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Democracia em crise: quais as evidências?

Agenda 22/06/2024 às 09:45

É possível afirma que houve uma recessão democrática mundial nos últimos anos?

Introdução

Em 2015, Larry Diamond propôs o debate: “O mundo está em uma recessão democrática leve, mas prolongada desde 2006”. Dentre as principais conclusões de “Facing up the democratic recession” estava a ideia de que “entre 1974 e 2014 cerca de 30% das democracias entraram em colapso.” A tese estremeceu a comunidade acadêmica, que se debruçou sobre o tema como nunca tinha feito antes (Figura 1). Poucos anos depois, líderes como Donald Trump foram eleitos e populistas potencialmente autoritários se mostravam cada vez mais competitivos em democracias consideradas consolidadadas1. Desde então, a Ciência Política internacional se mobilizou para debater o tema. De olho na hipótese preocupante de que a democracia estaria regredindo em nível internacional, diversos best-sellers foram lançados. No contexto da eleição de Donald Trump em 2016, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt lançaram o best-seller “Como as democracias morrem?” que foi traduzido para diversos idiomas. Recentemente, no entanto, a maré virou. Alguns trabalhos colocaram o “consenso” pré estabelecido da recessão democrática em nível internacional em cheque. Afinal, quais as variáveis que mais importam para a sobrevivência da democracia? Quais as reais evidências que temos de uma recessão em escala global?

Figura 1


O populismo também morre

A principal crítica que pode ser feita ao trabalho de Levitsky e Ziblatt é metodológica. Os autores possuem umaanálise qualitativa de casos onde governantes populistas conseguiram degradar as instituições democráticas de maneira lenta e gradual. No entanto, Kurt Weyland sugere que atitudes antidemocráticas de governantes populistas também não são sinônimos de breakdown do regime. A contribuição principal do autor é mostrar os contrafactuais de líderes populistas que não conseguiram pôr seus planos autoritários em prática - numa crítica direta aos autores de “Como as democracias morrem/” por uma seleção na variável dependente. Em outras palavras, Weyland afirma que os autores selecionaram e analisaram os casos apenas onde governantes antidemocráticos tiveram sucesso, mas não analisaram casos onde eles fracassaram. Os motivos listados para o fracasso do populismo pelo autor são vários. O principal deles, no entanto, é sugerir que instituições democráticas importam e entram diretamente em confronto com lideranças populistas pela própria natureza adversarial deste tipo de liderança. Segundo o autor, o populismo teve menos sucesso na Europa do que na América Latina devido às diferenças institucionais das duas regiões, que são marcadas principalmente pela diferença entre presidencialismo, onde populistas conseguem sobreviver mais devido ao mandato fixo imposto pelas constituições e parlamentarismo, onde um governo ineficaz é rapidamente substituído. Segundo o autor, “parliamentary systems in Europe institute regular procedures for removing unsuccessful prime ministers, such as votes of no confidence or the replacement of governing coalitions. Consequently, failing populists can be removed more easily, before political deterioration and conflict reach the intensity that triggers the unusual procedures of impeachment or provokes mass protests in Latin American presidentialism”.

A despeito das instituições, no entanto, Kurt Weyland também mostra como o comportamento dos líderes populistas muitas vezes é autodestrutivo quando eles são expostos a diferentes crises e choques externos para qual “não existe uma saída mágica”. Como aconteceu na presidência de Jair Bolsonaro e Donald Trump, líderes populistas “convencidos dos seus próprios poderes sobrenaturais, os líderes carismáticos muitas vezes evitam conselhos, para não falar de críticas; em vez de consultar “os melhores e mais brilhantes”, cercam-se de amigos, leais e bajuladores. A equipe díspar e em constante mudança do Presidente Trump, por exemplo, não impressionava em termos de calibre intelectual. O caos desajeitado na Casa Branca produziu um fluxo sem precedentes de erros e equívocos, que, especialmente através do fraco desempenho no tratamento da pandemia da COVID‐19, contribuíram para o notável fracasso de Trump em ganhar a reeleição”.

As variáveis explicativas da resiliência: renda e experiência democrática

Em “Why democracies survive?”, Bronwlee e Miao mostram que alguns achados clássicos da Ciência Política ainda permanecem muito firmes para explicar o colapso e a resiliência do regime. O mais relevante dos achados trabalhados por Brownlee e Miao é o de Przeworski (1997), que elucida a renda per capita como a variável que de longe melhor explica a sobrevivência democrática. No seu artigo, Przeworski é enfático: “nenhuma democracia jamais foi subvertida, nem durante o período que estudamos, nem antes, nem depois... num país com renda per capita superior à da Argentina em 1975”. Em 2022 a realidade é um pouco mas não tanto diferente: utilizando dados de renda pareados pelo poder de compra, duas outras democracias com a renda maior que a da Argentina em 1975 colapsaram: Turquia e Maldivas. Além dessas duas, a Tailândia, que tem renda um pouco inferior, também colapsou. No entanto, outra variável parece explicar a erosão democrática em tais países: multipartidarismo e experiência com regimes democráticos ou semi competitivos, ambas quase que historicamente inexistentes nos países que colapsaram acima do patamar de renda Argentino.

Prosseguindo, através de uma análise de sobrevivência os autores mostram que cerca de 73% dos colapsos democráticos que aconteceram entre 2000 e 2019 ocorreram em países com menos da metade da renda per capita da Argentina de 1975, resultados que sugerem a força da renda como principal variável explicativa da resiliência democrática, em consonância com os achados de Przeworski (1997). Outros dados interessantes no sentido de enfatizar a renda como a grande determinante da sobrevivência da democracia são levantados pelos autores: “para a democracia eleitoral média do início do século XXI, a probabilidade de sobrevivência aumenta na medida em que a renda per capita aumenta… com mil dólares de PIBpc a probabilidade de sobrevivência é de cerca de um terço…. ao alcançar 20 mil doláres, ela entra no reino da certeza com 97% de chance de sobreviver”. Continuando a ênfase na renda, os autores discutem: “o elevado PIBpc (não proveniente de petróleo) continua a ser o preditor mais consistente de sobrevivência nas democracias eleitorais. Apesar do caso da Turquia, os elevados níveis de desenvolvimento continuam a proporcionar uma das defesas mais fortes contra a autocracia. Nos países ricos que não dependem das receitas do petróleo, mesmo os líderes mais sedentos de poder encontrarão provavelmente obstáculos se tentarem sufocar a dissidência”.

Tendo em vista os recentes colapsos democráticos que estão acontecendo em países como o Niger, localizados na Região do Sahel na África, a predição certeira dos autores chega até mesmo a assustar quando eles defendem que “both types of democratic breakdown can be expected to continue to bedevil states as impoverished as Haiti, Nepal, and Niger”. No entanto, os autores são cuidadosos em avaliar que, apesar da grande força explicativa, não existe determinismo baseado na renda per capita e que outros fatores como o nível de multipartidarismo de um país também pode servir como uma forte proteção contra devaneios autoritários, O exemplo citado pelos autores é o do Ecuador, uma democracia eleitoral de baixa renda: “In the first half of 2013, left-wing populist and thrice-elected president Rafael Correa appeared to be taking Ecuador “down an increasingly authoritarian path.”As his personal control over national institutions grew, Correa “looked like a sure bet to become president-for-life.”Yet prior politics suggested—and later events confirmed—that Correa would struggle at erecting a one-person autocracy. By 2017, the political and economic winds had turned against Correa; he had been forced to scupper his reelection plans and back an ostensible surrogate, Lenín Moreno. Moreno won the presidency in a runoff, then reversed much of Correa’s intended legacy and served only a single term. He did not run in the 2021 election, and in May of that year peacefully passed power to the democratically elected opposition candidate”.

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Além de reviver a tese clássica e atual de Przeworski, a outra grande contribuição dos autores é a investigação da relação entre recessão e colapso democrático, o que mais uma vez os coloca em confronto com a tese de que a democracia estaria vivendo uma recessão em escala internacional. Apesar de muitos países terem de fato sofrido um fenômeno de recessão democrática, o colapso democrático não foi uma consequência determinista da recessão: “Por mais cativante que tenha sido, a história da recessão anterior ao colapso tem sido muito menos comum do que a história da recessão– e da recuperação – nas democracias eleitorais”. E finalizam dizendo: “Se os comentadores quiserem opinar sobre a longevidade de uma democracia, fariam bem em falar do retrocesso como uma doença geralmente não fatal, da qual as democracias eleitorais frequentemente recuperam”.


Quais as evidências de uma recessão democrática?

As evidências dos indicadores de democracia

A democracia é um fenômeno difícil de definir e mensurar (Little & Meng, 2022), assim como qualquer fenômeno político, econômico ou social das ciências humanas. A despeito das dificuldades, indicadores de democracia foram construídos para auxiliar os pesquisadores nas análises do fenômeno. Lançado anualmente num formato de relatório e com dados abrangentes desde o século 19 para vários países, o V-Dem é hoje um dos indicadores de democracia mais utilizados nos estudos acadêmicos. No seu relatório lançado em 2023 (referente ao ano de 2022), o V-Dem afirmou que o nível de democracia em 2023 estava de volta ao mesmo nível de democracia de 1986, ano no qual o mundo ainda estava inserido num contexto de guerra fria e a terceira onda de democracia ainda estava longe de acabar. A afirmação seguia o estado de espírito da disciplina no final da década passada que buscava investigar respostas para a potencial crise global da democracia.

Com a afirmação preocupante do V-Dem em mente, Little e Meng sugerem que pode haver um problema na construção dos indicadores de democracia. Para defender este argumento os autores constroem um indicador objetivo de democracia que difere do indicador construído pelo V-Dem, que por sua vez é sujeito a um razoável nível de subjetividade dos codificadores selecionados para responder os questionários do instituto e servem como base para a construção dos indicadores. Já no início do trabalho é evidente notar a disparidade entre o indicador construído por Little e Meng (2022) e os indicadores de democracia vigentes como V-Dem e Freedom House: no indicador objetivo o padrão é de estabilidade enquanto o padrão global dos indicadores de democracia com componentes subjetivos é de uma queda, ainda que pequena.

Figura 1 - Indicadores de democracia

Na linha mais grossa, o indicador objetivo de Litle e Meng, no tom cinza claro o indicador de democracia do Freedom House e na linha preta fina, o indicador de poliarquia do V-Dem. Fonte: Little e Meng (2023)

A análise de Little e Meng, no entanto, não fica presa apenas no valor agregado dos indicadores de democracia. Os autores discutem de maneira direta cada um dos componentes utilizados na construção do indicador objetivo de democracia e as suas tendências destoantes dos componentes dos indicadores mais subjetivos. O indicador construído por Little e Meng agrega dados objetivos como séries históricas de derrotas de incumbentes, total de anos de incumbentes no cargo, número de instituições de contrapesos formais ao executivo, número de jornalistas presos e outros indicadores objetivos de competição eleitoral. O achado dos autores é contundente: baseando-se apenas em dados objetivos, “the global pattern is one of democratic stability or stagnation, rather than decline”.

Segundo Przeworski (2019), “democracia é o regime onde incumbentes perdem eleições e vão embora quando perdem”. Com a centralidade da dimensão eleitoral, Little e Meng analisam se os atuais incumbentes estão perdendo menos eleições do que em anos anteriores, se incumbentes estão permanecendo mais tempo em média no cargo e se as eleições, de maneira geral, estão ficando menos competitivas. Olhando para esses indicadores, a resposta é: não. A proporção de eleições onde incumbentes ganham e perdem seguiu um relativo padrão desde o final da década de 1990. Resultados parecidos são encontrados na análise da duração dos mandatos dos incumbentes e nos indicadores de competição eleitoral da Database of Political Institutions.

Os únicos dados objetivos que sugerem alguma deterioração no regime democrático são o número de jornalistas presos que aparece em clara ascensão e a proporção de eleições com o executivo controlando ambas as casas do legislativo, também em ascensão desde 2010. No entanto, há algumas ressalvas: a proporção de eleições onde o executivo controla ambas as casas do legislativo ainda está muito longe de alcançar os valores históricos mais altos que foram registrados no fim da década de 1980. Além disso, ao mesmo tempo que o número de jornalistas presos tem crescido ao redor do mundo, o número de jornalistas mortos tem diminuído, sugerindo que o custo para executar jornalistas por parte de líderes autoritários tem se tornado mais elevado e que as autocracias podem estar se tornando menos autoritárias através desse mecanismo.

Problemas nos indicadores subjetivos

A diferença entre os resultados encontrados por Little e Meng (2022) e os resultados encontrados pelos relatórios anuais do V-dem tem uma explicação clara segundo os autores:subjetividade. Segundo os autores, há uma variação marginal razoável nas respostas entre os codificadores do V-Dem, que por sua vez afirmam o seu próprio nível de confiança na resposta da construção dos indicadores. Esse é um problema potencialmente grave, principalmente tendo em vista que a escala das respostas do V-Dem variam pouco. Em muitos casos, as respostas do V-Dem variam apenas de 0 até , 4 o que faz com que apenas um ponto de diferença na resposta dos codificadores signifique uma discordância média de cerca de 20%. Nesse ponto, os autores são enfáticos: “na verdade, os codificadores V-Dem discordam da frequência não trivial. Normalmente existem entre cinco a dez codificadores para cada observação. Como mostramos, a discordância é relativamente semelhante entre variáveis; o desvio padrão médio entre codificadores que fazem a mesma pergunta geralmente varia de 20% a 25% da escala. A maioria das variáveis está numa escala de 0 a 3 ou 0 a 4 pontos, o que corresponde a discordar da média em quase um ponto”.

Por fim, os autores são contundentes em suas conclusões: “Em primeiro lugar, a afirmação comum de que estamos num período de declínio democrático global massivo não é claramente apoiada por provas empíricas. Como outros já observaram, as medidas codificadas por especialistas documentam apenas um fraco declínio nos últimos anos. Acrescentamos a esta observação que, nos indicadores objectivos, há evidências mínimas de retrocesso global”. Apesar disso, os autores também fazem algumas concessões ao outro lado do debate quando admitem que “não estamos sugerindo de que não esteja havendo recessão democrática em um país em particular”, dialogando diretamente, dessa maneira, com outros teóricos como Przeworski e Bartels, que também sugerem retrocessos em alguns países em casos específicos.

As evidências da opinião pública

A democracia é conhecida como um equilíbrio entre elites que disputam o poder (Graham et al, 2017). O papel da opinião pública nos colapsos democráticos não é determinante: Przeworski (2019) mostra como o golpe de estado de 1973 no Chile aconteceu sem apoio da população. Em última instância, no entanto, a opinião pública pode representar uma mudança de crenças das sociedades que por consequência podem influenciar as elites e reformar instituições, o que dá importância ao estudo de opinião pública. Diante disso, existem evidências de que a recessão democrática esteja acontecendo nas sociedades democráticas? Estariam as sociedades democráticas se tornando menos liberais e tolerantes?

Com o objetivo de responder a essa questão, Larry Bartels em “Democracy erodes from the top”é mais um em fazer voz contra o consenso estabelecido da recessão democrática em nível internacional. Numa análise agregada de décadas de dados de opinião pública em diversos países europeus, Bartels não acha evidências de que a opinião pública esteja se tornando mais antidemocrática: “o conhecimento convencional sobre uma “crise da democracia” na Europa contemporânea está em total conflito com a evidência resultados de pesquisas de opinião pública”. Pelo contrário: apesar da teoria sobre a ascensão do populismo e de outros movimentos antidemocráticos utilizar a imigração como potencial mecanismo, os resultados encontrados por Bartels são completamente diferentes, mostrando que os países que mais receberam imigrantes como Suécia e Alemanha foram também os países que mais tiveram um aumento na opinião pública do suporte à imigração. Larry Bartels sugere que houve uma mudança na opinião pública das sociedades europeias principalmente depois da crise econômica que atingiu em cheio a Europa em 2008: “Aplicando esta periodização, descobriremos geralmente que a opinião pública mudou um pouco durante a crise, mas posteriormente voltou ao estado anterior. padrões de crise”.

Além disso, mesmo analisando o crescimento de alguns partidos de extrema-direita na Europa, o autor não vê relação entre o sucesso dos partidos e uma mudança no sentimento da opinião pública: “Minhas análises sugerem que nenhum destes partidos deveu a sua ascensão a um aumento significativo da direita sentimento populista; na verdade, em alguns casos, o seu apoio eleitoral cresceu ainda mais à medida que a prevalência do sentimento populista de direita nas suas sociedades diminuía significativamente. O seu sucesso parece dever-se principalmente, em graus variados, à liderança carismática, cobertura exagerada da mídia e os tropeços e escândalos dos principais concorrentes”. A tese de Bartels é clara: se existe uma recessão democrática, ela não é causada por mudanças na opinião pública, mas sim pelas atitudes das elites políticas.


Conclusão

Esse ensaio buscou responder duas questões fundamentais sobre o debate atual que ronda a disciplina da Ciência Política. Afinal, o que mais importa para a sobrevivência da democracia? Quais as evidências de que as democracias do mundo estão passando por um retrocesso? A primeira pergunta diz respeito a quais variáveis deve-se atentar quando o assunto é a sobrevivência do regime democrático. A segunda diz respeito às evidências contrárias à hipótese dominante na disciplina desde meados da década de 2010, que defende que as democracias do mundo estão sob risco real de morrerem. Respondendo a primeira pergunta, Brownlee e Miao mostram que algumas leis da Ciência Política continuam funcionando: a maioria dos colapsos democráticos aconteceram abaixo do ponto de corte proposto por Przeworski (1997), ou seja, não deveriam ser surpreendentes. A riqueza dos países, então, continua sendo a melhor variável para explicar a sobrevivência do regime democrático, apesar de nas últimas duas décadas ter se tornado insuficiente2 para explicar os colapsos de maneira generalizada. Ainda assim, outra variável plausível parece surgir como explicação: multipartidarismo. Segundo Brownlee e Miao, “mesmo as democracias eleitorais mais jovens têm um poderoso mecanismo de defesa: o seu próprio pluralismo político, enraizado em círculos eleitorais sociais e encarnado por partidos e candidatos. Esta resistência inata à autocracia civil é tão fundamental que muitas vezes se esconde à vista de todos”. Além disso, Brownlee e Miao mostram como o fato da existência de recessão não deveria ser alarmante nos níveis atuais pois a existência da recessão não necessariamente significa colapso.

Respondendo a segunda pergunta, os achados de Little e Meng contribuíram para mostrar que os indicadores de democracia podem ter potenciais problemas de subjetividade que não devem ser ignorados, mostrando que a realidade pode ser bastante diferente quando considerados apenas dados subjetivos. Little e Meng também lançam luz sobre outros fatores que devem ser levados em consideração em análises agregadas como pesos referentes às populações dos países. Seguindo a mesma linha e com uma análise robusta de tendências de dados de opinião pública em mais de 20 países europeus, Larry Bartels também chega em conclusões parecidas: não existe evidência de que as democracias avançadas estejam passando por mudanças comportamentais que colocariam em xeque os valores de tolerância que sustentam as democracias liberais no Ocidente. O autor ainda chega em resultados otimistas: valores relacionados à tolerância com a imigração, por exemplo, cresceram na opinião pública dos países que mais receberam imigrantes. As conclusões do livro do Bartels, dialogam com a literatura especializada da ciência política sobre a democracia que dá ênfase ao comportamento de elites políticas, e não a opinião pública, como determinante final da resiliência do regime.

Por fim, Kurt Weyland faz uma resposta contundente aos principais proponentes da tese da de que “as democracias estão morrendo”. O autor enfatiza que vieses de seleção não podem existir nesse tipo de discussão e explora os casos de lideranças populistas que, diferentemente das trabalhadas por Levitsky e Ziblatt em “Como as democracias morrem?”, não obtiveram sucesso em suas pretensões autoritárias. O argumento de Kurt Weyland pontua a importância de instituições e o próprio comportamento divisivo e autodestrutivo das lideranças como a principal causa de seu fracasso.

Dessa maneira, apesar de ter sido um consenso implícito entre a segunda metade da década de 2010 e o início da década de 2020, a ideia da recessão democrática em nível internacional não possui evidências suficientes para se sustentar3. Os relatórios dos institutos que constroem os indicadores de democracias podem estar sendo reféns da subjetividade natural da própria construção dos indicadores. Dessa maneira, não existem evidências de que democracias consolidadas estão colapsando, e os colapsos do regime democrático que aconteceram nos últimos anos não deveriam surpreender, pois já seriam explicados por teorias da sobrevivência do regime democrático já conhecidas.


Referências

Bartels, Larry M.. Democracy Erodes from the Top: Leaders, Citizens, and the Challenge of Populism in Europe, Princeton: Princeton University Press, 2023. https://doi.org/10.1515/9780691244518

Diamond, L. (2015). Facing up to the democratic recession. Journal of Democracy, 26(1), 141-155.

COPPEDGE, Michael et al Why Democracies Develop and Decline, Cambridge University Press, 2022. CAPÍTULO 6. Hicken et al Political institutions and democracy.

Little, Andrew and Meng, Anne, Measuring Democratic Backsliding (July 18, 2023). Little, Andrew and Meng, Anne. Forthcoming in "PS: Political Science & Politics", Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=4327307 or https://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4327307

Luo, Z., & Przeworski, A. (2021). Democracy and its vulnerabilities: Dynamics of democratic backsliding. Available at SSRN 3469373.

Levitsky, S., & Ziblatt, D. (2018). Como as democracias morrem. Editora Schwarcz-Companhia das Letras.

GRAHAM, B., MILLER, M., & STRØM, K. (2017). Safeguarding Democracy: Powersharing and Democratic Survival. American Political Science Review, 111(4), 686-704. doi:10.1017/S0003055417000326

Przeworski, A. (2019). Crises of democracy. Cambridge University Press.

Adam Przeworski and Fernando Limongi, “Modernization: Theories and Facts,” World Politics 49 (January 1997): 165.

Weyland, K. (2022). How populism dies: political weaknesses of personalistic plebiscitarian leadership. Political Science Quarterly, 137(1), 9-42.


Notas

  1. Marine Le Pen chegou ao segundo turno em 2017, mesmo ano em que o AfD conseguiu ingressar no parlamento alemão.

  2. Como os próprios Brownlee e Miao dizem, “o fato de terem acontecido colapsos democráticos abaixo do nível de renda da Argentina em 1975 mostram que não existe relação determinística entre desenvolvimento econômico e democracia”.

  3. O V-Dem lançou uma resposta metodologicamente robusta à resposta dos achados de Little e Meng e mostrando problemas na substituição de indicadores de democracia mais subjetivos por objetivos. Via redes sociais, Meng respondeu dizendo que seu objetivo não é construir um indicador para substituir os indicadores atuais, mas sim mostrar que indicadores subjetivos podem ter falhas.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Alan Cavalcanti. Democracia em crise: quais as evidências?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7661, 22 jun. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109920. Acesso em: 18 dez. 2024.

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