O presente artigo se propõe a analisar, em linhas breves, em que medida a regra inserta na Constituição Federal, no sentido de que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião, deve ser compreendida, à luz do princípio da função social da propriedade. Para tanto, serão utilizados os princípios de interpretação constitucional, a fim de se alcançar o real sentido da norma estatuída no artigo 183, parágrafo terceiro, e repetida no artigo 191, parágrafo único da Carta Política de 1988.
Após a realização de pesquisas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, constatou-se que têm sido rejeitadas as pretensões de reconhecimento da prescrição aquisitiva sobre os bens públicos. A matéria, no entanto, carece de uma análise mais aprofundada, uma vez que o aludido tribunal ainda utiliza um entendimento que fora sumulado anteriormente à vigência da Constituição Federal de 1988, para solucionar as pretensões de usucapião de bens públicos.
Pretende-se abordar a questão da imprescritibilidade dos bens públicos, sob um enfoque novo, consentâneo à realidade social e arraigado à idéia da unidade e harmonia do Texto Constitucional.
A vedação constitucional à usucapião dos bens públicos tem por fim assegurar uma proteção especial a esta espécie de bens. Ora, esta proteção tem relação com a inalienabilidade que é a regra entre os bens públicos. Assim, a disposição genérica trazida pela norma não significa a não aplicação a tais bens do princípio da função social.
Corroboram este entendimento - de que aos bens públicos é imperioso o cumprimento da função social - as palavras da autora Cristiana Fortini [01]:
A Constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distancie do propósito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentável conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender à função social.
A função social da propriedade foi erigida à condição de princípio constitucional pelo legislador constituinte de 1988. Há que se ter em mente que os princípios constitucionais traduzem os valores superiores e essenciais de um Estado. Tais princípios orientam a produção legislativa infraconstitucional, podendo também servir de garantia direta e imediata aos cidadãos. Funcionam ainda como critério de interpretação e integração da Constituição e do sistema jurídico, dando unidade e coerência a este sistema. Na condição de princípio constitucional – mais que isso: de princípio constitucional fundamental – deve a função social ser obedecida por toda espécie de propriedade, seja pública, seja privada.
Na condição de princípio constitucional, tomado como corolário do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e, diante da sua estrita vinculação com o direito fundamental de acesso à moradia, é possível advogar a tese de que entre a norma-princípio da função social e a norma-regra de vedação de usucapião de bens públicos existe hierarquia axiológica.
Com efeito, embora não se possa falar em hierarquia normativa entre as normas constitucionais, é irrefutável que determinadas normas se destacam no texto constitucional, a exemplo do princípio da função social da propriedade, seja por eleição deliberada do constituinte, seja em razão da lógica do sistema. Seguindo os ensinamentos de Luís Roberto Barroso [02], é imperioso admitir, no Texto Constitucional, uma hierarquia axiológica, decorrente da ordenação dos valores constitucionais, a ser aplicada sempre que se evidenciarem conflitos entre duas regras ou uma regra e um princípio ou, mesmo, dois princípios.
Diante disto, na hipótese de eventual tensão entre a norma-princípio da função social da propriedade e a norma-regra que veda a usucapião de bens públicos, deve a primeira prevalecer, como mecanismo de obrigar que os bens públicos cumpram sua função social.
Ademais, a propriedade pública dissociada de sua função social não possui fundamento constitucional, não sendo, portanto, objeto de tutela e legitimidade. A função social, consoante as lições do professor italiano Stefano Rodotà [03], consubstancia-se como elemento componente da estrutura da propriedade, ao lado dos poderes de usar, fruir, dispor e reivindicar. A função social é elemento integrante, mas que condiciona os demais elementos, tornando-os legítimos, apenas se em consonância com ele. Melhor dizendo, o uso, a fruição, a disposição e a reivindicação somente serão legítimos, enquanto harmonizados com a função social. Nos dizeres dos professores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald [04]: "no perfil atual da propriedade, a titularidade isoladamente considerada é insuficiente; prepondera a sua legitimidade e a destinação".
Tendo em vista que os bens públicos são, comumente, classificados em: bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais, há que se explicitar que o princípio da função social incide diferentemente em cada um deles. Quanto aos dois primeiros, os bens de uso comum e uso especial, estando eles destinados a uma finalidade específica de atendimento a um interesse público, via de regra, a função social de tais bens será cumprida, pelo cumprimento dos fins a que se destinam. O problema pode surgir quanto aos bens dominicais, porquanto tais bens não possuem uma destinação específica e esta circunstância pode dar ensejo, no plano fático, a que tal espécie de bem não efetive o comando constitucional de cumprir sua função social.
Ressalve-se que não se está a afirmar que os bens dominicais não podem atender à função social da propriedade. Em absoluto. Embora os bens dominicais não se destinem ao público em geral, nem se prestem à consecução das atividades administrativas, devem apresentar função patrimonial, propiciando a obtenção de rendas pelo Estado. Neste caso, sendo apto a gerar rendas ao Estado - sem aventar outras utilidades possíveis - estará o bem destinado a cumprir uma função social.
O que se defende é que os bens dominicais estão mais propícios a não respeitarem o princípio da função social da propriedade. Por esta razão, o dogma da imprescritibilidade dos bens públicos não pode ser encarado de forma absoluta e sem levar em conta as particularidades de cada espécie de bem público.
Se é necessário que a todos os bens dominicais se destine uma função social, a inércia do Poder Público e a desídia em relação a certos bens deve ser eficazmente combatida e sancionada, inclusive através de mecanismos que atribuam a propriedade a quem efetivamente atribui uma função social ao bem, como é o caso de um possuidor de bem dominical abandonado que preencheu os requisitos para a usucapião.
Feitas estas considerações, indaga-se como agir na hipótese de um bem público, relegado ao abandono e que, por esta razão, serviu de moradia a determinada família ou conjunto de famílias, durante lapso de tempo suficiente para a aquisição da propriedade por usucapião, supondo que presentes estavam, durante todo este tempo, os demais pressupostos para a usucapião.
Percebe-se que, na hipótese aventada, o bem público não cumpriu qualquer função social, permanecendo abandonado. Rejeitar a pretensão de reconhecimento da usucapião, apenas em razão da aplicação literal e pura do artigo 183, parágrafo 3º, da Constituição permitiria a manutenção do caráter ocioso do bem. É preciso, pois, interpretar a norma aludida, levando em consideração os princípios da unidade da Constituição e da sua força normativa.
Na hipótese apresentada, se um ente da Administração deixou de destinar seu bem a um fim social, caberá ao Judiciário solucionar a questão, fazendo cumprir o comando constitucional, sem descurar pela unidade da Lei Maior. Diante disto, a mera subsunção da norma [05] ao caso concreto não soluciona o problema.
A solução, em verdade, deve levar em conta a seguinte idéia, traduzida nas palavras de Luís Roberto Barroso [06]: "a Constituição é um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central".
Deste modo, para interpretar a regra da imprescritibilidade, à luz do princípio da função social da propriedade, deve-se aplicar a técnica da ponderação, segundo a qual, utiliza-se um raciocínio mais complexo, apto a atuar multidirecionalmente, criando a norma que regerá o fato concreto, através de uma síntese dos diversos elementos normativos aplicáveis à situação.
Acrescente-se que o fator preponderante para caracterizar a natureza de um bem não deve ser, tão-somente, a personalidade jurídica do titular, mas também a afetação de suas finalidades a um determinado interesse público. Diante disto, distinguem-se os bens formalmente públicos dos bens materialmente públicos, segundo os autores Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves [07]:
Os bens públicos poderiam ser divididos em materialmente e formalmente públicos. Estes seriam aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, porém excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva. Já os bens materialmente públicos seriam aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, postos dotados de alguma função social.
De acordo com o exposto, é de se defender a possibilidade de usucapião sobre os bens públicos, como instrumento hábil a fazê-los cumprir sua função social, uma vez que a intenção do legislador constituinte, ao tratar da imprescritibilidade, referiu-se aos bens materialmente públicos. Expõe a tese a autora Cristiana Fortini, nos seguintes termos [08]:
A Constituição da República, ao afastar a possibilidade de usucapião de bens públicos, pretendeu acautelar os bens materialmente públicos, ou seja, aqueles que, pela função a que se destinam, exijam proteção, sob pena de sacrificar o interesse público.
Interpretação diversa se distancia da correta exegese da Constituição da República porque implica a mitigação da exigência constitucional de que a propriedade pública e a privada cumpram função social.
[...]
Importa considerar que a usucapião exige inércia, descompromisso do proprietário com seu patrimônio. Se a inércia e o descompromisso do proprietário privado são devidamente punidos, quer, via oblíqua, com o reconhecimento de que novo é o titular do bem, configurada a hipótese da usucapião, quer com a aplicação das penas, hoje devidamente delineadas no Estatuto da Cidade, insustentável defender que a Administração Pública possa negar a vocação dos bens que formam seu patrimônio, deixando de lhes atribuir a destinação consentânea com o clamor social.
Igualmente preocupados com uma correta interpretação do comando constitucional, os autores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald acrescentam mais dois argumentos para a defesa da incidência da usucapião sobre alguns bens públicos. Aduzem eles a necessidade de respeito ao princípio da função social da posse e da proporcionalidade [09]:
A nosso viso, a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao princípio constitucional da função social da posse, em última instância, ao próprio princípio da proporcionalidade.
[...]
Ou seja: se formalmente público, seria possível a usucapião, satisfeitos os demais requisitos; sendo materialmente público, haveria óbice à usucapião. Esta seria a forma mais adequada de tratar a matéria, se lembrarmos que, enquanto o bem privado "tem" função social, o bem público "é" função social.
Os autores que defendem a impossibilidade de usucapião aplicável a todos os bens públicos afirmam que como a lei não distinguiu não caberia ao intérprete fazê-lo. Não se pode concordar com este argumento.
Atualmente, a força criativa do intérprete não pode ser desprezada. Neste sentido, salientando as potencialidades interpretativas da dogmática constitucional, revelam-se as lições de Luís Roberto Barroso [10]:
O constituinte é invariavelmente mais progressista que o legislador ordinário. Tal fato dá relevo às potencialidades do direito constitucional, e suas possibilidades interpretativas. Sem abrir mão de uma perspectiva questionadora e crítica, é possível, com base nos princípios maiores da Constituição e nos valores do processo civilizatório, dar um passo à frente na dogmática constitucional. Cuida-se de produzir um conhecimento e uma prática asseguradores das grandes conquistas históricas, mas igualmente comprometidos com a transformação das estruturas vigentes. O esboço de uma dogmática autocrítica e progressista, que ajude a ordenar um país capaz de gerar riquezas e distribuí-las adequadamente.
A distinção, neste caso, é, portanto, necessária, a fim de resguardar a harmonia da Constituição, a sua unidade e força normativa e vinculante de seus preceitos. Afinal, há hipóteses em que a vedação absoluta da usucapião justificará situações fáticas em que o princípio da função social seja aniquilado e, conseqüentemente, o imperativo constitucional se revele letra morta, o que não se pode admitir.
Por todo o exposto, vê-se que a vedação à prescrição aquisitiva, encarada de modo absoluto a todos os bens públicos, inviabiliza a concretização dos princípios maiores esculpidos na Lei Fundamental. Desta sorte, há que se adotar uma solução que, sem violar as regras imanentes ao Direito Administrativo, se harmonize com os escopos do sistema constitucional. É preciso que, através da interpretação constitucional, se extraia uma solução justa para as demandas concretas por uma destinação adequada dos bens públicos.
É de se concluir, pois, que os preceitos constitucionais que vedam a usucapião sobre os imóveis públicos permitem relativização, à luz do caso concreto, a fim de se permitir uma destinação das terras públicas compatível com o interesse público.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 351.
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 2.ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do Poder Público: Em busca de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2004.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 6, p. abril/maio/junho, 2006.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
FORTINI, Cristiana. A Função Social dos Bens Públicos e o Mito da Imprescritibilidade. Revista Brasileira de Direito Municipal, Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. abril/junho, 2004
FREITAS, Juarez. A possibilidade de usucapião das terras devolutas em face de uma interpretação constitucional teleológica. Boletim de Direito Administrativo, 1994
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
MORAES, José Diniz de. A Função Social da Propriedade e a Constituição Federal de 1988 (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal da Bahia, 1996.
MOREIRA, João Batista Gomes. Direito Administrativo – Da rigidez autoritária à flexibilidade democrática. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005.
Notas
01 FORTINI, Cristiana. A Função Social dos Bens Públicos e o Mito da Imprescritibilidade. Revista Brasileira de Direito Municipal, Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. abril/junho, 2004, p. 117.
02 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 187.
03 Apud MORAES, José Diniz de. A Função Social da Propriedade e a Constituição Federal de 1988 (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal da Bahia, 1996, p.93.
04 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelso. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 209.
05 "Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião" Arts. 183, § 3º e 191, p.ú.
06 BARROSO, op. cit., p. 351.
07 FARIAS; ROSENVALD op. cit., p. 267.
08 FORTINI, op. cit., p. 120.
09 FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 267.
10 BARROSO, op. cit., p. 301.