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O arcabouço fiscal e a natureza ambígua do Direito

Agenda 10/05/2024 às 13:35

A resposta à pergunta "A luz é uma partícula ou uma onda?" dividiu os físicos até se descobrir que ela pode ser as duas coisas. A luz é uma partícula e também se comporta como uma onda.

O Direito é um fim em si mesmo, um meio para um fim ou ele é ambivalente? Essa é uma pergunta que divide os filósofos e juristas desde a antiguidade. Trasímaco, teria defendido a tese de que justo é o que o dominante diz ser justo. Sócrates, por sua vez, entendia que a Justiça era a virtude de uma alma saudável e harmoniosa libertada das guarras da ignorância, de maneira que ela não poderia ser um instrumento para um fim nas mãos do governante.  

Como técnica de identificação, descrição e administração dos conflitos na Polis utilizada para pacificar a sociedade, o Direito pode ser considerado um meio para um fim. Mas esse fim só pode ser obtido se existir segurança e previsibilidade, duas coisas que obrigam o Direito a obter ou conquistar autonomia até se tornar um fim em si mesmo. Nesse sentido, o Direito é tributário da noção socrática. Mas ele obviamente independe das pessoas que o aplicam e que serão submetidas pela coisa julgada serem virtuosas. 

Os casos realmente difíceis não são aqueles que comportam mais de uma solução como dizem alguns juristas e sim aqueles em que aflora a ambivalência do Direito. Por exemplo, a esmagadora maioria das pessoas sabem que Netanyahu está comandando um genocídio em Gaza. Israel deve ser invadido para que ele seja preso? É possível não causar outro genocídio para interromper um genocídio em curso?

A ambivalência do Direito, quase sempre evidente nas relações internacionais, também pode ocorrer dentro dos Estados em situações de tensão política. Mas episódios semelhantes podem originar soluções distintas. 

Donald Trump incitou o ataque das hordas trumpistas ao Congresso dos EUA. Jair Bolsonaro planejou o golpe de estado fracassado que devastou as sedes dos três poderes em Brasília em 08 de janeiro de 2023. O norte-americano não foi e não será responsabilizado pelo que ocorreu em Washington, mas o brasileiro dificilmente deixará de ser denunciado como mentor intelectual da intentona da extrema direita feita em seu nome e com sua autorização. Todavia, Bolsonaro e os apoiadores dele seguem tentando radicalizar a população brasileira para obter uma solução diferente (aquela em que a autonomia do Direito será suspensa).

A luz tem características físicas ambivalentes que independem da ação humana. Mas a ambivalência do Direito depende sempre mais da ação humana do que da epistemologia. Esse é um ponto importante que não deve nunca ser ignorado. Especialmente agora que o Brasil precisa reunir recursos econômicos e humanos para minimizar a tragédia que o neoliberalismo, o fanatismo religioso e o negacionismo científico causaram no Rio Grande do Sul. 

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Não será possível reconstruir o Rio Grande do Sul com rezas ou preservando o arcabouço fiscal. Aquilo que é considerado necessário pelo mercado, para garantir a sustentabilidade os lucros dos especuladores, não será bom para o país como um todo nem atenderá as necessidades inadiáveis da população gaúcha nesse momento de crise. Ademais, nem o mercado nem os especuladores que exigem arrochos fiscais e deles se beneficiam irão sacrificar suas fortunas privadas a fundo perdido para recuperar cidades devastadas, reconstruir rodovias destruídas, financiar a limpeza de indústrias que foram inundadas, etc... 

No caso do Rio Grande do Sul, o Direito que sanciona a responsabilidade fiscal não pode e não deve ser considerado uma finalidade em si mesmo. Ele somente será útil ao país e às vítimas da tragédia se for ignorado, suspenso ou abolido. Isso, ademais, é algo constitucionalmente possível e inevitável. Nossa constituição prescreve a hegemonia da dignidade humana sobre os interesses privados e obriga o Estado a combater a miséria e a preservar vida e à saúde de uma população economicamente fragilizada. O Direito que tutela os lucros financeiros de um punhado de banqueiros e especuladores gananciosos não deve impedir a União de cumprir sua missão constitucional. Até porque, se abonar o RS à própria sorte o Brasil colocará em risco sua integridade territorial. 

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

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