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O princípio ético do bem comum e a concepção jurídica do interesse público

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Agenda 01/12/2000 às 00:00

12. Primazia do Bem Espiritual sobre o Bem Material

Uma segunda conseqüência prática é a de que são mais comuns os bens espirituais do que os materiais, uma vez que a comunhão naqueles não tem limite quantitativo, enquanto a participação nestes tem esse limite (conforme já visto ao examinar a noção de participação).

Assim, o bem honesto – aquele que é em si perfeito e apetecível, captado como tal pela razão – está acima do bem deleitável – aquele que aquieta o apetite, uma vez que apraz aos sentidos – uma vez que os sentidos devem subordinar-se à parte mais nobre do ser humano, que é a razão.

Nesse sentido, não é a abundância de bens materiais, que só têm um valor instrumental para a felicidade do homem, que qualifica como boa a política adotada numa sociedade. Isto porque o bem comum não se reduz a um conjunto de bens materiais de uso público. Daí que o fim da sociedade política deva ser propiciar a que o homem possa alcançar a sua bondade existencial e fazer o bem, agindo virtuosamente: crescimento interior mais do que exterior. Ser melhores homens e melhores cidadãos contribui mais para o bem da sociedade do que qualquer incremento no bem estar material, pois a felicidade, no final das contas, não está em ter, mas em ser.

Exemplo que se destaca, na aplicação desse princípio, demonstrando como a promoção do bem particular pela autoridade pública, quando de natureza superior, contribui substancialmente para a consecução do próprio bem comum, é o da proteção legal que se dá à gestante. A maternidade, como valor fundamental para a existência e sobrevivência de qualquer sociedade humana, não pode estar subordinada a valores menos relevantes, ligados à lucratividade ou produtividade. Assim, posturas discriminatórias em relação à mulher, afastando-a do mercado do trabalho quando mãe de família, em face dos encargos sociais que a licença-maternidade supõe, são altamente nocivas para o bem comum da sociedade, que depende, para sua manutenção e crescimento, de novos integrantes, que sejam, ao mesmo tempo, sadios e equilibrados.

Assim, no Brasil, a promulgação da Emenda Constitucional n. 20/98, que fixou em R$1.200,00 o teto de todo e qualquer benefício previdenciário, desembocou na edição da Portaria n. 4883/98 do Ministério da Previdência Social, que passou a atribuir ao empregador a complementação do salário-maternidade que ultrapassasse esse teto. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a ADIn n. 1946-5 (Rel. Min. Sydney Sanches), considerou inconstitucional a portaria, por introduzir elemento de discriminação contra a mulher gestante no mercado de trabalho. A própria Convenção n. 103. da OIT já previa a vedação à imposição do salário-maternidade ao empregador, como elemento de proteção à mulher.

Lembre-se também que a experiência brasileira e internacional da adoção do contrato a tempo parcial como forma de propiciar à mulher uma realização profissional externa e o tempo necessário para a atenção dos filhos, bem maior que possui, tem sido salutar e já vai dando os seus frutos, de tal forma a impedir que as situações críticas de Itália, Alemanha e França, com crescimento demográfico negativo, não obstante o estímulo estatal para a maternidade (na esperança de se reverter esse quadro), possam se repetir em outros países.


13. Limites ao Princípio do Bem Comum

Pelo princípio da preferência, o bem comum tem primazia sobre o bem particular. No entanto, essa primazia tem seus limites, impostos pelo princípio da proporcionalidade, segundo dupla vertente:

Assim, na relação entre o bem comum e o bem particular, há uma proporção conveniente, no campo tributário, entre o volume de impostos exigidos para a manutenção do Estado e a capacidade contributiva de cada membro da sociedade. O mesmo se diga, no campo trabalhista, entre o volume de produção e o nível salarial, quando se trata de estabelecer a distribuição do produto social por meio do ajustamento entre preços e salários.

Nesse sentido, ainda que buscasse o bem comum, seria injusta uma lei que distribuísse desigualmente suas cargas entre os componentes da sociedade.


14. Contribuição Particular para o Bem Comum

Outra conseqüência prática da compreensão do que seja o bem comum é a da participação ativa dos membros da comunidade na sua consecução.

A bondade do indivíduo é tanto maior quanto, além se buscar e alcançar a própria perfeição, for causa da perfeição de outros: ama não somente o bem, mas também comunicar esse bem aos demais.

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Talvez o que explique uma visão conflituosa entre bem comum e bem particular seja a postura de considerar o bem dos demais como alheio ao próprio: não se guarda para com o próximo o mesmo amor que se tem a si mesmo. Assim, uma vez perdida a comunhão que se estabelece por se participar de um mesmo bem, chega-se à desunião, em que o bem do próximo passa a ser considerado como mal próprio. Numa sociedade em que imperasse tal postura, não haveria comunidade, mas mera agregação material de seres com apetites contrapostos.

É fundamental, portanto, que cada membro da sociedade veja no bem comum a sua própria realização e para isso colabore. Assim, todos os homens devem contribuir para o bem comum da sociedade, o que pode ser concretizado através das seguintes condutas:

A participação ativa na vida social, opinando e colaborando na consecução do bem comum, supõe o pluralismo de soluções para questões marcadas pela contingência: daí as divergências naturais entre os membros da sociedade, que devem ser superadas pelo estudo dos problemas e pela crítica positiva, que não busca destruir a opinião contrária, mas ofertar alternativas melhores para resolver os problemas sociais (crítica construtiva).

Nessa perspectiva, a "Cidade Temporal" poderá ser um reflexo da "Cidade Eterna", tal como vislumbrada por SÃO TOMÁS DE AQUINO:

"A vida eterna, além da visão de Deus, em sumo louvor e perfeita segurança, consiste na gozosa sociedade de todos os bem-aventurados; sociedade que será deleitável em grau máximo, porque cada um amará ao outro como a si mesmo, e, por conseguinte, se alegrará com o bem do outro como de seu próprio bem, o que faz que aumente tanto a alegria e o gozo de um, quanto é o gozo de todos".

A busca concreta do bem comum pelo governante ou administrador público, nos casos em que se manifestasse aparente conflito com o seu bem particular, não teria, na verdade, esse confronto, uma vez que os efeitos da postura favorável à prevalência do bem comum sobre o interesse particular são:


15. Conclusão – Resumo

Podemos, em síntese, dizer que:

a) O princípio do bem comum é peça chave para a compreensão das relações sociais, tanto dos indivíduos entre si, como destes com a sociedade, sendo que sua exata captação é elemento que propicia, quando respeitado, a otimização do convívio social.

b) Para se formar um conceito de bem comum, necessário se faz conjugar 5 noções básicas: finalidade, ordem, participação, comunidade e ordem.

c) Finalidade é o objetivo para o qual tende o ser e que o move por atração (causa final, que melhor explica o ser).

d) Bem é aquilo que apetece a todos, atraindo como um fim a ser buscado.

e) Participação é ter uma parte de um todo (concepção material), ou ter parcialmente o que outro tem totalmente (concepção espiritual).

f) Comunidade é a comunhão existente entre os que participam de um mesmo bem e possuem uma finalidade comum.

g) Ordem é a hierarquia entre seres distintos (subordinação de uns em relação a outros), que têm algo em comum (participação de uma mesma natureza ou fim).

h) Bem Comum é o bem singular, considerado como parte de um todo.

i) Interesse é a relação entre um sujeito e um bem capaz de satisfazer uma necessidade sua.

j) Interesse público é a relação entre a sociedade e o bem comum por ela perseguido, através daqueles que, na comunidade, têm autoridade (governantes, administradores públicos, magistrados etc.).

k) Pode haver conflito entre o interesse privado e o bem comum, quando o bem buscado pelo cidadão ou administrador público não corresponde àquele próprio para o seu aperfeiçoamento, de acordo com sua natureza (bem particular).

l) Cabe ao Estado-Juiz, ao dirimir os conflitos de interesses na sociedade, estabelecer a quem corresponde o bem em disputa, de acordo com o ordenamento jurídico vigente na sociedade.

m) De acordo com a ordem existente entre os bens, o bem comum tem primazia sobre o bem particular, como também o bem de natureza espiritual tem primazia sobre o bem de natureza material.

n) Essa primazia tem seu limite no princípio da proporcionalidade, que não admite o sacrifício de um bem de natureza espiritual a um bem de natureza material (limite qualitativo), nem de parcela substancial da comunidade em benefício do todo (limite quantitativo).

o) Cabe ao indivíduo cooperar para a realização do bem comum, vendo na sua consecução, o bem próprio.

p) Também o administrador pode perceber que a busca do bem particular dos outros, em determinadas situações, representa uma forma indireta de se obter a consecução do bem comum.

q) E, finalmente, ainda que os efeitos das ações que visem a consecução do bem comum possam não ter efeitos imediatos visíveis, a sua não implementação acarreta, mediatamente, a deterioração da sociedade em aspectos fundamentais de sua existência. Ainda que tais conclusões sejam de caráter muito geral, não são despidas de interesse, na medida em que o princípio do bem comum, como conceito gêmeo ao de interesse público, é esgrimido para fundamentar toda espécie de exigências aos membros da sociedade, sem que se saiba, ao certo, o fundamento de sua obrigatoriedade e os limites e condições de sua aplicação. Tais substratos conceituais é que procuramos trazer para reflexão, ao desenvolver o presente estudo. Esperamos que sirvam de subsídio a uma melhor compreensão do princípio do bem comum.


Bibliografia

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Sobre o autor
Ives Gandra da Silva Martins Filho

ministro do Tribunal Superior do Trabalho, mestre em Direito Público pela UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS FILHO, Ives Gandra Silva. O princípio ético do bem comum e a concepção jurídica do interesse público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -943, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Roteiro da palestra proferida no Workshop Internacional sobre "Eficiência e Ética na Administração Pública", realizado em Brasília nos dias 17, 18 e 19 de maio de 2000, no Centro de Convenções Corporate Financial Center, e promovido pelo ISE – Instituto Superior da Empresa e pela ABRH-DF - Associação Brasileira de Recursos Humanos, Seccional do Distrito Federal. Texto publicado na Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto, em junho de 2000

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