É POSSÍVEL considerar, ainda que de forma perfunctória, como IRREGULAR todo imóvel (terreno, loteamento ou mesmo edificação) que, avesso às normatizações postas, segue na marginalidade de tudo que fora estabelecido para seu adequado enquadramento e situação. Muitas formas de irregularidade podem ser apuradas examinando a documentação imobiliária, havendo vários cenários. Ainda hoje muitos imóveis são transacionados por Instrumentos Particulares, sem consulta à situação registral atualizada e essa prática nefasta só aumenta uma estatística desastrosa: mais de 30 milhões de imóveis podem ser considerados IRREGULARES no Brasil, conforme dados do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional de 2019 (https://veja.abril.com.br/coluna/real-estate/comoobrasil-virou-destaque-mundial-em-irregularidades-imobiliarias).
A doutrina especializada conhece bem o problema; como em muitas outras situações da vida, conhecer o problema pode ser o primeiro passo para tratá-los e resolvê-los. Segundo AMADEI e AMADEI em sua clássica obra (Como lotear uma gleba: o parcelamento do solo urbano em seus aspectos essenciais - Loteamento e Desmembramento. 2018) o "parcelamento do solo urbano é subsistema do macrossistema da cidade, que expressa operação polivalente de INTEGRAÇÃO de espaços públicos e privados, pelo FRACIONAMENTO sustentável da PROPRIEDADE imobiliária, servindo de base a múltiplas acomodações civis, urbanísticas e ambientais relevantes". O conceito lapidado é importantíssimo e, nessa linha de intelecção, os referidos mestres classificam o "parcelamento" (ou loteamento, se assim o leitor preferir) do solo da seguinte forma:
"1. PARCELAMENTO REGULAR: é o parcelamento aprovado, registrado e devidamente executado (ou implantado), em conformidade com a Lei e com as licenças expedidas;
2. PARCELAMENTO CLANDESTINO: é parcelamento não aprovado, oculto à Administração Pública;
3. PARCELAMENTO IRREGULAR: é parcelamento aprovado, mas não registrado ou, ainda, que registrado, com falha na implantação;
4. PARCELAMENTO REGULARIZADO: é o parcelamento informal (clandestino ou irregular) que foi formalizado, pela regularização urbanística, administrativa, registrária e civil".
É fácil imaginar que exigir a comprovação da regularidade seja uma das etapas mais óbvias para os adquirentes, todavia, na prática não costuma ser o que acontece, especialmento quando o adquirente não conta com a assessoria jurídica especializada já que do cidadão comum não se espera conhecer todos esses detalhes complexos e sofisticados que envolvem a compra de um imóvel. De toda forma, situação muito comum que nos deparamos com frequência é a do sujeito que adquire/ocupa imóvel em TERRENO/LOTEAMENTO IRREGULAR - quase sempre a situação já se arrasta há anos - e deseja regularizar seu imóvel, obtendo o "RGI" em seu nome. Como será possível se muitas vezes o mesmo não possui nem mesmo ESCRITURA ou qualquer outro título que justifique sua posse?
O fato de o imóvel estar erigido sobre loteamento/terreno irregular não pode representar óbice para a regularização pela prescrição aquisitiva (USUCAPIÃO), desde que comprovados os requisitos para a aquisição através da Usucapião, conforme a espécie pretendida. Tal questão já foi inclusive enfrentada pelo STJ que, através do Tema Repetitivo 1.025, julgado em 2021 definiu ser cabível a aquisição de imóveis particulares ainda que edificados sobre loteamento irregular. Do processo que serviu de base para o referido Tema ( REsp 1818564/DF) podemos extrair, pela sua importância, seguintes excertos:
"Não há, portanto, como negar o direito à usucapião sob o pretexto de que o imóvel está inserido em loteamento irregular, porque o direito de propriedade declarado pela sentença (dimensão jurídica) não se confunde com a certificação e publicidade que emerge do registro (dimensão registrária) ou com a regularidade urbanística da ocupação levada a efeito (dimensão urbanística). (...). Eventual construção irregular, supressão de nascente ou risco à saúde pública continuarão a existir independentemente de o juiz, na sentença, deferir ou indeferir o pedido de usucapião, sendo certo que tais irregularidades devem ser corrigidas por remédios próprios, a cargo do Poder Público, pelo poder de polícia que lhe é inerente. A declaração da usucapião, vale dizer, é incapaz de causar prejuízo à ordem urbanística, sendo certo, da mesma forma, que o indeferimento do pedido de usucapião não é capaz, por si só, de evitar a utilização indevida da propriedade. (...) Sob essa perspectiva, a declaração da usucapião, ao contrário do que alegado pelo Ministério Público Federal, pode revelar-se, de extrema utilidade para o restabelecimento de uma situação de regularidade na ocupação urbana, imprimindo a dignidade humana e dando ensejo à compreensão de que o capital pode e deve ser humanista. (...) A declaração da prescrição aquisitiva pode ser o primeiro passo para restabelecer a regularidade da ocupação urbana, atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana que pode e deve ser feliz. E o STJ deve honrar a cidadania".
Com toda razão - e ousamos acrescentar - que se de fato a legislação não exige nas espécies de Usucapião que "regularidade" registral ou urbanística como um dos requisitos para o estabelecimento da Usucapião como fenômeno para aquisição imobiliária (vide, por exemplo, artigo 1.238 do Código Civil) a Usucapião deve ser reconhecida em favor do pretendente - tanto em sede judicial quanto em sede extrajudicial - ainda que se trate de loteamento/terreno irregular ou clandestino. Dessa forma, a Usucapião - inclusive manejada diretamente nos Cartórios, sem processo judicial, com assistência de Advogado na forma do art. 216-A da Lei de Registros Publicos - pode ser um dos caminhos para iniciar a regularização do imóvel, objetivando o Registro de Imóveis em nome do possuidor, como assenta recente decisão do TJSP que inclusive anulou a sentença do Juízo de origem, determinando o prosseguimento do feito:
"TJSP. 1002044-15.2020.8.26.0441; J. em: 16/09/2021. APELAÇÃO CÍVEL – USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA – Sentença de improcedência de plano – Autores que, à época do ajuizamento da ação estavam na posse mansa e pacífica do imóvel, com animus domini, há mais de cinco anos e comprovaram ter justo título consistente em instrumento particular de venda, compra, cessão e transferência de direitos e obrigações – Loteamento irregular – IRRELEVÂNCIA – Prosseguimento da demanda em primeira instância, de rigor – Recente julgamento do Tema 1025 sob o rito dos recursos repetitivos pelo C. STJ em consonância com o entendimento ora esposado - SENTENÇA ANULADA".