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Projeto de Lei 1904/24 e a 'Carta das Mulheres'

Agenda 18/06/2024 às 17:36

Projeto de Lei 1904/24 é um psicodélico, poderosíssimo. Não se olha a realidade, mas se constrói outra realidade, desapartada da real realidade.

O Projeto de Lei 1904/24 trata sobre abordo. A mulher que abortar será considerada homicida. Para configurar homicídio, o aborto de gestação acima de 22 semanas.

Outro "Projeto Salva Vida", o PL 434/2021 (Estatuto do Nascituro). Ninguém gosta de matar. Depende! Se analisarmos o Brasil, o gosto de matar estava presente na escravatura. O corpo dos escravos eram mercadorias, os nascituros também eram mercadorias. Nalguns momentos, os corpos dos escravos valiam menos do que mercadorias, pois certas mercadorias valiam mais do que os corpos dos escravos. Daí que, dependendo do “valor do corpo”, o senhor poderia “destruir” o “objeto corpo”. Nota-se que nenhuma empatia existia. Ou seja, nenhum valor inerente da pessoa negra. Conceitualmente, pessoas, independentemente de ideologia (política, religiosa, filosófica, econômica, sexualidade) têm direitos, como direito à vida, à habitação, ao transporte, à felicidade.

Direitos subjetivos, mas direitos que são protegidos pelo Estado Democrático de Direito. Direitos subjetivos, pois pode se ter dois direitos que entram em colisões. Direito à vida, todos têm. Direito de matar (homicídio), todos têm, quando em legítima defesa, estado de necessidade e cumprimento do dever. Direito de propriedade, todos têm. Direito de defender a própria propriedade, todos têm. Porte e posse de arma de fogo. Uma noite escura, a família dorme. Um barulho no quintal. Um dos familiares se assusta, pega sua arma de fogo, olha o quintal. Vê uma pessoa. A voz de advertência sobre a invasão. A pessoa invasora corre, o familiar dispara em direção da pessoa invasora. A mira certeira na cabeça da pessoa invasora. Há desproporcionalidade, não há razoabilidade. A pessoa invasora não demonstrou reação de ataque. O tiro foi certeiro. Pode-se considerar “falta de sorte” do invasor. As justificativas serão vastas para inocentar o atirador. Aos que defendem a propriedade, de forma ferrenha, quem invade assume o risco de ser morto ou lesionado. Ideia tolamente fora do ordenamento jurídico pátrio.

O direito à vida. O aborto, para alguns brasileiros, é homicídio. O nascituro é indefeso, nada tem a ver com a sua formação biológica. Os responsáveis são os pais biológicos. Ocorre, por uma hipocrisia ideológica, que os filhos nascidos fora do casamento eram filhos: “bastardos” , “ilegítimos”, “incestuosos”, “adulterinos”. Quem “pulava a cerca”, assim diziam os anciões, assumia o risco de ter uma vida desonrosa à luz da sociedade. Ocorre que quem perdia a honra era a mulher, por não controlar o instinto sexual, por deixar cair na lábia do garanhão. Mesmo que a mulher desvirginada tivesse alguma proteção do Estado, a proteção não era bem proteção, mas uma vida repleta de neuroses. O estuprador tinha o perdão, social e estatal, caso casasse com sua vítima. À vítima, a certeza de não ter que viver à luz da zombaria social e não ter o nascituro sem um “lar decente”. Se infeliz com a opção do casamento, nada como uma “terapia”, de que o casamento à luz da sociedade, dar-lhe-ia um lar, um teto, para a mulher estuprada e para o nascituro. Mesmo assim, o constante reforço do ego para suportar o implacável superego acusatório social. Fora do útero, a nova vida extrauterina tinha uma classificação social, negativo (bastardo, incestuoso, adotivo, adulterino, ilegítimo). Ou outras nomenclaturas, conforme o regionalismo.

Para relembrar, ou para quem nunca ouviu:

Adulterino — Este termo deriva de "adultério", que é o ato de um indivíduo casado deixar de ter fidelidade ao seu cônjuge para praticar relações sexuais com outra pessoa não casada, ou também casada. Um filho adulterino é um filho nascido de relações sexuais que constituíram um adultério, ou seja, é um filho de um casamento não aceito legalmente ou moralmente.

Incestuoso — refere-se a um relacionamento ou ato sexual entre membros de uma mesma família ou entre pessoas que se encaixam em relações de parentesco proibidas ou consideradas impróprias. Um filho incestuoso pode ser considerado, historicamente, um filho resultado de um relacionamento incestuoso, embora o uso desse termo precise ser considerado cuidadosamente, pois em algumas culturas, especialmente antes do século XX, filhos nascidos de relações ilegítimas fora de casamento podiam ser chamados de incestuosos, mesmo que a relação sexual que levou à concepção não seja legalmente ou moralmente proibida.

Bastardo : O "bastardo" é um adjetivo que, historicamente, refere-se a filhos a nascidos fora de casamento.

Havia outra possibilidade, a “Roda da Vida”, ou outras designações. Cilindros, nas portas das igrejas católicas, para receberem “doações”, os bebês. Os motivos eram diversos, desde “livrar da vergonha” — nascido fora do casamento, ou por ato de estupro — até dificuldades econômicas para criar. Quanto à renda per capta, o Brasil sempre foi um poço, sem fim, de desigualdades sociais. Uma relação entre ter filhos e economia familiar. Mais filhos, mais mão de obra para ajudar no lar. Isso para famílias pobres. Para famílias abastadas, a prole estudava, até fora do Brasil. A relação taxa de natalidade e economia estava sempre relacionada. Mais mão de obra barata, mais desenvolvimento econômico, para poucos, claro. A necessidade era um meio de garantir mão de obra, barata. Necessidade criada por ideologia racista, que fique claro. Quando se pensa em “princípio da igualdade”, não quer dizer que todos os brasileiros atingirão excelência financeira e econômica: iate, avião etc. Contudo, condições materiais para cada qual ter dignidade. A dignidade, na atualidade, não é luxo, apesar de que não é proibido ter luxo no Brasil, no entanto, ter o básico como eletroeletrônicos, eletrodomésticos, infraestruturada sanitária, iluminação, habitação. O capitalismo dá essa ideia de dignidade, o socialismo também, o comunismo também, as religiões também. Se tem na Terra, que seja de todos os seres humanos.

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A questão do aborto jamais será encerrada, pois existem “contras” e “a favor”. Liberal econômico poderá dizer que o aborto é viável quando não há possibilidade de se criar, sustentar, dá o mínimo de dignidade para a criança. Conservadores também concordarão que caso a família, original, não tem como criar e sustentar, poderá “doar” para uma família com melhores condições econômicas. Ambos, conservadores e liberais também pensam sobre melhorias econômicas capazes de gerar condições iguais para todos os pais criarem os seus filhos, “legítimos” ou não. Atualmente, pelo pelo Código Civil (LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002) e pela própria CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, “filhos são filhos”, não importa de fora do casamento ou não, ou mesmo fruto de incesto — neste último, a prole nascida por incesto tem os mesmo direitos, sucessórios.

Quantas mulheres infelizes viveram, ou melhor, tentaram viver, com prole gerada por estupro? Não importava se casada ou não, a obrigação de gerar o nascituro em seu ventre. Sim, soa como “O Conto de Aia”. Não podemos negar que o Direito brasileiro é fruto da ideologia cristão, para ser mais exato, católica. A LEI Nº 6.515, DE 26 DE DEZEMBRO DE 1977 (Lei do Divórcio) fora a “Lei da Ruptura”, por romper o dogma religioso da Igreja Católica Apostólica Romana com o Estado laico em questão de liberdade individual — casar e poder se divorciar para, talvez, ela liberdade individual, poder casar novamente. Se lançarmos olhar crítico, atual, sobre a proibição do divórcio, antes da referida Lei, é impensável que o Estado, implicitamente confessional, impeça os cidadãos e as cidadãs de serem livres. Inconcebível, também, no direito de o marido, pela LEI Nº 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916, impedir que sua mulher trabalhe fora do lar. As mudanças sociais ocorreram, por força imperativa e inerente da espécie humana, o querer ser livre. Lançarmos os olhares do passado para o presente. A escrava era obrigada a gerar uma vida em seu ventre para satisfação de seu senhor e sua senhora. E o escravo Roque José Florêncio? Um escravo que teve mais de 200 filhos. Sim, estuprava escravas, sob ordens de seu senhor, para gerar mais escravos e escravas. Temos, então, dois corpos, o do escravo e da escrava, como objetos, não pessoas. Se isso parece horrível, também é horrível que o Projeto de Lei 1904/24 dite regras para a mulher, principalmente estuprada. É “Um Conto de Aia”, brasileiro, a escravizar mulheres, porque não tem outra designação, quando os corpos femininos são controlados pelos senhores e senhoras contra o aborto, por estupro.

O Estado deve proteger o nascituro, com assistência médica, com políticas sociais capazes de garantir alimentação, necessária para a gestante e o nascituro, habitação, para ambos não morrerem soterrados ou afogados, segurança, através de modernização tecnológica na Segurança Pública, qualificação nos treinamentos para os agentes de segurança, principalmente quanto aos direitos humanos nas abordagens, salários dignos para os agentes, para não serem cooptados pelos narcotraficantes, milicianos.

O Estado também deve acabar com a ideia, secular, de que a mulher é objeto sexual do homem, um prêmio de conquista diante de vários outros “concorrentes”, uma mera reprodutora de filhos e de filhas etc. O feminicídio, por legítima defesa da honra, ocorre no Brasil, por ideologia construída e ensinada, pela “boa educação civilizatória”, de que o homem pode aplicar “justiça” em caso de ter dois pesos fincados em suas testas.

o Projeto de Lei 1904/24 é retrocesso. Tem que aumentar a pena para quem estupra; e estupro, na vigência do ordenamento jurídico, tanto ocorre de homem para mulher ou de mulher para homem, não importa o gênero. Não basta apenas punir. Se punição resolvesse, os países com pena de morte não teriam mais criminosos. A “tolerância zero”, do encarceramento em massa, que vem sendo aplicado nalguns países, dão esperanças de “um mundo melhor”. Psicopata pode matar? Depende. Há os que não matam. Pessoas não psicopatas podem matar? Sim! O exemplo do feminicídio, por doutrinação ideológica. Abusadores sexuais podem ser “pessoas normais”? Sim, quantas mulheres foram estupradas pelos “bons maridos”? Pedófilos podem não estuprar? Sim, muitos não estupram. Qual é, então, a causa dos crimes de abuso sexual? Uma delas, a ideologia de que a outra pessoa não passa de alívio da libido alheia. Um copo, ou mais, de bebida alcoólica, e a justificativa de que “perdi noção”. Para a mulher, alcoolizada, “Ela não disse nada”.

Eis a primeira providência a ser tomada, a educação em direitos humanos. E não criar encarceramento, não usar o medo para coagir e controlar. Estado democrático não quer pessoas coagidas para não fazerem, mas não fazerem por um motivo universal: o respeito pela dignidade humana.

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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