da representação política. A democracia, no Brasil, ainda insiste na representatividade, mas há meios que garantem a participação cidadã, a exemplo do plebiscito, referendo e iniciativa popular.
Teóricos da democracia debatem sobre duas concepções: a teoria minimalista e a teoria ampla. Os adeptos da primeira apontam para a representatividade como único meio possível. Já os defensores da outra entendem que é possível ir além da representação, com mais participação do povo. Na perspectiva desta última, há três vertentes: participacionista, deliberacionista e republicanista cívica.
Todas deixam a desejar quando não conseguem alcançar resultados que rompam com a arquitetura institucional vigente. Discussões em pequenos grupos e comunidades, tentativa de implantar uma falsa equiparação das partes, a não compreensão prática da relevância do pluralismo e diferenças em uma sociedade podem ser apontados como problemas inerentes a essas vertentes.
No campo dos direitos culturais, a participação popular, sobretudo na concepção e gestão das políticas culturais, é um princípio jurídico-político indispensável, pois não se faz cultura sem as pessoas. São elas que produzem e fruem dos bens culturais.
Previsto no Art. 216, § 1º, da Constituição Federal de 1988, o princípio reza que o Poder Público, em colaboração com a comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural do Brasil. Ensina, o Art. 5º, LXXIII da Constituição, que qualquer cidadão pode acionar a justiça para proteger o patrimônio cultural. É preciso destacar ainda as normas que institucionalizam a participação por meio de conselhos, comissões e demais organizações análogas.
Ao estabelecer uma política cultural, por exemplo, seja de proteção, acesso ou fomento à cultura, não se pode desconsiderar a atividade cidadã.
A democracia está para além das concepções ora apresentadas. Ela é parte da vida social, que não é fragmentada e, cuja participação, seu princípio, ao lado da dignidade humana, é o alargamento do poder político da comunidade, espírito guia e inspirador, fundamento de uma sociedade que promove a emancipação humana.
Na mesma esteira, estão os direitos culturais, cujos objetivos são a dignidade humana, o desenvolvimento e a paz. Em outras palavras, para ser um direito, que esteja entre os culturais, é preciso estar em consonância com esses valores. Assim, as artes, as memórias de diferentes grupos e o fluxo dos saberes precisam ser resguardados por ações com participação da sociedade, das comunidades em sua máxima diversidade.
O elitismo democrático, adepto da concepção minimalista, insiste numa interpretação que entende a democracia como um mero sinônimo de eleições, nas quais seus representantes buscam a população para apoiar com o voto, legitimando as decisões posteriores, como uma procuração de amplos poderes para realizar tudo que estiver nas regras do jogo.
Essa burla elitista, no intuito de angariar votos das massas populares, materializa-se, por exemplo, na ação do legislador que reconhece um bem cultural por meio de leis, desprezando as estruturas normativas que regulamentam um processo administrativo com previsão de escuta popular, sobretudo daquelas pessoas que são mais afetadas por esses bens. Ou ainda, na instituição de datas comemorativas sem a mínima consulta pública, mesmo quando essa previsão se encontra na Constituição Federal.
Entre os que advogam pela concepção ampla, ainda é possível perceber o controle da participação ao invés da participação popular para o comando do que é público. Em outras palavras, continua a serviço da elite, como uma democracia domesticada, que não tem interesse na emancipação humana. Nessa perspectiva, conselhos, conferências, fóruns e outras estratégias podem ser espaços de voz e diálogo, mas também podem mascarar o controle, a domesticação e o gerenciamento dos comportamentos. A distribuição de cargos de confiança e a instituição de políticas públicas também podem se configurar como estratégias para desmobilizar os movimentos, neutralizando os ativistas.
Em suma, enquanto um grupo, adepto do minimalismo, desqualifica e deslegitima, e, até mesmo criminaliza as ações de participação que nascem com o povo, o outro grupo promove a institucionalização dos mecanismos de participação.
Apesar de a democracia brasileira ser, notavelmente, representativa, é possível vislumbrar a ampliação do viés participativo. Nesse contexto, é fundamental lembrar que a Constituição Federal de 1988 é um marco para aproximação de grupos plurais, por meio dos movimentos sociais, saindo do campo, apenas da confrontação, para o diálogo com o Estado.
Poderíamos afirmar, então, que o participacionismo consiste na técnica de governo para gerenciar a participação, enquanto a participação popular, como um princípio, é uma utopia política. É o espírito que direciona caminhos possíveis, embora tenha que se adequar em algum grau aos ditames do participacionismo, ainda assim, aí não encontra os seus limites, pois, não se encerra na estaticidade, vive na dinâmica, pois existe com o povo. Sendo assim, camará, damos volta ao mundo com a seguinte pergunta: Quais seriam os caminhos possíveis para promover uma participação popular mais ampla na tomada de decisões sem cairmos no participacionismo? Eis a questão!
Referências consultadas:
1 Cunha Filho, F. H. Teoria dos Direitos Culturais: Fundamentos e finalidades. Edições Sesc São Paulo. 2018.
2 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 11 abr. 2024.
3 Bonavides, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros, 2003.
4 Guimarães, Deocleciano Torrieri. Dicionário Jurídico. São Paulo: Rideel, 2005.
5 Vitullo, Gabriel Eduardo. As Outras teorias da democracia: participacionismo, deliberacionismo e republicanismo cívico. Natal: Edufrn, 2012.
6 Machado, Frederico Viana. Participacionismo e Diferencialismo Identitário nas Relações entre Estado e Movimentos Sociais no Brasil (2003-2010). Psicologia & Sociedade, 32, e220420, 2020. http://dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32220420.