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Direitos fundamentais aos animais?

Agenda 01/07/2024 às 17:15

A Constituição Federal de 1988 possui um capítulo específico sobre o meio ambiente no título “Da Ordem Social”.

Conforme seu artigo 225, verbis:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(...)

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (g. n.)

Além disso, tendo em vista o conflito entre esse direito e as manifestações culturais regionais, em seu § 7º, inserido pela Emenda Constitucional nº 96 de 2017, tratou do assunto com singularidade, nos seguintes termos:

Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. (g. n.)


Portanto, no cotejo entre o direito ao meio ambiente, no qual estão inseridos os animais, e o direito as manifestações culturais, o constituinte derivado preferiu dar proeminência à cultura.

A propósito, o entendimento acima contraria o disposto no artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos dos Animais da UNESCO, segundo a qual

1. Nenhum animal deve de ser explorado para divertimento do homem.

2. As exibições de animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal.1.

Além disso, segundo o Supremo Tribunal Federal, no confronto entre o direito ao meio ambiente e o direito aos cultos religiosos, igualmente prevalece o último, praticamente adotando a visão de Santo Tomás de Aquino abaixo descrita. Eis o julgado paradigmático:


DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. LIBERDADE RELIGIOSA. LEI 11.915/2003 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. NORMA QUE DISPÕE SOBRE O SACRIFÍCIO RITUAL EM CULTOS E LITURGIAS DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA. COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS ESTADOS PARA LEGISLAR SOBRE FLORESTAS, CAÇA, PESCA FAUNA, CONSERVAÇÃO DA NATUREZA, DEFESA DO SOLO E DOS RECURSOS NATURAIS, PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE E CONTROLE DA POLUIÇÃO. SACRIFÍCIO DE ANIMAIS DE ACORDO COM PRECEITOS RELIGIOSOS. CONSTITUCIONALIDADE. (RE nº 494.601-RS)


Nada obstante, em outro julgado, a Suprema Corte considerou constitucional lei estadual que proibia a utilização de animais para desenvolvimento, experimento e teste de produtos cosméticos, higiene pessoal, perfumes, limpeza e seus componentes:


Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei nº 7.814, de 15 de dezembro de 2017, do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a proibição, no Estado, da utilização de animais para desenvolvimento, experimento e teste de produtos cosméticos, higiene pessoal, perfumes, limpeza e seus componentes. 3. Competência da União para legislar sobre normais gerais. Alegação de ofensa ao art. 24, VI, CF. Inocorrência. Precedentes. 4. Usurpação de competência da União. Limitações a comercialização dos produtos derivados dessas atividades no Estado do Rio de Janeiro. Restrição ao mercado interestadual. Alegação de ofensa aos artigos 22, VIII e 24, VI da Constituição Federal. Ocorrência. Precedentes. 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente, para declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 1º e do art. 4º da Lei 7814/2017 do Estado do Rio de Janeiro. (ADI nº 5995-RJ)


Ora, no julgado acima, o Tribunal Constitucional apenas considerou ser constitucional uma proteção maior do que a prevista na lei federal para os animais. Contudo, não afirmou categoricamente que testes em animais restaram proibidos.

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E não poderia ser diferente, haja vista que, se o sacrifício de animais em cultos religiosos de matriz africana restam permitidos para satisfazer os seus asseclas, quiçá se forem utilizados para fins de saúde pública, cuja finalidade, no nosso entender, é deveras superior por atender ao interesse de toda a coletividade, e não somente de um determinado segmento religioso.

Curiosamente, qualquer experimento animal que implique sofrimento físico ou psicológico é refutado pela pelo artigo 8º da Declaração da UNESCO2:

1. A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos do animal, quer se trate de uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer que seja a forma de experimentação.

2. As técnicas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas.

Portanto, de uma análise perfunctória, podemos afirmar que tanto o STF quanto o legislador federal deram primazia a outros direitos constitucionais fundamentais face ao meio ambiente no aspecto da fauna.

Diga-se de passagem que a Constituição Celestial também possui regras sobre a fauna. Eis os seus termos:


Então Deus disse: Façamos o ser humano à nossa imagem; ele será semelhante a nós. Dominará sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, sobre todos os animais selvagens da terra e sobre os animais que rastejam pelo chão. (Gênesis 1:26)


Contudo, a expressão utilizada pelo legislador cósmico, “dominará”, é por demais lacônica, e não nos dá um norte seguro para a interpretação correta a ser aplicada no presente excerto.

Nada obstante, de acordo com Santo Tomás de Aquino3,


Não é pecado utilizar as coisas para o fim a que se destina. As coisas, como as plantas que têm simplesmente vida, são todas iguais para os animais, e todos os animais são iguais para o homem. Por conseguinte, não é proibido utilizar as plantas para o benefício dos animais e os animais para o benefício do homem. [...] É portanto permitido tanto tirar a vida às plantas para o uso dos animais como os animais para o uso do homem. Assim se obedece ao mandamento do próprio Deus. (g. n.)


De outro vértice, falar em direitos fundamentais aos animais é tema francamente complexo.

Presentemente, temos que os direitos essenciais são fruto de uma longa disputa dos seres humanos face a diversas dificuldades pelas quais passaram em cada época e contexto da história.

Conforme elucida Luís Roberto Barroso4,


A história da humanidade é a história da afirmação do indivíduo em face do poder, em suas múltiplas manifestações: político, social e econômico. Um enredo que narra o esforço milenar de superação do arbítrio, do preconceito e da exploração. A construção dos direitos fundamentais se dá pela agregação de conquistas civilizatórias paulatinas, que vão se sedimentando em direitos de natureza e conteúdo diversos. Surgem, assim, sucessivamente, os direitos individuais, os direitos políticos e os direitos sociais. Mais recentemente, passaram a ser reconhecidos, igualmente, direitos identificados como coletivos ou difusos. (g. n.)

Consequentemente, os direitos vitais possuem relação com a luta da civilização contra o arbítrio do poder estatal, sendo divididos em direitos de primeira dimensão/geração, que são as liberdades individuais, direitos de segunda dimensão/geração, englobando os direitos sociais, culturais e econômicos, e por fim os direitos de terceira dimensão ou geração, abarcando os direitos de solidariedade ou fraternidade, que seriam os direitos difusos e coletivos.5

Nesse ponto, é imperioso pontuar então que jamais os animais travaram lutas por direitos indeclináveis. São os seres humanos que atribuem valor as coisas, de acordo com as necessidades de cada momento.

De seu turno, em relação aos destinatários das normas constitucionais básicas, escreve Alexandre de Morais que,6

Assim, o regime jurídico das liberdades públicas protege tanto as pessoas naturais, brasileiros ou estrangeiros no território nacional, como as pessoas jurídicas, pois têm direito à existência, à segurança, à propriedade, à proteção tributária e aos remédios constitucionais. Miguel Ángel Ekmekdjian e Calogero Pizzolo observam que o art. 25.1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos habilita tanto as pessoas físicas como as jurídicas a reclamar a proteção de direitos humanos, da mesma forma que o Tribunal Constitucional da Espanha, que reconheceu expressamente a existência de direitos fundamentais relacionados à pessoa jurídica, respeitando-se, por óbvio, suas características próprias. Igualmente, a Lei Fundamental alemã consagra que os direitos fundamentais são válidos para pessoas jurídicas, à medida que, pela sua essência, sejam aplicáveis às mesmas. (g. n.)


Nesse particular, convém salientar que pelo artigo 5º, caput, da Constituição da República, somente os brasileiros e os estrangeiros seriam destinatários das normas constitucionais.

Sem embargo, o Código Civil de 2002 dispõe que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores (art. 49-A). Além disso, estende, no que couber, os direitos da personalidade ao ente abstrato (art. 52).

Por conseguinte, como o direito, por uma ficção, cria uma autonomia existencial à pessoa jurídica, também pode fazê-lo em relação aos animais, desde que representados por uma pessoa física, que atuará em seu nome.

Malgrado, ainda estamos longe da aplicação dos direitos fundamentais aos animais, assim como às pessoas jurídicas. O próprio diploma civil estabelece que são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social (art. 82), donde se encontram os animais, ou semoventes.

Além de tudo, teríamos que lidar com a questão de quais espécies animais possuiriam direitos fundamentais? Somente os domésticos, ou também os silvestres? E se consideramos somente os domésticos, estaríamos violando o princípio da igualdade com atenção aos silvestres?

Nesse particular, o Superior Tribunal de Justiça possui uma decisão interessante. Conforme decisão da sua 3ª turma, o condomínio não pode proibir animais que não oferecem risco aos moradores ou, contrario sensu, em relação aos domésticos que apresentem algum risco, sua permanência pode ser recusada. Eis os termos do acórdão:


RECURSO ESPECIAL. CONDOMÍNIO. ANIMAIS. CONVENÇÃO. REGIMENTO INTERNO. PROIBIÇÃO. FLEXIBILIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a definir se a convenção condominial pode impedir a criação de animais de qualquer espécie em unidades autônomas do condomínio. 3. Se a convenção não regular a matéria, o condômino pode criar animais em sua unidade autônoma, desde que não viole os deveres previstos nos arts. 1.336, IV, do CC/2002 e 19 da Lei nº 4.591/1964. 4. Se a convenção veda apenas a permanência de animais causadores de incômodos aos demais moradores, a norma condominial não apresenta, de plano, nenhuma ilegalidade. 5. Se a convenção proíbe a criação e a guarda de animais de quaisquer espécies, a restrição pode se revelar desarrazoada, haja vista determinados animais não apresentarem risco à incolumidade e à tranquilidade dos demais moradores e dos frequentadores ocasionais do condomínio. 6. Na hipótese, a restrição imposta ao condômino não se mostra legítima, visto que condomínio não demonstrou nenhum fato concreto apto a comprovar que o animal (gato) provoque prejuízos à segurança, à higiene, à saúde e ao sossego dos demais moradores. 7. Recurso especial provido. (REsp nº 1.783.076-DF)

Assim, dentro de um condomínio, poderemos ter discriminações a depender do temperamento do animal, se é dócil ou se é arisco.

A Lei Sansão, Lei Federal nº 14.064 de 2020, estabeleceu evidente cisma em relação aos animais, apenando com maior severidade maus-tratos praticados contra cães ou gatos, em detrimento dos demais.

Nesse ponto, conforme obtemperou Flávio Martins,7


Se a referida lei traz um avanço (a mutilação de animais, por exemplo, tinha uma pena máxima reduzidíssima de um ano de detenção, podendo até ser substituída por uma multa – multa vicariante), traz um grande retrocesso, no nosso entender: ao tratar apenas de cães e gatos, mostrou se preocupar mais com o ser humano que com os animais. Explico: a mudança de paradigma que abaixo defenderemos consiste em considerar os animais como seres sencientes, dotados de sensibilidade e titulares de alguns direitos fundamentais. Tratar de forma diferenciada espécies de animais é um ato irrazoável, egoístico e antropocêntrico. Ou seja, protegemos mais os animais que estão mais próximos do ser humano (…) Essa violação do tratamento isonômico aos animais, prestigiando os animais que, em tese, são mais próximos do ser humano, em detrimento dos demais, é, sem dúvida, um ato de populismo penal. (g. n.)


Destarte, o trecho acima demonstra que o legislador ordinário, assim com o derivado, ainda tem como referência uma visão antropocêntrica do direito, no qual a espécie humana possui uma posição central em relação ao universo.

Em conclusão, a despeito de algumas conquistas jurídicas em relação ao meio ambiente e aos animais em especial, estamos longe de possuirmos direitos fundamentais no tocante à fauna.

Nada obstante, face ao aumento das catástrofes naturais com o aquecimento global, a flora é que deveria ocupar o centro dos debates jurídicos8.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Aquino, Santo Tomás de. Suma de Teología. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993.


Barroso, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. – 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.


Lenza, Pedro. Direito Constitucional. – 26. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2022. (Coleção Esquematizado)


Martins, Flávio. Curso de Direito Constitucional. - 6. ed. - São Paulo : SaraivaJur, 2022.


Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. Direito constitucional. – 36. ed. – São Paulo: Atlas, 2020.








1 Disponível em: https://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/infantil/direitoanimais.htm Acesso em: 29 jun. 2024.

2 Idem.

3 Suma de Teología. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993.

4 Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. – 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

5 Pedro Lenza. Direito Constitucional. – 26. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2022. (Coleção Esquematizado)

6 Direito constitucional. – 36. ed. – São Paulo: Atlas, 2020.

7 Curso de Direito Constitucional. - 6. ed. - São Paulo : SaraivaJur, 2022.

8 Um mês de enchentes no RS: veja cronologia do desastre que atingiu 471 cidades, matou mais de 170 pessoas e expulsou 600 mil de casa. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/29/um-mes-de-enchentes-no-rs-veja-cronologia-do-desastre.ghtml Acesso em: 29 jun. 2024.


Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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