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Publicidade Médica: entre a Ética e o Crime

Agenda 23/04/2024 às 09:37

A Publicidade Médica pode aparentar ser inofensiva, não é. Seu potencial lesivo é altíssimo, com repercussões até mais graves do que os erros cometidos no ato médico.

  “Direito e Saúde”     

A Resolução CFM 2.336/2023, que atualizou as regras para a Publicidade Médica, só entrou em vigor há pouco mais de 30 dias, mas a mudança de postura dos médicos foi notada desde a sua publicação, em setembro de 2023. A Resolução quebrou paradigmas, atualizou conceitos há muito ultrapassados e aumentou a liberdade dos médicos para defesa de suas prerrogativas no concorrido mercado da saúde.

Embora seu conteúdo seja majoritariamente assertivo, a Resolução trouxe pontos bastante controversos, aproximando ainda mais a relação médico-paciente da consumerista, sobretudo quando equipara pacientes a clientes e permite a realização de campanhas promocionais como a Black Friday, abandonando o conceito essencialmente educativo e informativo outrora vigente. Além disso, parte de seu conteúdo é altamente contraditório: embora revolucione o uso das imagens de pacientes nas redes sociais, mantém a obrigatoriedade de respeito ao seu anonimato.

Desde a publicação da Resolução, até os médicos mais conservadores se renderam a uma publicidade mais ostensiva, sobretudo nas redes sociais. Mas esta não foi a única mudança: houve também um severo aumento das infrações éticas. É preciso reconhecer que as infrações éticas sempre fizeram parte deste universo, pois grande parte das regras impostas pela Resolução CFM 1.974/2011 eram ignoradas por estarem desatualizadas e descontextualizadas da realidade atual. Assim, muitas violações eram consideradas justificáveis, contando com a “vista grossa” dos Conselhos Regionais de Medicina. Contudo, esta realidade mudou.

A nova Resolução sanou os vícios da anterior, estabelecendo limites claros e razoáveis e concedendo uma liberdade inédita aos médicos, que superou as expectativas até dos mais otimistas. Mas toda esta liberdade trouxe uma grande responsabilidade: a política de tolerância a certas infrações, até então administrada por parte dos Conselhos Regionais, ficou no passado. Com as novas regras, os órgãos se estruturaram para uma rígida e severa fiscalização, sobretudo no ambiente digital. Apesar disso, a expectativa era de uma grande redução das infrações éticas devido à atualização das normas, o que, na prática, não aconteceu. Antes mesmo da vigência da nova Resolução, houve um alarmante aumento das infrações éticas, agravando de forma sistêmica os riscos de toda a classe médica.

O primeiro risco a ser considerado é o ético, pois o aumento das infrações acarretará uma avalanche de sindicâncias e processos éticos, que serão severamente conduzidos pelos Conselhos. O segundo risco é potencialmente mais grave: o civil, pois as violações mais comuns (como a promessa de resultado) ferem os direitos dos pacientes e distorcem as regras tradicionais de responsabilidade civil médica, acarretando ações indenizatórias com altíssimo potencial de condenação. Mas sem dúvidas, o terceiro risco é mais alarmante: o criminal, decorrente de infrações às regras de Publicidade Médica que possuem claros aspectos penais, levando os conflitos entre médicos e pacientes a um ambiente ainda mais perigoso.  

Podemos citar, inicialmente, os casos em que a Publicidade Médica possui na Promessa de Resultado uma estratégia para atração de pacientes, sendo a má fé indiscutível, visto que a incerteza é inerente à atividade médica. Há casos em que os resultados prometidos sequer são prováveis (ou possíveis) conforme a literatura médica, e a má fé do anunciante é tão clara que o termo de consentimento contraria publicidade. É o caso do trecho a seguir, extraído de uma decisão judicial de 2012 do TJRS: “Inadmissível que para vender o serviço, tenha sido oferecida garantia de 100%, o que não é verdade, e após, quando da contratação, faz assinar termo onde o ofertado já não se confirma, falando-se em resultado próximo a zero.” Em casos como este, a conduta do anunciante pode se enquadrar no crime de Estelionato, assim previsto no art. 171 do Código Penal: “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.”

Mais uma conduta que pode se enquadrar no crime de Estelionato é o caso dos médicos que se passam por especialistas, induzindo maliciosamente os pacientes a este entendimento, sem que tenham o Registro de Qualificação de Especialidade (RQE), fato que já motivou inúmeras condenações como a proferida em 2019 pelo TJAM, cujo trecho a seguir foi extraído (caso em que o médico foi condenado a oito anos de prisão, pelo crime de estelionato e homicídio culposo): “Além de o acusado ter sido imperito por realizar procedimentos sem ter a técnica necessária de um cirurgião plástico, ele foi negligente ao assumir os riscos do resultado e realizar o procedimento cirúrgico em uma vítima de alto risco, sem UTI no hospital.” O crime de Estelionato pode estar presente também nos casos em que os médicos ofereçam através da Publicidade, tratamentos que comprovadamente não proporcionam o resultado proposto. Neste caso, o profissional pode ainda responder pelos crimes de Charlatanismo, previsto no art. 283 do código penal e até de Curandeirismo, presente no art. 284 do mesmo diploma, a depender dos detalhes.  

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Por fim, não podemos deixar de citar uma prática cada vez mais comum, sobretudo em cirurgias e procedimentos de caráter estético: com a finalidade de demonstrar os resultados, profissionais manipulam o corpo de pacientes (muitas vezes nas partes íntimas, como mamas ou nádegas) ainda sob sedação e de forma inapropriada, sendo os atos gravados e divulgados nas redes sociais. Sob o pretexto de demonstrar a graciosidade do contorno corporal alcançado, o bom senso é totalmente abandonado, gerando um conteúdo grosseiro e de péssimo gosto, com perigosos reflexos sob a ótica do direito penal. Nestes casos, a violação da obrigação de respeito ao pudor dos pacientes imposta pela nova Resolução, pode ser o menor dos problemas do profissional, pois os Conselhos Regionais de alguns estados já ventilam o enquadramento da conduta em tipos penais de extrema gravidade, conforme veremos a seguir.   

Embora muito se fale na qualificação de tais condutas como Atos Libidinosos, somente podem ser assim considerados os atos que objetivem a satisfação do desejo sexual do autor, motivo pelo qual, embora reprováveis, os atos não seriam libidinosos. Mas basta que o acusador considere a mera possibilidade de motivação sexual (algo plenamente possível por parte de pacientes queixosos, imprensa, autoridades policiais ou Ministério Público) para que o profissional seja acusado. O problema é que sendo considerado o elemento sexual, dificilmente a acusação se limitaria a meros atos libidinosos.

Uma primeira possibilidade seria o crime de Importunação Sexual, assim previsto no art. 215-A do Código Penal: “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. Outro tipo penal possível é o crime de Assédio Sexual, previsto no art. 216-A como: “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.

A situação de vulnerabilidade das pacientes, totalmente submissas e impossibilitadas de oferecer resistência por conta da sedação, pode tornar o caso ainda mais grave, enquadrando a conduta no crime de Estelionato Sexual, assim previsto no art. 215 do CP: “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima.” Outra possibilidade seria o crime de Estupro de Vulnerável, assim previsto no art. 217-A: “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, com vistas ao seu §1º, segundo o qual: “incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.

Nestes casos, bastaria a iniciativa da paciente através de uma representação criminal para que o médico enfrente uma desgastante jornada ao inferno, por meio da acusação pública de um crime sexual, e a instauração de uma ação penal (que pode durar mais de uma década). No caso do crime de estupro de vulnerável a situação pode ser ainda mais grave, pois embora o STJ entenda que o crime é de ação penal pública condicionada à representação da vítima, há entendimentos contrários, assim, somente a comoção social e o estardalhaço da imprensa poderiam ser suficientes para se instaurar o processo, mesmo sem qualquer iniciativa da paciente. Somente estas possibilidades deveriam bastar para que os médicos evitassem de forma absoluta as referidas condutas, pois só a acusação dos aludidos crimes pode colocar fim a uma careira construída a duras penas, em função do escárnio feito pela imprensa em casos análogos para vender manchetes, e o cruel julgamento das redes sociais, que via de regra ocorre em casos desta natureza, sem qualquer análise de provas ou possibilidade de defesa.

Como se vê, a Publicidade Médica pode até aparentar ser simples e inofensiva, mas absolutamente, não é. Seu potencial lesivo à carreira dos médicos é altíssimo, e os erros nela cometidos podem gerar repercussões muito mais graves do que os erros ocorridos no ato médico. Administrar a publicidade médica sem o acompanhamento de uma agência que entenda minimamente as limitações éticas da medicina, e a revisão das campanhas por um advogado especialista que de fato entenda do assunto, é um risco que nenhum médico sensato deveria correr.

Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.

Sobre o autor
Renato Assis

Advogado inscrito na OAB dos estados de BA, ES, MG, PR, SP e RJ; Professor de Direito e empresário; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Especialista em Direito Processual pela PUC-MG; Especialista em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC/MG; Professor do curso de Direito Médico e Odontológico da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Autor do livro “Direito Processual e o Constitucionalismo Democrático Brasileiro” – 2009; Autor do livro “Socorro Mútuo: Como a Proteção Veicular revolucionou o mercado de Proteção Patrimonial e de Seguros do Brasil” – 2019; Conselheiro Jurídico e Científico da ANADEM – Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética; Acadêmico Efetivo e Vitalício na área de Ciências Jurídicas da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Membro da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro; Membro da WAML – World Association for Medical Law; Presidente da Unidade Brasil da ASOLADEME – Associación Latinoamericana de Derecho Médico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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