Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Governar não é negar direitos para distribuir favores

Agenda 28/05/2024 às 17:33

Ao se referir a governos, o economista e escritor norte-americano Harry Browne (1917/1986) disse que o governo é bom em uma coisa:

“Ele sabe como quebrar as suas pernas, apenas para depois lhe dar uma muleta e dizer: se não fosse pelo governo você não seria capaz de andar”.

Esse ponto de vista pode parecer raivoso ou exagerado, porém nos faz pensar e analisar a questão sob a ótica do Brasil. Observando o resultado do governo brasileiro nos últimos 34 anos – período em que o povo elegeu de forma democrática, por meio do voto direto, cinco presidentes da República de diferentes partidos políticos e matizes ideológicas (do PT, do PSBD, do extinto PRN e do PL) além de governadores, prefeitos e membros do Congresso Nacional –, constata-se que nenhum dos eleitos teve a preocupação de enviar projetos de Lei visando justiça tributária, fundamental num país em que o Executivo arrecada muito em impostos pagos pela população e devolve pouquíssimo em bem-estar social a esses contribuintes.

Não houve, nessas três décadas, leis que obrigassem o chefe do Poder Executivo a fazer a correção anual (pelo índice inflacionário acumulado nos 12 meses anteriores) das tabelas de Imposto de Renda, das aposentadorias e das pensões concedidas pelo Regime Geral da Previdência Social. Tributar a inflação significa penalizar duplamente o contribuinte, porque a não-correção retira renda efetiva, enquanto a inflação enfraquece o poder de compra.

São milhões de brasileiros que dependem desse pagamento para viver e que perdem o poder de compra ano a ano em razão do crescimento da inflação.

O Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal-Sindifisco, em matéria publicada pelo site Globo.com em janeiro de 2024, mostrou que a defasagem das tabelas do IR era da ordem de 149,56%. Agora, com a correção feita pelo Senado, essa defasagem caiu para 99,65%, percentual que se fosse corrigido elevaria a isenção do Imposto de Renda para pessoas com remuneração de até R$ 5.638,11/mês. Ou seja, alcançaria 95% da população brasileira. Esse sim seria o maior projeto social do Brasil – superior ao Bolsa-Família - e garantido por lei.

Nesse período de pouco mais de três décadas, os governos brasileiros tampouco foram sensíveis à agonia diária de 122 milhões de cidadãos cuja renda mensal não ultrapassa um salário mínimo (hoje R$ 1.412,00/mês bruto e R$ 1.306,10/mês líquidos, equivalente  apenas e tão somente US$ 126,00/mês) de modo a preservar e aumentar um pouco o valor de sua forma de sobrevivência.

A falta de receita não pode ser usada como causa impeditiva porque nesse período a carga tributária aumentou 50% (passou de 22,5% para 33,5% do PIB). Os governos também tiveram tempo de sobra (mais de 30 anos) para elaborar soluções e se tivessem apresentado propostas legislativas para entrar em vigor em 5, 10 ou até 20 anos, hoje tudo já estaria resolvido.

A situação perdura, porém uma nova oportunidade se abriu agora, com a reforma tributária a ser enviada ao Congresso Nacional ainda este ano e já amplamente debatida.

Mas por que nada foi feito? Insensibilidade? Incompetência? Talvez nada disso. A resposta passa pelo pensamento de Harry Browne sobre o governo. O fato é que os governantes “quebraram as pernas” da imensa maioria da população ao não corrigirem as tabelas do IR, das aposentadorias e das pensões e ao não praticarem justo reajuste de salário- mínimo para garantir a esses cidadãos brasileiros maior poder de compra e para tornar um pouco mais leve aos ombros dos trabalhadores o peso dos aumentos da carga tributária e dos preços. Basta lembrar que após a promulgação da Constituição Federal de 1988, poderiam ter reduzido (ou até excluído) a incidência de impostos sobre os gêneros de primeira necessidade, de maior impacto sobre os mais pobres.

No entanto, a opção foi outra: a de entregar “muletas” por meio de “benefícios   sociais”    como    o    Bolsa-Família,    vale-gás,    vale-dignidade menstrual e outros, que apenas mantêm os mais pobres sob dependência, sem dar solução definitiva ao problema. São medidas de caráter paliativo, que nao resolvem o problema e escravizam a população, além de não possuírem   garantia alguma – vez que dependem da decisão do governante de plantão – e que não são capazes de dar dignidade à vida das pessoas. Nesse caso, é bom lembrar o que escreveu o filósofo norte-americano John Kenneth Galbraith (1908-2006): “Nada estabelece limites tão rígidos à liberdade de uma pessoa quanto a falta de dinheiro”.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Os governos também falharam inapelavelmente na questão da redução das desigualdades regionais e sociais. A questão é igualmente grave, como apontam os dados oficiais. A renda anual per capita dos habitantes dos 16 estados das regiões Norte e Nordeste até hoje é 36% inferior à média nacional. Temos, portanto, dois Brasis dentro de um só território. Uma das consequências diretas disso é que no Norte e Nordeste o número de beneficiários do Bolsa-Família ultrapassa o número de trabalhadores com carteira assinada em mais de 4 milhões de pessoas.

Naqueles estados, o número de brasileiros que têm emprego ou exercem outras atividades econômicas com carteira de trabalho assinada é também muito díspar (para menos) em relação as moradores de outros estados.

A    grave    anomalia    é    ainda    evidenciada    pela    discrepância    do posicionamento do Brasil no ranking das maiores economias do mundo (9º lugar) e no ranking per capita/ano (69ª posição) o que evidencia a má distribuição de renda. Tudo a demonstrar que as riquezas produzidas pelo país estão longe de refletir na qualidade de vida da sua população. A situação está a exigir maior transparência e garantia da dignidade dos cidadãos, assegurando-lhes mais direitos e menos favores oficiais.

Um exemplo bastante singelo comprova essa assertiva. Basta perguntar a um pai de família o que lhe dá mais satisfação: chegar em casa com uma bola ou uma boneca de presente para seu filho ou filha e dizer “papai comprou com a economia do salário” ou afirmar que “papai ganhou do prefeito/governador/deputado”? Qual das situações o fará sentir mais digno?

As maldades, a insensibilidade e a incapacidade de governar para todos bloqueiam a verdadeira cidadania e corroem o respeito e a dignidade humana. As “muletas” podem trazer algum alívio momentâneo, porém simbolizam fracasso e falta de perspectiva. Tudo o que o brasileiro não merece.

Sobre o autor
Samuel Hanan

Engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!