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A Constituição de 1988 e o princípio do duplo grau de jurisdição

Agenda 08/02/2008 às 00:00

1. Recurso e o princípio do duplo grau de jurisdição

Por recurso compreende-se o meio de impugnação voluntário e previsto em lei da decisão judicial, no mesmo processo em que foi proferida. Não instaura, portanto, nova relação processual, o que o diferencia das ações autônomas de impugnação a decisões judiciais, e.g. querela nullitatis e ação rescisória. Visam os recursos à reforma, invalidação, esclarecimento ou integração da decisão proferida judicialmente.

O controle da atividade jurisdicional por via de recursos deriva, a princípio, da natural inconformidade da parte vencida em relação a decisão contrária a seu interesse. Ademais, permitir que haja decisão emanada de órgão único e não sujeita a revisão possibilita um acréscimo nos maus julgamentos, vez que os magistrados de uma então única instância não teriam suas decisões reexaminadas.

Essa preocupação com o abuso de poder dos juízes trouxe a consagração em nosso ordenamento do princípio do duplo grau de jurisdição, considerada uma verdadeira "garantia fundamental de boa justiça" [01]. Em que pesem oposições a esse entendimento, em vista de uma decisão de segunda instância não implicar necessariamente em uma decisão mais justa, ressalta Ada Pellegrini Grinover [02] o fundamento político maior em favor da preservação do duplo grau, qual seja, a necessidade de controle dos atos estatais.

"(...) nenhum ato estatal pode escapar de controle e, como tal, a revisão das decisões judiciárias constitui postulado do Estado de Direito, através do qual se realiza o controle interno, exercido por órgão diverso do que julgou em primeiro grau, para aferir a legalidade e a justiça da decisão por este proferida." [03]

O recurso, em geral, é analisado por um órgão de segunda instância, composto por magistrados mais experientes, permitindo que uma mesma matéria seja apreciada por dois órgãos distintos do Poder Judiciário.

Cumpre assinalar que esse princípio não significa apenas a possibilidade de revisão da decisão preferida em primeira instância, compreendendo ainda a proibição de que a decisão de segunda instância tão-somente substitua a primeira, visto que estaria o órgão ad quem inviabilizando o efetivo reexame da causa.

Acrescenta Ada Pellegrini Grinover observação no sentido de que "o princípio do duplo grau esgota-se nos recursos cabíveis no âmbito do reexame da decisão por uma única vez" [04]. Dessa forma, os recursos extraordinários para o STF e o STJ, bem como os recursos de terceiro grau das justiças trabalhista e eleitoral não se enquadram na garantia do duplo grau de jurisdição, sendo diverso seu fundamento.


2. O duplo grau e a Constituição

O duplo grau foi inicialmente previsto na Carta Constitucional de 1824, a qual o erigia a garantia constitucional absoluta através do art. 158: "para julgar as Causas em segunda, e ultima instancia haverá nas Provincias do Imperio as Re1ações, que forem necessárias para commodidade dos Povos". Os Tribunais das Relações a que se refere a Constituição Imperial são os atuais Tribunais de Justiça, outrora também denominados Tribunais de Apelação.

Omitido nas sucessivas constituições da República, entende a maioria da doutrina processual que, não obstante a ausência de menção expressa na Lei Maior, decorre a garantia do sistema constitucional vigente, o qual prevê a existência de tribunais de segunda instância competentes para o julgamento dos recursos ordinário constitucional, especial e extraordinário, bem como de outros princípios constitucionais, como a ampla defesa e o devido processo legal.

Diante da ausência de previsão constitucional, Ingo Wolfgang Sarlet [05] considera que o art. 5°, inc. XXXV da Constituição Federal de 1988 abrangeria o referido princípio. Prevê o dispositivo em tela o direito de acesso à Justiça, de forma que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito". Na medida em que a lesão ou ameaça ao direito pode advir de ato do próprio Poder Judiciário, essa garantia constitucional poderia se tornar inoperante, caso não se viabilizasse, de alguma forma, a sua revisão.

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Ao lado do dispositivo em comento, Ingo Sarlet acrescenta os inc. LIV e LV do mesmo art. 5° da Carta Política, referentes aos princípios do devido processo legal e da ampla defesa. Para o jurista, essa última garantia, isoladamente, já poderia ser considerado como previsão, pelo menos como regra geral, de acesso a uma segunda instância.

Ada Pellegrini Grinover [06], adepta a essa corrente que considera o direito ao recurso como uma garantia fundamental, admite tratar-se de princípio constitucional autônomo, a despeito de se encontrar previsto apenas implicitamente na Carta de 1988. Acrescenta que a garantia ao duplo grau decorre do princípio da igualdade, de maneira que todos os litigantes devam, em paridade de condições, usufruir pelo menos de um recurso para revisão das decisões, inadmitindo-se a previsão de recursos para uns e não para outros. Ressalta ainda o fundamento político maior em favor da preservação do duplo grau, qual seja, a necessidade de controle dos atos estatais. Prossegue afirmando que "um sistema de juízo único fere o devido processo legal, que é garantia inerente às instituições político-constitucionais de qualquer regime democrático".

Joaquim José Gomes Canotilho [07], a seu turno, afirma que, no Direito Português, o Tribunal Constitucional tem reconhecido o direito de acesso aos tribunais, assim como o direito a um duplo grau de jurisdição. Há que se frisar que não se trata de um direito fundamental, existindo uma liberdade de conformação do legislador, que não pode, todavia, subvertê-lo.

Nelson Nery Jr. considera igualmente não haver uma garantia absoluta ao duplo grau de jurisdição, embora reconheça a Constituição a existência de tribunais, conferindo-lhes competência recursal.

"Com isto, queremos dizer que, não havendo garantia constitucional a um duplo grau, mas mera previsão, o legislador infraconstitucional pode limitar o direito de recurso, dizendo, por exemplo, não caber apelação nas execuções fiscais de valor igual ou inferior a 50 OTNs (art. 34 da lei 6.830/80) e nas causas, de qualquer natureza, nas mesmas condições, que forem julgadas pela Justiça Federal (art. 4° da lei 6.825/80) ou, ainda, não caber recurso dos despachos (art. 504 do CPC)." [08]

O STF tem seguido essa linha, já tendo se manifestado no sentido de que não há inconstitucionalidade nas decisões em que não haja previsão de recurso para um órgão de segunda instância. De acordo com o pretório excelso, "o duplo grau de jurisdição, no âmbito da recorribilidade ordinária, não consubstancia garantia constitucional" [09].

O então Ministro do STF Sepúlveda Pertence, relator do RHC n° 79.785/RJ, constante do Informativo n° 183 do STF, expôs em seu voto que as opiniões divergentes a essa corrente esposada pelo supremo não passam de wishfull thinking, carecendo de uma base dogmática sólida, pautadas na utilidade dos recursos como instrumentos de segurança, de controle e de isonomia.

A previsão do art. 5°, LV da Constituição Federal de que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" utiliza a palavra recursos não em seu sentido técnico, de forma que não se pode considerar como uma garantia ao direito de recurso.

A Corte Maior já se posicionou inclusive quanto à recepção do art. 34, §2° da lei de Execução Fiscal (lei 6.830/80) pela Constituição Federal de 1988, em sede de recurso extraordinário, cujo relator foi o Ministro Moreira Alves. Limita o referido dispositivo a interposição de recursos que não os embargos infringentes e de declaração às sentenças de primeira instância proferidas em execução de valor igual ou inferior a cinqüenta Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional – ORTN. Em havendo limitado o direito a recurso a causas de pequeno valor pecuniário, atendeu o legislador à proporcionalidade, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Dessa forma, não só a Carta Política traz limitações ao direito de recurso, como também não veda o legislador infraconstitucional a fazê-lo, estabelecendo as exceções que entender cabíveis, desde que não leve à supressão desse princípio, atendendo sempre ao princípio da proporcionalidade nessa restrição.

A previsão de recurso para um órgão colegiado composto por juízes da mesma instância (como ocorre nos Juizados Especiais, por exemplo) e até mesmo a possibilidade de se criar órgãos de segunda instância compostos por julgador singular (possibilidade de julgamento de recursos por relatores em tribunais), não implicam necessariamente, por si só, supressão do acesso ao duplo grau de jurisdição, nem ferem de morte o direito de recorrer a uma instância superior.

Em 1992, o Decreto nº 678 incorporou ao direito positivo nacional o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), suscitando discussões acerca da inserção em nosso ordenamento do direito a recurso como garantia fundamental.

Prevê esse tratado internacional, em seu art.8°, n° 2, alínea h que durante o processo, toda pessoa acusada de delito tem direito, em plena igualdade, à garantia do direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

Assevera ainda o art. 25 que toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela referida Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas atuando no exercício de suas funções oficiais.

O art. 25 tem sido interpretado pela doutrina como uma garantia a um remédio, a uma ação judicial, tendo havido, portanto, o emprego da palavra "recurso" nessa acepção e não no sentindo técnico tradicional de impugnação a sentenças judiciais. Logo, não elevaria esse artigo o direito a recurso a um plano de garantia.

No que concerne ao art. 8°, prevalece entendimento de que houve adoção do princípio do duplo grau de jurisdição como garantia fundamental no âmbito do processo penal, uma vez que há referência ao direito de "toda pessoa acusada de um delito" de, durante o processo, "recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior".

Quando da ratificação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vigorava apenas o art. 5°, §2° da Constituição de 1988, o qual prevê que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Havia, então, duas correntes diversas: uma considerava que essas normas internacionais recepcionadas vigoravam no ordenamento pátrio com hierarquia de norma constitucional, possuindo portanto força ab-rogatória da Constituição; e outra entendia que adquiriam hierarquia de lei infraconstitucional, não se sobrepondo às normas da Lei Maior. O STF já se posicionava pela segunda corrente, refutando que norma de tratado e convenção internacional pudesse prevalecer sobre norma constitucional.

Com a introdução do art. 5, §3° da Constituição Federal, a partir da Emenda Constitucional n° 45/04, esse entendimento do Supremo foi reforçado, passando a Constituição Federal a prever, expressamente, que apenas "os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais."

Pode-se inferir dos citados dispositivos, que o direito a recurso é garantia fundamental no direito processual penal, tendo sido assegurada a partir da ratificação do Pacto de San José da Costa Rica, ratificado e introduzido em 1992 no nosso ordenamento com status de lei ordinária, prevendo, em consonância com o art. 5°, §2° da Constituição de 1988, uma garantia que não exclui as previstas na Carta Maior.


3. Conclusão

É indiscutível, pois, a possibilidade de restrição ao duplo grau de jurisdição em nosso ordenamento, pelo menos no que se refere às causas de natureza civil, uma vez que no âmbito do processo penal não se conhece caso de supressão do segundo grau de jurisdição.

O direito ao recurso e ao duplo grau de jurisdição é garantia fundamental apenas no direito processual penal, em razão de tutelar um princípio maior, qual seja, a liberdade do indivíduo, não podendo ser considerado direito fundamental no âmbito trabalhista ou processual civil.

Assevera Ingo Sarlet:

"Na esfera criminal, a questão assume relevo especialmente nos casos de penas privativas da liberdade. Aqui, poder-se-ia seriamente duvidar da constitucionalidade de uma supressão, ou mesmo de uma restrição substancial, ainda que não em todos os casos, do acesso ao duplo grau de jurisdição ou do direito de recurso para uma instância superior, principalmente por estarem sendo tangenciados direitos fundamentais (a liberdade, por exemplo) e valores inerentes ao princípio maior da dignidade humana. [10]"


Bibliografia

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento, 6ª ed, Salvador: JusPODIVM, 2006;

GRINOVER, Ada Pellegrini. O Processo em Evolução, 2ª ed, Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1998;

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 12ª ed., São Paulo: Atlas, 2002;

NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante, 9ª ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

NERY JR., Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 6ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000;

SARLET, Ingo Wolfgang. Valor de alçada e limitação do acesso ao duplo grau de jurisdição: problematização em nível constitucional, à luz de um conceito material de direitos fundamentais. Revista Jurídica, Porto Alegre, n. 66, p. 85-129 apud TESHEINER, José Maria capturado em <http://www.tex.pro.br/wwwroot/06de2005/constituicaoerestricoesaoduplograudejurisdicao_licaodeingowsarlet.html> . Acesso em 20 de agosto de 2007;

WAMBIER, Luiz Rodrigues (coordenação), ALMEIDA, Flávio Renato de e TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, Volume 1: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, 6ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003.


Notas

01 WAMBIER, Luiz Rodrigues (coordenação), ALMEIDA, Flávio Renato de e TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, Volume 1: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, 6ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003, p. 573.

02O Processo em Evolução, 2ª ed, Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1998, p. 65.

03 GRINOVER, Ada Pellegrini, op. cit, p. 321.

04Op. cit., p. 66.

05 Valor de alçada e limitação do acesso ao duplo grau de jurisdição: problematização em nível constitucional, à luz de um conceito material de direitos fundamentais. Revista Jurídica, Porto Alegre, n. 66, p. 85-129 apud TESHEINER, José Maria capturado em <http://www.tex.pro.br/wwwroot/06de2005/constituicaoerestricoesaoduplograudejurisdicao_licaodeingowsarlet.html> . Acesso em 20 de agosto de 2007.

06Op. cit., p. 66.

07Direito Constitucional. Coimbra: Alamedina, 1993, p. 653 apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 12ª ed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 104.

08Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 6ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 170.

09 STF – 2ª Turma – Agravo Reg. em Agravos de Instrumento n°s 209.954-1/SP e 210.048-0/SP- Relator Ministro Marco Aurélio, Diário da justiça, Seção 1, 4 de dezembro de 1998 apud MORAES, Alexandre de. Direito... Op. cit., p. 105.

10Op. cit., p. 85-129 apud TESHEINER, José Maria, referência online.

Sobre a autora
Emília Cavalcante Nobre

Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Faculdade Farias Brito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOBRE, Emília Cavalcante. A Constituição de 1988 e o princípio do duplo grau de jurisdição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1682, 8 fev. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10924. Acesso em: 18 nov. 2024.

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