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Homicídio culposo: o conflito aparente de normas entre o Código Penal e o Código de Trânsito brasileiro e a aplicação o princípio da proporcionalidade

Agenda 04/07/2024 às 16:08

“[...] nós juristas, nós os advogados, não somos os instrumentos mercenários dos interesses das partes. Temos uma alta magistratura, tão elevada quanto aos que vestem togas, presidindo os tribunais; somos os auxiliares naturais e legais da justiça; e, pela minha parte, sempre que diante de mim se levanta uma consulta, se formula um caso jurídico, eu o encaro sempre como se fosse um magistrado a quem se propusesse resolver o direito litigado entre as partes. Por isso, não corro da responsabilidade senão quando a minha consciência a repele”.

Rui Barbosa

RESUMO

O presente trabalho possui como enfoque a análise do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, que alterou substancialmente o tratamento conferido ao homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor outrora regulado pelo artigo 121, §3º do Código Penal. Objetiva-se através desse estudo demonstrar o conflito existente entre esses diplomas legais e o tratamento desproporcional empregado pelo Código de Trânsito Brasileiro à mesma modalidade de homicídio regulada pelo Código Penal. Será realizada uma análise crítica sobre o tema posto à baila, abordando a questão da aplicação do princípio da proporcionalidade e expondo os mais recentes posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais. Por fim, essas inovações serão analisadas sob a ótica do direito constitucional, observando se as mesmas estão de acordo com os princípios constitucionais que limitam a pretensão punitiva estatal.

Palavras-chave: Homicídio culposo – conflito aparente de normas – inaplicabilidade do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro - princípio da proporcionalidade – Código Penal - posições críticas.

ABSTRACT

The present work has as its focus the analysis of Article 302 of the Brazilian Traffic Code, which substantially changed the treatment given to manslaughter committed in the direction of a motor vehicle formerly governed by Article 121 §3º of the Criminal Code. Objective through this study demonstrate the conflict between these statutes and disproportionate treatment employed by the Brazilian Traffic Code to the same type of homicide regulated by the Criminal Code. Will be a critical analysis on the subject put to the fore, addressing the question of the application of the principle of proportionality and exposing the latest doctrinal and jurisprudential positions. Finally, these innovations will be analyzed from the perspective of constitutional law, noting whether they are in accordance with the constitutional principles that limit punitive claim state.

Key words: Manslaughter - apparent conflict of norms - inapplicability of Article 302 of the Brazilian Traffic Code - principle of proportionality - Criminal Code - critical positions

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

CTB Código de Trânsito Brasileiro

CF Constituição Federal

CP Código Penal

ART Artigo

MP Ministério Público

AGNU Assembleia Geral das Nações Unidas

SUMÁRIO

Introdução .........

1. Considerações Iniciais .......

1.1. Da proteção constitucional à vida ....

1.2. Noções básicas sobre a Teoria Geral do Crime ...

2. Homicídio .....................

2.1. Homicídio culposo e homicídio doloso ......

2.2. Homicídio culposo previsto art. 121, §3º do Código Penal ...

2.3. Homicídio culposo previsto art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro ..

3. Conflito Aparente de Normas ........

3.1. Conflito entre o artigo 121, §3º do Código Penal e o artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro .........

4. Princípio da proporcionalidade .......

4.1. Aplicação do princípio da proporcionalidade ao homicídio culposo previsto no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro ...

4.2. Posicionamentos Jurisprudenciais ....

Considerações Finais ........

Referências ................

INTRODUÇÃO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso de Pós-Graduação (TCC) possui como intuito analisar de maneira objetiva o tratamento conferido pelas Normas de Direito Brasileiro ao crime de homicídio culposo. Expor-se-á de maneira sucinta a existência do conflito aparente de normas entre o Código Penal e o Código de Trânsito Brasileiro, defendendo-se a aplicação do princípio da proporcionalidade.

A priori, será feita uma análise sobre a proteção constitucional à vida nos termos do artigo 5º, caput da Constituição Federal, evidenciando-se a extrema importância desse bem jurídico e a maneira sob o qual o mesmo é regulado pelo Direito Penal. Após, analisar-se-á detidamente a teoria geral do crime, destacando-se os elementos necessários para configurar o injusto penal que será objeto de repressão estatal.

No segundo capítulo, far-se-á uma análise histórica sobre o crime de homicídio e suas modalidades dolosas e culposas. Neste ponto se dispenderá maior atenção para as modalidades de homicídios culposos previstos no art.121, §3º do Código Penal e no art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, observando-se o quantum mínimo e máximo de penas que são cominadas a esses delitos, bem como a forma de persecução penal.

No terceiro capítulo, dar-se-á maior ênfase ao estudo do conflito aparente de normas, conceituando-o e demostrando sua ocorrência em nosso Ordenamento Jurídico no que pertine ao homicídio culposo que é regulado pelo Código Penal e pelo Código de Trânsito Brasileiro, conforme se observa respectivamente nos artigos 121, §3º do CP e 302 do CTB.

No quarto capítulo a análise pautar-se-á na possibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade aos homicídios culposos praticados na direção de veículo automotor, demonstrando a incongruência esboçada pelo artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro em detrimento ao que dispõe o artigo 121, §3º do Código Penal, motivo pelo qual o mesmo deve ser rechaçado. Ao final, ainda se exporá o posicionamento dos tribunais pátrios sobre a aplicabilidade/constitucionalidade do art. 302 do CTB.

Desta feita, o estudo ora proposto, objetiva de forma geral analisar as principais inovações introduzidas em nosso ordenamento através da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) e como essas inovações foram recebidas pelos doutrinadores pátrios, bem como fazer um retrospecto sobre como o homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor era disciplinado antes e após da edição dessa norma específica.

A metodologia utilizada desdobrou-se em uma pesquisa do tipo exploratória, utilizando-se desta forma, a coleta de dados em bibliografias consultadas por meio físico e virtual. O método utilizado enquadra-se no hipotético-dedutivo, adotando-se os seguintes procedimentos: a) seleção de bibliografia e documentos; b) leitura e fichamento do material usado como base de estudo; c) reflexão sobre o material selecionado; d) exposição escrita do resultado.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

1.1. Da proteção à vida

A Constituição Federal de 1988 tratou sobre a inviolabilidade à vida em seu artigo 5º, caput. Vejamos:

“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

[...]. [Grifos nossos] - (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.4.).

Infere-se dizer, que o direito à vida é um direito individual fundamental do ser humano e também é aquele que possui maior relevância na seara jurídica, afinal, para que haja efetivação dos demais direitos é essencial à existência da vida, devendo esse direito se sobrepor a qualquer outro conferido pela vigente Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, vejamos os ensinamentos do Ilustre jurista Alexandre de Moraes e do jurista Paulo Gustavo Gonete Branco, nas obras abaixo destacadas:

“O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que constitui-se em pré-requisito a existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive a uterina”. [Grifos nossos] - (MORAES, 2000 - P. 61.).

“A existência humana é o pressuposto elementar de todos os demais direitos e liberdades disposto na Constituição e que esses direitos têm nos marcos da vida de cada indivíduo os limites máximos de sua extensão concreta. O direito a vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito estar vivo para usufruí-lo. O seu peso abstrato, inerente à sua capital relevância, é superior a todo outro interesse”. [Grifos nossos] - (BRANCO, 2010, p.441.).

Cabe dizer ainda, que os direitos fundamentais alcançaram uma posição de destaque/relevo na sociedade atual, passando a receber as benesses que a segurança jurídica pode oferecer, ou seja, alcançou-se um patamar de exigibilidade jurídica. Ademais, as garantias fundamentais se estabeleceram dentro do ordenamento jurídico pátrio de tal modo, que alcançaram a categoria de norma constitucional e, portanto, passaram a ter força vinculativa em grau máximo.

É de se esclarecer, que a proteção constitucional à vida vai além da vida biológica, ou seja, se preocupa também com a qualidade de vida, pressupondo-se a garantia aos direitos fundamentais, bem como abrangendo tanto os direitos básicos de sobrevivência do cidadão, como, por exemplo, aqueles vinculados ao bem-estar psíquico e social.

No mesmo sentido, a jurista Carolina Alves de Souza Lima, em sua obra Aborto e Anencefalia – Direitos Fundamentais em Colisão, dispôs sobre a proteção à vida nos seguintes termos: “o bem jurídico do ser humano por excelência é a vida”. (LIMA, 2012, p.35.).

Assim, pode se inferir o quanto é fundamental o direito à vida, vez que, é a partir desse direito que se pode exercer os todos os demais. Partindo desse pressuposto, de nada adiantaria a Constituição Federal tutelar os demais direitos fundamentais, sem que se empregasse a proteção à vida em um patamar mais elevado.

A expressão ‘direito à vida’ foi conceituada no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa como “o período de um ser vivo compreendido entre o nascimento e a morte”. (Dicionário Houaiss da Língua portuguesa - 2001. p. 2858.).

Já o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado pela XXI AGNU - Assembleia Geral das Nações Unidas dispôs sobre a vida em seu artigo 6º, parte III, nos seguintes termos: “O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei, ninguém poderá ser arbitrariamente privado da sua vida”.

Nesse diapasão, caberá ao Estado assegurar a proteção à vida tanto no que pertine a violação da integridade física, uma vez que a todos é assegurado o direito de viver, quanto no aspecto social erigido sobre o escopo do princípio da dignidade da pessoa humana, pois a vida deve ser plena e digna, respeitando-se os valores e necessidades sociais.

Nestes termos, é clarividente que o direito à vida deve sempre estar vinculado ao direito de conservação da vida, podendo o particular defendê-la, mas jamais dispor dela.

Nesse sentido destacamos os ensinamentos do Ilustre Canotilho, in verbis:

O direito à vida é um direito subjetivo de defesa, pois é indiscutível o direito de o indivíduo afirmar o direito de viver, com a garantia da "não agressão" ao direito à vida, implicando também a garantia de uma dimensão protetiva deste direito à vida. Ou seja, o indivíduo tem o direito perante o Estado a não ser morto por este, o Estado tem a obrigação de se abster de atentar contra a vida do indivíduo, e por outro lado, o indivíduo tem o direito à vida perante os outros indivíduos e estes devem abster-se de praticar atos que atentem contra a vida de alguém. E conclui: o direito à vida é um direito, mas não é uma liberdade”. [Grifos Nossos] - (CANOTILHO, 2000. P. 526 – 539).

Nota-se que o legislador escalonou a vida em um dos maiores graus de protetividade estatal, garantindo a todas as pessoas a ampla tutela de suas vidas, bem como aplicando os meios de punição mais severos àqueles que atentarem contra ela, observando-se, para tanto, o grau de sua culpabilidade.

Outro aspecto que denota a maior importância empregada à proteção à vida é o que dispõe o art. 60, §4º, IV da Constituição Federal de 1988 que trata sobre as cláusulas pétreas, quais sejam, aquelas que não podem ser alteradas. Vejamos:

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...).

§4º. NÃO será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

(...)

IV. os direitos e garantias individuais. [...]”.

[Grifos Nossos] – (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.26).

Desta forma, ao impossibilitar a deliberação sobre propostas que tentem abolir os direitos e garantias individuais, vedou-se expressamente qualquer forma de ataque ao bem jurídico ‘vida’. Assim, não restam dúvidas que a proteção constitucional a vida se sobrepõe a qualquer norma de direito disponível, cabendo a todas as normas erigidas em nosso Estado Democrático de Direito o dever de respeitá-la.

Por ser um bem primordial ao exercício dos demais direitos, a proteção à vida é garantida tanto constitucionalmente, como no Código Penal e nos Tratados Internacionais em que o Brasil é signatário. Nesta seara, é incontestável a elementaridade do direito à vida, não cabendo ao particular e muito menos ao Estado detentor do jus puniendi o direito de suprimi-la, ou seja, decidir como e quando uma pessoa deve morrer, conforme previsão expressa do art. 5º, XLVII, “a” da Constituição Federal de 1988, salvo raríssimas exceções previstas taxativamente no texto constitucional, como por exemplo, no caso de guerra. In verbis:

“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XLVII – não haverá penas:

  1. De morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

[Grifos nossos] - (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.6.).

Nesta seara, ao explicitar a exceção a proteção à vida, o legislador toma por regra que o Estado, embora detentor do jus puniendi, não pode estabelecer pena de morte a nenhum indivíduo, por mais atroz que seja o crime que ele tenha cometido, salvo exceção expressa, reafirmando, dessa forma, que o bem de maior proteção no ordenamento jurídico brasileiro deve ser sempre a vida.

Ressalte-se, que o Direito Penal possui como função primordial a proteção aos bens jurídicos relevantes. Assim, não basta que haja ataque a esses bens protegidos e muito menos existência de danos, é necessário que essa violação de direitos seja relevante o suficiente a fim de movimentar a máquina estatal, afinal, para que uma ação seja tutelada pelo Direito Penal, a mesma deverá ser intolerável, ou seja, deverá ultrapassar os limites socialmente aceitos, sob pena de se violar o princípio da intervenção mínima.

Infere-se dizer que a reprimenda penal só será aplicada se não houver outra norma capaz de dirimir o conflito de maneira menos gravosa e com a mesma efetividade. Entenda-se por efetividade, a aplicação da lei que esteja apta a desestimular a prática de novas condutas lesivas aos bens jurídicos protegidos pelo Estado, estimulando a ressocialização do condenado.

O Código Penal Brasileiro foi estruturado pelo legislador pátrio de forma a proteger a vida humana desde o momento da sua concepção, conforme disposto nos artigos 124,125,126,127 e 128 até o momento em que a mesma é ceifada por um terceiro, nos termos do artigo 121 ou ainda quando a morte se dá pelo próprio agente que age instigado/induzido por outrem segundo a redação conferida ao artigo 122. Ressalte-se que todos esses dispositivos estão dispostos expressamente no Código Penal.

Esse dever de proteção assume um patamar tão importante no ordenamento jurídico pátrio, que embora seja tutelado por muitos diplomas jurídicos, possui atenção especial no Código Penal. Assim, a vida deve ser protegida independentemente da vontade do seu titular, pois, sendo a vida um direito e não uma liberdade, não cabe ao indivíduo a alternativa de dispor da mesma, como ocorre, por exemplo, nos casos de suicídio.

Já com relação a sua abrangência, o direito a vida se apresenta sob dois aspectos, quais sejam, o direito de defesa e o dever de proteção. No âmbito da defesa, a garantia de direito a vida é imposta não apenas aos poderes públicos, mas também aos demais indivíduos, no sentido de que não se pode atingir/agredir tal bem jurídico. Por outro lado, o dever de proteção à vida se impõe primordialmente ao Estado, cabendo a este, tomar as providências cabíveis para garantir a proteção desse bem essencial/indisponível do ser humano.

Por fim, é de se esclarecer que embora o direito a vida seja o bem de maior interesse e proteção do nosso ordenamento pátrio, o mesmo não possui caráter absoluto, conforme entendimento sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal. Destacamos:

“EMENTA: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO – PODERES DE INVESTIGAÇÃO (CF, ART. 58, §3º) – LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS – LEGITIMIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL – POSSIBILIDADE DE A CPI ORDENAR, POR AUTORIDADE PRÓPRIA, A QUEBRA DOS SIGILOS BANCÁRIO, FISCAL E TELEFÔNICO – NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DO ATO DELIBERATIVO – DELIBERAÇÃO DA CPI QUE, SEM FUNDAMENTAÇÃO, ORDENOU MEDIDAS DE RESTRIÇÃO À DIREITOS – MANDADO DE SEGURANÇA DEFERIDO. COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO – COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. – Compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, em sede originária, mandados de segurança e habeas corpus impetrados contra Comissões Parlamentares de Inquérito constituídas no âmbito do Congresso Nacional ou no de qualquer de suas casas. É que a Comissão Parlamentar de Inquérito, enquanto projeção orgânica do Poder Legislativo da União, nada mais é senão a longa manus do próprio Congresso Nacional ou das Casas que o compõem, sujeitando-se, em consequência, em tema de mandado de segurança ou de habeas corpus, ao controle jurisdicional originário do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, “d” e “i”). Precedentes. O CONTROLE JURISDICIONAL DE ABUSOS PRATICADOS POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. – A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõe o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição.

[...]

OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros”.

[...]

(MS 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-9-1999, Plenário, DJ de 12-5-2000). Grifos nossos.

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85966

No mesmo sentido, destacamos o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no ponto de vista do Ministro Luiz Fux, para o qual, nem mesmo o direito a vida tem caráter absoluto. Observe:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FRAUDE À EXECUÇÃO, DESPICIENDA A DISCUSSÃO ACERCA DA BOA-FÉ DO TERCEIRO ADQUIRENTE. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 375/STJ. RESP 1.141.990/PR, REL. MIN. LUIZ FUX, DJE 19.11.2010, JULGADO PELO RITO DO ART.543-C DO CPC/1973. RESSALVA DO PONTO DE VISTA DO RELATOR. AGRAVO INTERNO DA EMPRESA A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Ao julgar o REsp. 1.141.990/PR, Rel. Min. LUIZ FUX, Dje 19.11.2010, representativo da controvérsia, esta Corte assentou entendimento de que não se aplica à Execução Fiscal o Enunciado 375 da Súmula de sua jurisprudência, segundo o qual o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente. Sendo assim, há presunção absoluta de fraude à execução quando a alienação é efetivada após a inscrição do débito tributário em Dívida Ativa, ou, sem sendo a alienação feita em data anterior à entrada em vigor da LC 118/2005, presume-se fraudulenta quando feita após a citação do devedor, sendo desnecessária, portanto, a discussão acerca da má-fé ou não do adquirente. 2. Faço a ressalva do meu entendimento pessoal, para afirmar a impossibilidade de presunção absoluta em favor da Fazenda Pública. Isso porque nem mesmo à vida tem caráter absoluto, que dirá questões envolvendo pecúnia. No entanto, acompanho a jurisprudência, porquanto já está consolidada em sentido contrário. 3. Agravo Interno da Empresa a que se nega provimento.

(STJ – AgInt no AREsp: 704376 PR 2015/0100974-6. Relator: Ministro MAPOLEAO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 13/05/2019, T1 – Primeira Turma, Data de Publicação: Dje 20/05/2019). Grifos nossos.

https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/710482813/agravo-interno-no-agravo-em-recurso-especial-agint-no-aresp-704376-pr-2015-0100974-6/certidao-de-julgamento-710482821?ref=juris-tabs

Desta feita, sendo a vida fonte primária de onde advêm os demais direitos, mesmo não possuindo caráter absoluto, justifica-se o tratamento protecionista especial empregado pelo legislador pátrio, merecendo sofrer repressão estatal qualquer ato que atente contra ela expondo-a a risco/perigo.

  1. Noções básicas sobre a Teoria Geral do Crime

Como é da sabença geral dentre os operadores do direito, a teoria do crime é uma matéria estudada na parte geral do direito penal e abrange diversos conceitos. Todavia, no presente estudo vamos nos ater a conceituação de crime.

A palavra crime provém do latim “crimem” que denota a ideia de conduta voltada para o mal. A teoria geral do crime se preocupa em estudar o fenômeno jurídico do crime como um fato reprovável e punível, analisando suas características e formas de existência.

Durante alguns anos discutiu-se doutrinariamente a diferença que residia entre o crime e a contravenção. A doutrina majoritária entendia que essa discussão era inócua, afirmando não haver qualquer diferença ontológica entre esses institutos, uma vez que o que diferencia ambos é a quantidade de sanção cominada e não sua natureza.

Nesse sentido, vejamos o que dispõe o art. 1º do Decreto-Lei 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal), in verbis:

“Art 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente." [Grifos nossos] - (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.416.).

Na obra de Franz Von Liszt, o conceito de crime é expressado nos seguintes termos: “Crime é o injusto contra o qual o Estado comina pena e o injusto quer se trata de delicto do direito civil, quer se trate do injusto criminal, isto é, do crime, é a ação culposa e contraria ao direito. ” (LITZ, 1899, p.183.).

Na tentativa de em encontrar uma fórmula eficaz para definir com clareza o crime e seus elementos, os juristas pátrios começaram a desenvolver algumas teorias, o que culminou na conceituação do crime através dos conceitos formal, material e analítico.

Para aqueles que sustentavam a definição de crime pelo conceito formal, o crime seria a ação ou omissão violadora de uma lei, cabendo à ameaça de aplicação de uma reprimenda penal. Nesse caso, a culpabilidade constitui pressuposto da pena, uma vez que para os formalistas não há qualquer preocupação com o conteúdo ético social do dispositivo legal, nem muito menos com as razões que levaram o legislador a tratar sobre o assunto.

Nesse aspecto, destacamos os ensinamentos de Capez. Veja:

Em seu aspecto formal o conceito de crime resulta da mera subsunção da conduta do tipo legal e por considerar-se infração penal tudo aquilo que o legislador descreve como tal, pouco importando o seu conteúdo” [Grifos nossos] - (CAPEZ, ed 6ª, 2003. São Paulo, p.106.).

Já para os defensores do conceito material, o crime se dá quando a violação incide não em uma lei, mas sim em um bem juridicamente protegido. Para essa corrente, deve-se observar primordialmente a violação aos valores e interesses sociais. Assim, a infração terá por base o juízo de desvalor da conduta praticada pelo agente.

Nesse sentido, destacamos o entendimento do Ilustre Doutrinador Jiménez de Asúa, sobre o conceito material de crime. Vejamos:

“Crime é a conduta considerada pelo legislador como contrária a uma norma de cultura reconhecida pelo Estado e lesiva de bens juridicamente protegidos, procedente de um homem imputável que manifesta com sua agressão perigosidade social”. [Grifos nossos] - (ASÚA, 2007. P. 61.).

Já Fernando Capez discorreu sobre o tema nos seguintes termos:

“O aspecto material e todo aquele que busca estabelecer a essência do conceito isto e, o porque de determinado fato ser considerado criminoso e outro não. Sob esse enfoque, crime pode ser definido como todo fato humano que propositada ou descuidadosamente lesa ou expõem a perigo bens jurídicos considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social”. (CAPEZ, ed 6ª, 2003. São Paulo, p.105.).

Contudo, surgiram muitas críticas relacionadas aos conceitos formal e material, vez que os mesmos não traduziam com precisão o conceito de crime.

Destacamos a crítica de Rogério Greco, sobre o tema. Observe:

“Na verdade, os conceitos formal e material não traduzem com precisão o que seja crime. Se há uma lei penal editada pelo Estado, proibindo determinada conduta, e o agente a viola, se ausente qualquer causa de exclusão da ilicitude ou dirimente da culpabilidade, haverá crime. Já o conceito material sobreleva a importância do princípio da intervenção mínima quando aduz que somente haverá crime quando a conduta do agente atentar contra os bens mais importantes. Contudo, mesmo sendo importante e necessário o bem para a manutenção e a subsistência da sociedade, se não houver uma lei penal protegendo-o, por mais relevante que seja, não haverá crime se o agente vier ataca-lo, em face do princípio da legalidade”. (GRECO, 2015, p.147.).

No mesmo sentido, leciona Bittencourt, quando discorre que “Os conceitos formal e material são insuficientes para permitir à dogmática penal a realização de uma análise dos elementos estruturais do conceito de crime”. (BIRTENCOURT, 2012, p.234.).

De outra banda, para os adeptos do conceito analítico de crime, sempre houveram divergências, não se definindo com exatidão o conceito de crime. Logo, para os amantes dessa corrente, a finalidade da criação desse conceito é a de uma análise detalhada dos caracteres dos elementos do crime.

Nesse sentido, destacamos o entendimento do Doutrinador Luiz Régis Prado. Observe:

“A ação, como primeiro requisito do delito, só aparecera com Berner em 1857, sendo que a idéia de ilicitude, desenvolvida por Rudof Von Lhening em 1867 para área civil, fora introduzida no Direito Penal por obra de Franz Von Listz e Beling em 1881, e a culpabilidade, com origem em Merkel, desenvolvera-se pelos estudos de Binding em 1877. Posteriormente, no início do século XX, graças a Beling em 1906, surgira a idéia de tipicidade”. (PRADO, 2007, p.135.).

Já Mirabete, discorreu sobre o conceito analítico nos seguintes termos: “o conceito formal de delito com referencia aos elementos que o compõem (melhor seria fala-se em aspectos ou características do crime), de caráter analítico, tem evoluído”. (MIRABETE, 2005, p.97.).

Assim, com base no conceito analítico de crime, desenvolveram-se três teorias principais, quais sejam: a teoria bipartida, a tripartite e a quadripartida.

A teoria analítica bipartida do crime é defendida por uma parte minoritária da doutrina. Para ela o crime se dá através da junção de dois elementos, o fato típico e fato antijurídico afastando-se a culpabilidade, uma vez que os seus adeptos consideram a culpa como pressuposto e não como elemento do crime.

Todavia, essa teoria comporta uma lacuna, ou seja, torna o conceito analítico de crime incompleto, vez que a culpabilidade não faz parte desse conceito. Um dos doutrinadores de renome que é adepto dessa corrente é o saudoso Damásio de Jesus.

A doutrina majoritária filia-se a teoria analítica tripartida do crime, onde o crime é composto por três elementos, o fato típico, antijurídico e culpável. Assim, infere-se dizer que para os adeptos dessa corrente a ausência de qualquer um desses elementos implicaria na exclusão do crime e consequentemente, da pena.

Nesse sentido, vejamos os ensinamentos de Assis Toledo, o qual filia-se ao conceito tripartite de crime. Observe:

“Substancialmente, o crime é um fato humano que lesa ou expõe a perigo bem jurídico (jurídico-penal) protegido. Essa definição é, porém, insuficiente para a dogmática penal, que necessita de outra mais analítica, apta a pôr à mostra os aspectos essenciais ou os elementos estruturais do conceito de crime. E dentre as várias definições analíticas que têm sido propostas por importantes penalistas, parece-nos mais aceitável a que considera as três notas fundamentais do fato-crime, a saber: ação típica (tipicidade), ilícita ou antijurídica (ilicitude) e culpável (culpabilidade). O crime, nessa concepção que adotamos, é, pois, ação típica, ilícita e culpável”. (TOLEDO, 1999. p. 80).

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No mesmo sentido, destacamos os ensinamentos de Capez, abaixo transcrito:

“A Teoria Naturalista ou Causal, mais conhecida como Teoria Clássica, concebida por Franz von Liszt, a qual teve em Ernest von Beling um de seus maiores defensores, dominou todo o século XIX, fortemente influenciada pelo positivismo jurídico. Para ela, o fato típico resultava de mera comparação entre a conduta objetivamente realizada e a descrição legal do crime, sem analisar qualquer aspecto de ordem interna, subjetiva. Sustentava que o dolo e a culpa sediavam-se na culpabilidade e não pertenciam ao tipo. Para os seus defensores, crime só pode ser fato típico, ilícito (antijurídico) e culpável, uma vez que, sendo o dolo e a culpa imprescindíveis para a sua existência e estando ambos na culpabilidade, por óbvio esta última se tornava necessária para integrar o conceito de infração penal. Todo penalista clássico, portanto, forçosamente precisa adotar a concepção tripartida, pois do contrário teria de admitir que o dolo e a culpa não pertenciam ao crime, o que seria juridicamente impossível de sustentar”. [Grifos nossos] - (CAPEZ, 2011, arts. 1º a 120).

Destacamos, ainda, as palavras do Ilustre Doutrinador Bittencourt. O qual dispôs sobre o conceito tripartite de crime nos seguintes termos. Vejamos:

Embora a inicialmente confusa e obscura definição desses elementos estruturais, que se depuraram ao longo do tempo, o conceito analítico predominante passou a definir o crime como a ação típica, antijurídica e culpável”. [Grifos nossos] - (BIRTENCOURT, 2012, p.234.).

Ademais, ressalte-se que a teoria analítica tripartite de crime foi à teoria adotada pelo Código Penal vigente e a que a meu ver parece ser a mais acertada.

Já para os adeptos da teoria analítica quadripartida, o crime é composto pelo fato típico, antijurídico, culpável e punível.

Um dos adeptos dessa corrente é o professor Claus Roxin, da Universidade de Munich. Observe:

“Considerando que a política criminal deve definir o âmbito da incriminação, bem como os postulados da dogmática jurídico-penal, Roxin sustenta que a responsabilidade do autor do fato punível também deve ser elemento do conceito analítico do delito”. (ROXIN, 1992. p.62.).

A teoria quadripartida de crime não angariou muita força na seara jurídica, tendo em vista que a punibilidade é tida como uma consequência do crime e não um de seus elementos.

Feitas essas considerações, passamos a analisar os elementos da teoria analítica tripartida do crime.

Para teoria analítica tripartida o primeiro elemento do crime é o fato típico. Esse Fato típico é tido como o comportamento humano que se amolda a conduta descrita no texto legal. Para que se caracterize a tipicidade faz-se necessário à observância de alguns sub elementos, quais sejam: conduta, nexo causal, resultado naturalístico e tipicidade. Assim, caso algum desses sub elementos não estejam presentes, não há que se falar em tipicidade e consequentemente em crime.

A conduta é configurada pela ação humana e pode se dar através de uma ação ou omissão, do dolo ou da culpa. E, sendo assim, pode ser expressa no postulado do nulum crime sine actione, ou seja, não há crime sem ação.

Pode se dizer, ainda, que a conduta é composta de duas fases. A primeira fase se daria de forma interna, ou seja, opera-se no pensamento do agente. Já a segunda fase, consiste na exteriorização da conduta através dos meios utilizados para a produção do resultado.

O nexo causal, por sua vez, é a relação entre a conduta e a produção do resultado. Em outros termos, faz-se necessário que a ação ou omissão praticada pelo agente seja a responsável pela causação do dano.

Vale destacar, que o nosso Código Penal adotou a teria dos equivalentes causais para estabelecer o liame subjetivo entre a ação ou omissão e o resultado naturalístico, ou seja, a teoria da conditio sine qua non.

Sobre a teoria da equivalência dos antecedentes causais, Damásio de Jesus tratou da matéria com brilhantismo. Destacamos:

“[...] o movimento de um automóvel, são considerados a máquina, o combustível etc., que influem no movimento. Com a exclusão de qualquer deles, o movimento se torna impossível. Em relação ao resultado, ocorre o mesmo fenômeno: causa é toda condição do resultado, e todos os 5 elementos antecedentes têm o mesmo valor. Para se saber se uma ação é causa do resultado, basta, mentalmente, excluí-la da série causal. Se com sua exclusão o resultado teria deixado de ocorrer, é causa. É o denominado procedimento hipotético de eliminação de Thyrén, segundo o qual a mente humana julga que um fenômeno é condição de outro toda vez que, suprimindo-o mentalmente, resulta impossível conceber o segundo fenômeno. Suponha-se que A tenha matado B. A conduta típica possui uma série de fatos antecedentes, dentre os quais podemos sugerir os seguintes: 1.º) produção do revólver pela indústria; 2.º) aquisição da arma pelo comerciante; 3.º compra de revólver pelo sujeito; 4.º)refeição tomada pelo homicida; 5.º) emboscada; 6.º) disparo de projéteis; 7.º resultado morte Dentro dessa cadeia, excluindo-se os fatos sob ns. 1.º a 3.º, 5.º a 6.º, o resultado não teria ocorrido. Logo, são considerados causa. Excluindo-se o fato n.º 4 (refeição), ainda assim o evento teria acontecido. Logo, a refeição tomada pelo sujeito não é considerada causa”. (JESUS, 1997, p. 23.).

Já o resultado naturalístico se dá quando houve alteração no mundo jurídico. Desta forma, a conduta do agente terá necessariamente que causar uma modificação no mundo exterior ou, nas palavras de Petrocelli “una modificazione del mondo esterno che segue a quel’altra modificazione del mondo esterno che è l’azione”.

A tipicidade, por sua vez, ocorre quando a conduta do agente se adequa perfeitamente à norma penal incriminadora.

O ilustre Mestre Cezar Roberto Bitencourt descreve a Tipicidade como nos seguintes termos:

“A correspondência entre o fato praticado pelo agente e a descrição de cada espécie de infração contida na lei penal incriminadora. Um fato para ser adjetivado de típico precisa adequar-se a um modelo descrito na lei penal, isto é, a conduta praticada pelo agente deve subsumir-se na moldura descrita na lei”. (BITENCOURT, 2001. p. 201.).

Já Fernando Capez pontua:

“O Conceito de tipicidade é a subsunção, justaposição, enquadramento, amoldamento ou integral correspondência de uma conduta praticada no mundo real ao modelo descritivo constante da lei (tipo legal). Para que a conduta humana seja considerada crime, é necessário que se ajuste a um tipo legal”. (CAPEZ, 2000. p. 136.).

O segundo elemento do crime é o fato antijurídico/ilícito. Entende-se por antijuridicidade as ações ou omissões que são contrárias às normas de Direito Pátrio. Essa contrariedade deverá ser alvo de repressão penal, salvo quando pautar-se sob a égide de uma das causas de exclusão da antijuridicidade previstas no art. 23 do Código Penal. In verbis:

“Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I - em estado de necessidade;

II - em legítima defesa;

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

[...]”.

Grifos nossos.

Enrique Bacigalupo nos ensina que:

“A antijuridicidade consiste na falta de autorização da ação típica. Matar alguém é uma ação típica porque infringe a norma que diz ‘não deves matar’. Esta mesma ação será antijurídica se não for praticada sob o amparo de uma causa de justificação”. (BACIGALUPO, 1984, prólogo).

Assim, não é suficiente que o comportamento se adeque ao tipo penal, é necessário que conduta encontre correspondência em determinado modelo legal, adequando-se o fato cometido pelo agente à norma penal incriminadora. Ademais, é fundamental que não exista nenhuma das causas de exclusão da antijuridicidade (previstas no art. 23 do Código Penal, acima destacado) para que incida a reprovação do ordenamento jurídico à conduta atribuída ao agente.

O terceiro e último elemento necessário para configurar o crime é que a conduta seja culpável. Conduta culpável é aquela que é tida como reprovável pelo nosso Ordenamento Jurídico. Assim, a culpabilidade pode ser definida como a condição em que uma pessoa se encontra diante do certo e do errado, podendo decidir por um ou por outro.

Vejamos o que dispôs Zaffaroni sobre o tema posto à baila:

“Delito é uma conduta humana individualizada mediante um dispositivo legal (tipo) que revela sua proibição (típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária ao ordenamento jurídico (antijurídica) e que, por ser exigível do autor que atuasse de outra maneira nessa circunstância, lhe é reprovável (culpável)”. (ZAFFARONI, 1996, p.324.).

A principal característica da culpabilidade é a possibilidade de raciocinar como o homem médio, ou seja, como uma pessoa normal, dentro dos padrões estabelecidos para a sociedade como um todo.

Nessa perspectiva, a capacidade de escolha não é o fim de uma ação ou a motivação do fato, e sim, a parte externa daquilo que se motivou o ato, ou seja, compõe as análises feitas por uma pessoa quando está posta diante de um problema. No mais, não pode ser valorado da mesma forma a culpabilidade de uma pessoa irracional.

Desta feita, um ser humano culpável é aquele que age livremente dentro de uma situação, mas com uma certa consciência e liberdade de escolha entre uma saída ou outra, tomando por base situações cotidianas. Assim, caso a escolha “errada” tenha sido tomada em situações atípicas, como por exemplo, situações de grave ameaça, tal fato deve ser sopesado na análise da culpabilidade.

Por fim, é de se esclarecer que caso algum desses elementos não reste satisfeito no momento da apuração/desdobramento da ação, não há que se falar em crime.

  1. HOMICÍDIO

Embora a conduta de matar alguém seja disciplinada desde os primórdios dos tempos, havia divergência entre os diplomas legais sobre qual denominação seria mais adequada para esse delito de acordo com o seu grau de reprovabilidade. Em muitos ordenamentos a denominação empregada para conduta de cercear a vida de alguém era “assassinato” quando o crime era mais grave e “homicídio” quando o mesmo se dava de maneira comum. Todavia, o Código Penal de 1940 inovou nesse aspecto, adotando apenas a denominação de “homicídio” para a conduta ‘matar alguém’, independentemente da sua maior ou menor reprovabilidade.

Um dos primeiros relatos de homicídio que temos documentado encontra-se descrito no livro de Gênesis 4:8-16, na história de Abel e Caim. Embora seja um relato validado pela fé, é inegável o quão severamente Caim foi punido por ceifar a vida de seu irmão Abel. Vejamos:

“8. Disse Caim a Abel, seu irmão: Vamos ao campo. Estando eles no campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão, e o matou. 9. Disse o SENHOR a Caim: Onde está Abel teu irmão? Ele respondeu: Não sei; acaso sou eu tutor de meu irmão? 10. E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra a mim. 11. És agora, pois, maldito por sobre a terra, cuja boca se abriu para receber de tuas mãos o sangue de teu irmão.12. Quando lavrares o solo, não te dará ele sua força; serás fugitivo e errante pela terra. 13. Então, disse Caim ao SENHOR: É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo. 14. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se encontrar me matará. 15. O SENHOR, porém, lhe disse: Assim, qualquer que matar Caim será vingado sete vezes. E pôs o SENHOR um sinal em Caim para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse. 16. Retirou-se Caim da presença do SENHOR e habitou na terra de Node, ao oriente de Éden. (A Bíblia Sagrada. 1999, p. 5).

Tem-se por homicídio, o delito pelo qual alguém tira a vida de outrem. Tutela-se nessa modalidade de crime a vida, que é tida em nosso seio social como bem jurídico por excelência, uma vez que sem ela os demais direitos têm sua proteção mitigada. Assim, afirma-se com categoria, que a norma penal objeto do presente estudo, visa proteger a vida humana.

O Homicídio nada mais é do que a morte de um homem levada a efeito por outro homem. O crime de homicídio, por possuir muitas modalidades, é previsto no Código Penal e em algumas Leis Extravagantes, tais como a Lei de Crimes Hediondos, o Código de Trânsito Brasileiro e o Código Penal Militar.

O Ilustre doutrinador Bitencourt define o homicídio como sendo “a eliminação da vida de alguém levada a efeito por outrem”. (Bitencourt - 6. ed. P. 21, 2007.).

No mesmo sentido, Rodrigo Colnago, define o homicídio nos seguintes termos: “Homicídio é a morte de um homem provocada por outro homem. É a eliminação da vida de uma pessoa praticada por outra. O homicídio é o crime por excelência”. (Colnago, 2008, p. 8.).

Já Nelson Hungria, trata sobre o homicídio nos seguintes termos:

“O homicídio é o tipo central contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinquência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada”. [Grifos nossos] - (HUNGRIA, 1979, p. 25.).

Assim, não é difícil de concluir que no crime homicídio haverá sempre um sujeito ativo (que praticará a conduta descrita o núcleo do tipo, qual seja, matar) e um sujeito passivo (que será aquele sofrerá fatalmente a ação e terá a sua vida cerceada).

Ainda tentando conceituar o homicídio, Damásio de Jesus e Mirabete fizeram as seguintes considerações, respectivamente. Veja:

“Alguns conceitos antigos incluem na definição a injustiça e a violência. Entretanto, a injustiça do comportamento do sujeito não integra o tipo penal pertencente ao segundo requisito do crime, à antijuridicidade. Não possuindo o tipo de homicídio qualquer elemento de natureza normativa, referente à ilicitude do comportamento, não devemos incluir no conceito a antijuridicidade. Esta é requisito do crime de homicídio. A violência também não faz parte do conceito, uma vez que é perfeitamente possível ao sujeito causar a morte da vítima sem emprego de força bruta, como é o caso do venefício”. (JESUS, 1997, p. 18.).

“O homicídio, punido desde a época dos direitos mais antigos, era definido por Carrara como sendo a destruição do homem injustamente cometida por outro homem, por Carmignani como a ocasião violenta de um homem injustamente praticada por outro homem e por Antolisei como a morte de um homem ocasionada por outro homem com um comportamento doloso ou culposo e sem o concurso de causa de justificação”. (MIRABETE, 1997, p. 61.).

Importante esclarecer, que no crime de homicídio tem-se a eliminação da vida extrauterina, vez que, a eliminação da vida endo-uterina é regulada nos crimes de aborto.

Nessa perspectiva, é de fundamental importância delimitar o momento exato em que se configurará o crime de aborto e o de homicídio, ou seja, precisa ser delimitado com precisão quando se inicia o fim da vida intrauterina e o início da vida extrauterina.

Por ser um tipo penal de ação livre, o homicídio pode ser praticado de diversas maneiras, podendo a pena ser aumentada ou diminuída de acordo com sua maior ou menor reprovabilidade.

Sobre os meios de cometimento do homicídio, Mirabete discorreu em sua obra nos seguintes termos:

“Os meios para a prática do crime podem ser físicos, químicos, patogênicos ou até morais, como a provocação de susto para matar, ou a condução de um cego para o abismo. Pode ser praticado por ação ou omissão, ocorrendo o ilícito pela inatividade do agente que tinha o dever de agir para evitar o resultado (art. 13, § 2.º do CP). Evidentemente, como em qualquer crime, não se dispensa o nexo causal entre a conduta e a morte do ofendido, sempre com fundamento na teoria da equivalência dos antecedentes referida no art. 13”. (MIRABETE, 2000, p. 644.).

Assim, tem-se que crime de homicídio admite tanto a forma comissiva, ou seja, a ação, quando a forma omissiva imprópria, que se refere a omissão. A forma comissiva ocorre quando, por exemplo, o agente efetua um disparo de arma de fogo, vindo a matar alguém através de sua ação. Já a forma comissiva ocorre quando, por exemplo, quando a mãe deixa de amamentar seu filho recém-nascido.

Todavia, esclareça-se que a responsabilização penal por conduta comissiva imprópria exige que o agente tenha se colocado na posição de garante ou, até mesmo, de garantidor.

O homicídio é classificado como um crime comum, vez que o mesmo pode ser praticado por qualquer pessoa. Ainda em termos de classificação, pode-se dizer que se trata de um crime unissubjetivo, pois não exige um número mínimo de praticantes.

Esclareça-se que homicídio também é tido pela doutrina como um crime material, uma haja vista que sua consumação depende da produção de um resultado naturalístico, assim, sem morte não poderá se falar em consumação, cabendo apenas análise sobre a tentativa, caso o crime seja doloso. Nesses delitos, é indispensável o exame de corpo de delito, uma vez que o mesmo é transeunte, ou seja, deixa vestígios.

  1. Homicídio doloso e homicídio culposo

O tipo penal do artigo 121 do Código Penal refere-se à figura de “matar alguém”. Essa conduta poderá ser dolosa ou culposa. A distinção entre o homicídio culposo e o homicídio doloso é extremamente relevante, tendo em vista que com isso é possível determinar com precisão o grau de responsabilidade da conduta criminosa perpetrada pelo agente.

Entende-se por conduta dolosa, aquela em que o agente “deseja” o resultado (o chamado dolo direto) ou “aceita o risco de produzi-lo” (dolo eventual).

No dolo direto o indivíduo possui conhecimento do que está fazendo e se comporta de maneira totalmente voluntária. Nessa modalidade de dolo, o indivíduo sabe que algo ruim vai acontecer e, mesmo assim, executa a ação até o final e com a finalidade de se obter o resultado. Um exemplo dessa modalidade de dolo é quando a agente efetua o disparo de uma arma de fogo contra determinada pessoa, de forma premeditada e queda por conseguir o resultado morte.

Assim, o resultado da conduta é querido pelo agente, que age com a intenção de atingir o bem jurídico objeto da proteção Estatal.

Em contrapartida, no dolo eventual o indivíduo sabe que sua ação é criminosa e arriscada, mas o mesmo não deseja provocar nenhum mal desproporcional. Um exemplo típico dessa modalidade de dolo ocorre quando o agente trafega com seu veículo em uma velocidade muito alta e como consequência acaba por atropelar um pedestre que atravessava a via naquele momento, ceifando sua vida.

Neste caso, o agente não quer atingir o bem jurídico “vida”, mas aceita o risco de produzir o resultado.

O Código Penal vigente definiu expressamente o que se entende por crime doloso, conforme se verifica no art. 18, I, in verbis:

Art. 18. Diz-se o crime:

Crime doloso

I. Doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

(...) – [Grifos Nossos] - (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.436.).

Assim, fala-se em dolo sempre que alguém age de maneira consciente e com o fim exclusivo de provocar o dano. Nesse diapasão, resta patente que os principais elementos da conduta dolosa são a consciência, uma vez que há previsibilidade do resultado e a vontade, pois o agente deve querer ou ao menos aceitar a produção do resultado anteriormente previsto.

O doutrinador Fernando Capez definiu a conduta dolosa nos seguintes termos: “Na conduta dolosa, há uma ação ou omissão voluntária dirigida a uma finalidade ilícita; nela o agente quer ou assume o risco da produção do evento criminoso”. (Capez, 6ª Ed. 2006.).

Interessante destacar, que na conduta dolosa a finalidade do agente é ilícita, ele sabe o que faz, quer fazer e sabe que é errado. Nesta esteira, pode-se conceituar o homicídio doloso como o crime pelo qual alguém voluntaria e conscientemente cerceia a vida de outrem.

Diferentemente do que ocorre na conduta dolosa, na conduta culposa o agente não deseja nem assume o risco de produzir o resultado e, embora muitas vezes o resultado possa ser previsto ou previsível, o agente rechaça a possibilidade de o mesmo vir a ocorrer, acreditando veemente que nada sairá errado.

Assim, tem-se que o causador do delito se comporta de maneira involuntária, ou seja, não possui a intenção de ceifar a vida de ninguém, mas o resultado morte acaba acontecendo em decorrência de algum tipo de imprudência, negligência ou imperícia.

Nessa esteira, pode-se dizer que o protagonista da conduta culposa na ação de ceifar a vida de alguém não age com premeditação, deslealdade ou crueldade, pelo contrário, o resultado advém de uma conduta imprudente, negligente ou imperita. Nesse caso, haverá apenas uma quebra no dever de cuidado objetivo.

A culpa é descrita no homicídio de maneira aberta, uma vez que seria impossível que o legislador previsse todas as modalidades culposas que poderiam vir a causar a morte de alguém.

A conduta culposa vem descrita genericamente no art. 18, II do Código Penal da seguinte maneira:

ART. 18. Diz-se o crime:

(...)

Crime culposo

II. Culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. (Grifos Nossos) - (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.436.).

Com base nisso, pode-se afirmar que o crime culposo é a conduta voluntária comissiva ou omissiva que produz resultado antijurídico não querido, mas que era previsível, bem como que poderia ter sido evitado com a devida atenção.

Assim, para se caracterizar a conduta culposa é necessário que a mesma seja negligente, imprudente ou imperita. Existe ainda a chamada culpa imprópria, que é a proveniente do erro. Nesse sentido, vejamos os ensinamentos do Ilustre Fernando Capez:

“Podemos definir crime culposo como a conduta humana voluntária que provoca de forma não intencional um resultado típico e antijurídico, que era previsível e que poderia ter sido evitado se o agente não tivesse agido com imprudência, negligência ou imperícia”. (Capez, 2006).

A imprudência é decorrente da violação a regras de condutas adquiridas em virtude da experiência. É uma forma de ausência de cautela ao realizar uma ação, ocasionando paralelamente a conduta culposa. Assim, na culpa proveniente da imprudência, tem-se uma conduta comissiva.

O Ilustre Cesar Roberto Bitencourt define a imprudência nos seguintes termos: “Conduta imprudente é aquela que se caracteriza pela intempestividade, precipitação, insensatez ou imoderação”. (Bitencourt, P. 61, 2007.).

A negligência, por sua vez, ocorre quando o agente se omite de um dever de cuidado, ou seja, deixa de tomar as cautelas necessárias ao iniciar a conduta, ocasionando em virtude disso um resultado que poderia ter sido plenamente evitado.

Nessa modalidade de culpa, o resultado fica fora da margem de previsão do autor da conduta. Tem-se então uma conduta omissiva, o que infere dizer que a mesma se dá antes do início da conduta e não paralelamente como ocorre com a imprudência.

Nesse sentido, vejamos o que dispõe o mestre Bitencourt:

“Negligência é a displicência no agir, a falta de precaução, a indiferença do agente, que, podendo adotar as cautelas necessárias, não o faz. É a imprevisão passiva, o desleixo, a inação (culpa in comittendo). É não fazer o que deveria ser feito.

(...)

Em outros termos, a negligência não é um fato psicológico, mas sim um juízo de apreciação, exclusivamente: a comprovação que se faz de que o agente tinha possibilidade de prever as consequências de sua ação (previsibilidade objetiva). (Bitencourt, P. 62 – 2007.).

Já a imperícia se dá pela falta de conhecimento técnico para o exercício da conduta, ou seja, o agente não possui capacitação profissional nem conhecimento amplo para a prática da conduta, mas, mesmo assim decide por realizá-la. Nesse sentido, vejamos os ensinamentos do Ilustre Capez, in verbis:

“Imperícia: é a falta e aptidão para realização de certa conduta. É a prática de certa atividade, de modo omisso (negligente) ou insensato (imprudente), por alguém incapacitado para tanto, quer pela ausência de conhecimento, quer pela falta de prática”. (Capez, P. 279, 2006.).

Conforme acima ressaltado, além da negligência, imprudência e imperícia, temos outra modalidade de culpa, que é a chamada culpa imprópria. Para que essa culpa exista é necessário que o agente preveja o resultado, mas incida em erro quanto à legitimidade da ação realizada.

Assim, não há como negar que na culpa imprópria o agente deseja o resultado, todavia, sua ação se encontra viciada por um erro evitável, ou seja, se ele agisse com mais cautela teria evitado a produção do resultado.

Nesse sentido destacamos o entendimento do Mestre Bitencourt: “Com efeito, a culpa imprópria, culpa por extensão ou assimilação decorre do erro de tipo evitável nas discriminantes putativas ou do excesso nas causas de justificação”. (Bitencourt, Cezar Roberto - p. 67, 2007.).

A doutrina pátria ainda cuidou de classificar a culpa como consciente e inconsciente, aferindo-a a partir do grau de previsibilidade que o a gente possa ter sobre a produção do resultado. Embora seja uma discursão interessante e que merece ser conhecida pelos operadores do direito, o nosso Código Penal não cuidou em distinguir essas modalidades de culpa, sendo essa divisão um critério puramente doutrinário.

Dentro dessa celeuma, discute-se ainda na seara jurídica a diferenciação entre a culpa consciente e o dolo eventual. De maneira sucinta, pode-se afirmar que o que diferencia esses dois institutos é a aceitação do resultado, uma vez que nas modalidades de culpa o resultado embora possa ser previsto nunca é aceito, enquanto no dolo eventual embora não se deseje o resultado o agente aceita veemente o risco de produzi-lo.

Frise-se por oportuno, que na modalidade culposa a conduta do agente é voltada para uma finalidade lícita, ele não deseja o resultado ilícito nem o aceita, havendo apenas a inobservância de um dever de cuidado objetivo.

Esse dever de cuidado é quebrado, quando o agente se afasta da conduta esperada do homem médio, ou seja, ele deixa agir com cautela e acaba provocando um dano. Assim, o agente conhece a norma, sabe qual conduta deve adotar, mas acredita que se a mesma não for observada nada sairá errado.

O doutrinador Rodrigo Colnado dispôs sobre o tema da seguinte maneira:

“É cediço que o meio social exige dos indivíduos determinados comportamentos de modo a evitar que produzam danos uns aos outros. Impõe-se, assim, uma conduta normal. Conduta normal é aquela ditada pelo senso comum. Se a conduta do agente afastar-se daquela prevista na norma social, haverá a quebra do dever de cuidado e, consequentemente, a culpa”. [Grifos Nossos] - (Colnago, P.47. – 2008).

O injusto culposo possui uma estruturação diferente da que se emprega ao injusto doloso, uma vez que no culposo não se fala em elemento subjetivo do tipo, havendo apenas conforme outrora exposto, uma quebra no dever de cuidado, em outros termos, pode-se dizer que há um desatendimento ao cuidado objetivo que se espera do homem médio. Vejamos os ensinamentos do mestre Bitencourt sobre essa questão, in verbis:

“O essencial no tipo injusto culposo não é a simples causação do resultado, mas sim a forma com que a ação causadora se realiza. Por isso, a observância do dever objetivo de cuidado, isto é, a diligência devida, constitui elemento fundamental do tipo do injusto culposo, cuja análise constitui uma questão preliminar no exame da culpa. (...)”.

E prossegue argumentando:

“A inobservância do cuidado objetivamente devido resulta da comparação da direção finalista exigida para evitar as lesões dos bens jurídicos. A infração desse dever de cuidado representa o injusto típico dos crimes culposos. No entanto, é indispensável investigar o que teria sido, in concreto, o dever de cuidado. E, como segunda indagação, deve-se questionar se a ação do agente correspondeu a esse comportamento “adequado”.

(...)

“Com efeito, além das normas de cuidado e diligência, será necessário que o agir descuidado ultrapasse os limites de perigos socialmente aceitáveis na atividade desenvolvida”. [Grifos nossos] - (Bitencourt, P.66, 2007).

Nesse sentido, todos os elementos necessários à caracterização da culpa são aferidos baseando-se no homem médio, pois, se não era possível haver a previsão não há que se falar em culpa, tornando-se completamente incongruente a exigência de uma conduta diversa do agente, sob pena de restar configurada uma modalidade de responsabilidade objetiva, o que é rechaçado por nosso Ordenamento Jurídico Pátrio.

Por outro lado, é imprescindível a existência de um resultado para configurar o crime. Assim, mesmo que haja inobservância de um dever de cuidado pelo agente, se o resultado não vier a ocorrer não se pode falar em crime culposo, uma vez que a tipificação da conduta advém do resultado.

Nesse sentido, destacamos o ensinamento do ilustre Capez, conforme abaixo transcrito:

Na conduta culposa, há uma ação voluntária dirigida a uma finalidade lícita, mas, pela quebra do dever de cuidado a todos exigidos, sobrevém um resultado ilícito não querido, cujo risco nem sequer foi assumido.” (Capez, 2006).

Desta forma, resta clarividente a necessidade de que haja previsibilidade do resultado pelo agente, pois, seria ilógico censurar e/ou responsabilizar uma conduta que o indivíduo não tinha capacidade de prever.

2.2. Homicídio culposo previsto no artigo 121, §3º do Código Penal

O crime de homicídio sempre foi objeto de repressão no Ordenamento Jurídico pátrio. Embora a conduta ‘matar alguém’ possa se desdobrar em inúmeras modalidades, deteremos nosso estudo a analisar a figura do homicídio culposo, prevista art. 121, §3º do CP, in verbis:

ART. 121. Matar alguém:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.

(...)

§3º. Se o homicídio é culposo:

Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. [Grifos nossos] - (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.445.).

Conforme amplamente discutido outrora, configura-se o homicídio culposo quando o agente, através de uma quebra no dever de cuidado objetivo, produz um resultado não desejado. Esse resultado incontestavelmente será a morte de outrem, uma vez que não é admissível tentativa em crimes culposos.

Esse delito, na modalidade culposa, pode ser provocado em razão da falta de cuidado objetivo do agente, imprudência, imperícia ou negligência. Ou seja, não se verifica a intenção de matar, ante a ausência do chamado animus necandi.

Ressalte-se que o Código Penal regula todas as modalidades de homicídio culposo, exceto quando o mesmo se dá na direção de veículo automotor, pois, a Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) criou um tipo específico para esses casos.

No Código Penal as sanções cominadas para o homicídio culposo variam de 1 (um) a 3 (três) anos de detenção. Assim, como a pena mínima não ultrapassa 1 (um) ano, é plenamente possível que haja a proposta de suspensão condicional do processo pelo Ministério Público. Essa previsão está contida no art. 89 da Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais). Destacamos:

“ART. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena”. [Grifos nossos] - (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.1677.).

A suspensão condicional do processo caracteriza-se como uma forma alternativa para solução de conflitos e de desafogamento do poder judiciário, pois visa impedir que cotidianamente sejam tramitadas inúmeras ações cuja pena mínima não ultrapasse 1 (um) ano e cujo réu possua circunstâncias judiciais favoráveis, não seja reincidente e nem esteja sendo processado por outro crime, evitando-se com isso, o assoberbamento de processos em curso na Justiça Criminal.

Ademais, insta salientar que a aceitação da proposta de suspensão condicional do processo feita pelo Ministério Público não implica na confissão de culpa pelo réu, há apenas uma renúncia com relação à continuidade do contraditório no processo, preferindo a parte encerrar a discursão no momento em que se encontra.

Com base nisso, é possível afirmar que o réu que aceita a proposta de suspensão condicional do processo será considerado primário após o transcurso do período de prova.

2.3. Homicídio culposo previsto no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro

Com o advento da lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), criou-se um dispositivo específico para tratar do homicídio culposo quando o mesmo se dá na direção de veículo automotor. Assim, o parágrafo 3º do art. 121 do Código Penal, regulará todas as demais figuras de homicídio culposo, exceto com relação ao homicídio culposo previsto no art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro.

Desde o início de sua vigência, o Código de Trânsito Brasileiro sofreu inúmeras alterações, todas com o intuito de aperfeiçoar as regras de trânsito, bem como de conter o lamentável e elevadíssimo número de casos de homicídios cometidos sob a direção de veículo automotor.

O principal objetivo desta lei foi estimular a redução no número de acidentes envolvendo veículos, e consequentemente resguardar a vida humana, que estava sendo ceifada por acidentes no trânsito em números alarmantes.

No ano de edição da referida Lei, a Folha de São Paulo divulgou que cerca de 36.000 (trinta e seis) mil pessoas estavam morrendo anualmente sendo vítimas de acidentes no trânsito, com base em um estudo realizado no ano de 1996. (Folha de S. Paulo, C - 3, p. 4, 30.08.97).

É inegável que a edição do Código de Trânsito Brasileiro trouxe inúmeras inovações na legislação pátria, passando a tratar de maneira específica sobre as modalidades de lesões corporais e homicídios culposos quando ocorrerem na direção de veículo automotor, afastando drasticamente a aplicação do Código Penal. Vejamos a redação do art. 302 do CTB, in verbis:

“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”. (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.789).

Como se sabe, a última modificação do Código de Trânsito Brasileiro foi introduzida pela Lei nº 13.546/2017. Dentre as principais modificações introduzidas pela referida Lei, a principal diz respeito ao crime de homicídio culposo no trânsito, previsto no art. 302 acima destacado, o qual passa a vigorar acrescido do §3º, o qual conta com a seguinte redação:

“§ 3º Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”. [Grifos nossos] - (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.789).

O próprio CTB definiu o que se entende por veículo automotor, em seu anexo I, conforme transcrito pelo Ilustre Capez em seu Curso de Direito Penal, vejamos:

“Todo veículo de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico).” (Capez, p. 78, 2006).

A caracterização da culpa prevista no Código de Trânsito Brasileiro deriva-se primordialmente do desrespeito às normas previstas na legislação de trânsito, sempre que houver negligência, imprudência ou imperícia por parte do condutor. Estas, porém, não são as únicas possibilidades, uma vez que o agente poderá simplesmente desrespeitar uma norma de dever, e ser responsabilizado pelo delito culposo da mesma maneira.

Ressalte-se, que no Direito Penal, diferente do que ocorre em outros ramos da ciência jurídica, não há compensação de culpas, tendo em vista a relevância dos bens jurídicos por ele protegidos.

Ademais, insta salientar que não basta que o homicídio seja praticado no trânsito para ser regulado pelo Código de Trânsito Brasileiro, sendo indispensável que o crime se dê na direção de veículo automotor.

Assim, se alguém atingir outrem no trânsito, ocasionando-lhe a morte, sem estar conduzindo um veículo automotor, responderá pelo homicídio nos termos previstos no Código Penal e não no Código de Trânsito Brasileiro.

Esclareça-se ainda, que o Código de Trânsito Brasileiro também regula os acidentes de trânsito ocorridos em vias particulares e não apenas àqueles que ocorrerem em vias públicas. Desta feita, caso ocorra um homicídio culposo no trânsito em um estacionamento de um shopping, por exemplo, esse crime será tratado pelo Código de Trânsito Brasileiro e não pelo Código Penal.

No Código de Trânsito Brasileiro a sanção cominada para o homicídio culposo varia de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, cumulada com a suspensão ou proibição de se obter permissão ou habilitação para dirigir. Nesses casos, por se tratar de bem jurídico indisponível, a ação penal será pública incondicionada.

Ressalte-se que a severidade na repressão do homicídio culposo no trânsito não se deu apenas com base na pena abstratamente cominada, uma vez que ainda houve cumulação com suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Infere-se dizer, que o apenado que causar a morte de alguém na direção de veículo automotor será duplamente punido com uma pena privativa de liberdade e uma restritiva de direitos.

Observe que o apenamento para o homicídio culposo no trânsito é significativamente maior do que o previsto para a mesma modalidade de homicídio regulada no Código Penal. Para alguns doutrinadores esse parâmetro diferenciado de repressão se justifica pela maior reprovabilidade empregada as condutas culposas praticadas no trânsito, merecendo em face disto, uma atenção especial.

O posicionamento do Ilustre Rui Stoco, se amolda claramente a essa corrente, quando dispõe que: “É de uma clareza meridiana a diferença e a maior desvalia das ações “descuidadas” praticadas no trânsito daquelas demais ações supracitadas, que podem ocorrer no quotidiano social”. (Rui Stoco, 1997, p.74.).

Nessa modalidade de homicídio culposo não será possível haver proposta de suspensão condicional do processo pelo Ministério Público, pois a mesma só é possível nos casos em que a pena mínima abstratamente cominada não ultrapasse um ano.

Não obstante, embora não seja possível haver suspensão condicional do processo e/ou da pena, é plenamente possível, em caso de condenação, que se pleiteie a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nos termos do art. 44 do Código Penal, uma vez que o crime previsto no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro se dá na modalidade culposa.

Vejamos a transcrição do art. 44 do Código Penal, in verbis:

“Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)

I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;

II - o réu não for reincidente em crime doloso;

III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.

§ 1º (VETADO)

§ 2º Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos”. [Grifos nossos] - (Vade Mecum Saraiva, 2018, p.438).

Por fim, cumpre esclarecer que nos casos em que a conduta da vítima por si só provocou o resultado, não há que se falar em responsabilização do condutor do veículo, uma vez que não restou configurada a culpa. Assim, nessas situações restará completamente afastada a aplicação do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro.

  1. CONFLITO APARENTE DE NORMAS

Entende-se por conflito aparente de normas a situação em que uma mesma conduta se amolda em dispositivos diferentes no Ordenamento Jurídico, havendo o que a doutrina denomina de unidade de conduta e pluralidade de normas, fato esse que eleva o interesse dos juristas sobre o estudo e a discursão do tema.

Nesse sentido, Capez dispôs o seguinte. Observe:

É o conflito que se estabelece entre duas ou mais normas aparentemente aplicáveis ao mesmo fato. Há conflito porque mais de uma pretende regular o fato, mas é aparente, porque apenas uma delas acaba sendo aplicada à hipótese. (CAPEZ, 2012, p.48.).

Para configurar o conflito aparente de normas, faz-se necessário a junção de quatro elementos, quais sejam: a unidade do fato (prática de apenas uma infração penal), pluralidade de normas (dois ou mais dispositivos aptos a regular a situação), aparente aplicação (uma vez que se poderá aplicar apenas uma das normas conflitantes) e efetiva aplicação (aplicação de apenas uma norma).

Chama-se conflito aparente de normas, porque embora haja a possibilidade de mais de uma norma regular o mesmo fato, apenas uma poderá ser aplicada. Esse conflito pode se dar em Leis distintas, como ocorre com o Código Penal e o Código de Trânsito Brasileiro ou entre artigos imersos no mesmo diploma jurídico.

Alguns autores sustentam que esse conflito deve ser solucionado a partir da análise e aplicação de princípios constitucionais. Para eles os principais princípios a serem aplicados para dirimir essa questão, são o princípio da especialidade, o princípio da subsidiariedade e o princípio da consunção.

O princípio da especialidade pauta-se sobre a expressão latina “lex especialis derrogat lex generalis.” Por ele, deve-se entender que sempre que duas normas forem conflitantes aplicar-se-á a mais específica, ou seja, a que melhor se adeque a situação fática, prevalecendo desta forma a norma especial em detrimento a norma geral. Isso se dá, porque a norma especial terá sempre todos os elementos da geral e mais algum/alguns elementos que a especialize, ou seja, torne-a mais adequada a solucionar o litígio apresentado.

Nesse sentido, destacamos os ensinamentos do Ilustre Bittencourt em sua obra. Veja:

“Considera-se especial, uma norma penal, em relação a outra geral, quando reúne todos os elementos desta, acrescidos de mais alguns, denominados especializantes, acrescentando elemento próprio a descrição típica prevista em norma geral”. (Bitencourt, 2007, p. 199.).

Já o princípio da subsidiariedade dispõe que a norma primária em conflito deverá prevalecer sobre a subsidiária. A norma primária será tida como aquela em que as circunstâncias fáticas forem descritas com uma amplitude maior, ou seja, aumentando-se sua margem de alcance. Por sua vez, a norma subsidiária, possui um grau de lesividade e de violação ao bem jurídico menor, configurando-se como uma espécie de meio necessário à execução do crime. Assim, infere-se dizer que a norma primária por ser mais ampla engloba a subsidiária. Ressalte-se que a própria norma subsidiária reconhece o seu caráter de subsidiariedade, admitindo ser aplicada apenas quando não houver a configuração um crime mais grave.

Um exemplo nítido dessa subsidiariedade é o crime de ‘perigo para vida ou saúde de outrem’, regulado no art. 132 do Código Penal. Esse dispositivo só terá aplicação se não houver violação ao bem jurídico “vida”, podendo haver, apenas, a sua mera exposição.

Observe que o que diferencia a subsidiariedade da especialidade, é que na primeira as condutas são idênticas, porém, uma se amolda à outra, ou seja, uma cabe dentro da outra, enquanto na segunda os delitos são parecidos, mas existe um detalhe por mínimo que seja que diferencia um delito do outro.

Já para o princípio da consunção ou absorção, a norma que define o crime constitui-se como meio necessário ou fase normal de preparação e até mesmo, execução de outro crime. Em outras palavras, há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, que queda por ser mais abrangente, aplicando-se esta última.

Doutra banda, insta salientar que não questionamos em nenhum momento a aplicação dos princípios da especialidade e da subsidiariedade em normas conflitantes, a discursão que se trava, é no sentido de que não se pode haver essa distinção em situações em que a violação ao bem jurídico se dá da mesma forma e produz as mesmas consequências físicas.

  1. Conflito entre o artigo 121, §3º do Código Penal e o artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro

A Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) implantou várias mudanças no Ordenamento Jurídico Pátrio. Antes de sua edição, todas as modalidades de homicídio culposo eram tratadas pelo art. 121, §3º e §4º do Código Penal, o qual possui um apenamento mais brando.

Assim, após a edição da referida lei, criou-se um tipo específico para o homicídio culposo na direção de veículo automotor, que segundo uma parte da doutrina deveria ter aplicabilidade em nome do princípio da especialidade. A outra parte da doutrina advoga que a solução deste conflito deve ocorrer através da aplicação dos princípios da proporcionalidade e da isonomia.

Todavia, o fato do bem jurídico protegido por essas duas normas ser o mesmo fez com que esses dois dispositivos entrassem em conflito, surgindo o chamado conflito aparente de normas, que no caso em epígrafe se dá entre o Código Penal e o Código de Trânsito Brasileiro.

O interesse dos doutrinadores sobre o estudo deste conflito decorre do excessivo apenamento imposto pelo artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro para o homicídio culposo que é regulado com um apenamento mais brando no artigo 121, §3º do Código Penal.

Desta forma, como o bem tutelado é de imensurável importância, esse conflito aparente de normas deve ser tratado com a máxima cautela, afinal, em ambos os casos o agente não tinha intenção de praticar a conduta, bem como não aceitava o risco de produzi-la. Assim, infere-se dizer que tanto no artigo 121, §3º do Código Penal quanto no art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro o bem jurídico, o tipo objetivo e o tipo subjetivo são os mesmos.

Nesse diapasão, é inegável a existência de conflito aparente entre o artigo 121 do Código Penal e o artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, uma vez que ambos tratam expressamente sobre o homicídio culposo, devendo-se aferir em cada caso concreto qual desses dispositivos merece ser aplicado. Assim, não se busca neste momento afastar a aplicação do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, o que se busca é sua aplicação de maneira efetiva e proporcional.

4. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O surgimento do princípio da proporcionalidade se deu após a passagem do Estado absolutista para o Estado liberal. Nessa fase da história, o Estado (monarca) detinha poderes ilimitados, e suas decisões eram irretocáveis. Foi com base nessa discricionariedade exacerbada que se começou a falar em instrumentos que fossem capazes de limitar a pretensão punitiva estatal. Esse princípio é fundamental para manter estabelecida a ordem constitucional.

Essa concentração de poder nas mãos do monarca deixou de dar as respostas adequadas para os anseios da sociedade, surgindo um sentimento de vulnerabilidade para a população, que ficou à mercê dos mandos e desmandos do soberano. Observava-se nesse período, que o monarca baseava suas decisões em convicções pessoais, não analisando a questão dentro da perspectiva social. Nesse senário, tornou-se indispensável pensar em meios de controle efetivo da discricionariedade conferida ao monarca a fim de se obter segurança jurídica, surgindo então, os primeiros indícios de aplicação do princípio da proporcionalidade, que objetivava impor limites à discricionariedade do poder estatal.

Esse princípio vem delimitado na Constituição Federal de maneira privilegiada, uma vez que sua função é garantir a aplicação efetiva dos direitos fundamentais, sendo citado por alguns doutrinadores como um dos principais instrumentos de controle de constitucionalidade, ponderando os direitos fundamentais, escalonando-os de acordo com sua importância.

Humberto Bergmann Ávila dispôs sobre a conceituação do princípio da proporcionalidade nos seguintes termos:

“Pode-se definir o dever de proporcionalidade como um postulado normativo aplicativo decorrente da estrutura principal das normas e da atributividade do Direito e dependente do conflito de bens jurídicos materiais e do poder estruturador da relação meio-fim, cuja função é estabelecer uma medida entre bens jurídicos concretamente correlacionados”. [Grifos nossos] - (AVILA, p. 151, 1999).

Assim, é clarividente que o princípio em comento visa reprimir a aplicação imoderada de sanção para cada espécie de infração, evitando-se com isso coibir excessos no momento da aplicação da reprimenda penal. A partir dele deve-se analisar a compatibilidade entre os meios utilizados para repressão e o fim a que essa norma se destina, evitando-se com isso restrições desnecessárias ou abusivas aos direitos constitucionalmente garantidos, não sendo lógico que a sanção aplicada seja cominada além do quantum necessário para que alcance sua finalidade, qual seja, reprimir o ilícito.

O Ilustre Cristóvam dispõe sobre o princípio da proporcionalidade nos seguintes termos:

“A proporcionalidade é uma máxima, um parâmetro valorativo que permite aferir a idoneidade de uma dada medida legislativa, administrativa ou judicial.  Pelos critérios da proporcionalidade pode-se avaliar a adequação e a necessidade de certa medida, bem como, se outras menos gravosas aos interesses sociais não poderiam ser praticadas em substituição àquela empreendida pelo Poder Público”. (CRISTÓVAM, 2006. P.211.).

No mesmo sentido, destacamos as palavras de Franco. Veja:

“O princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um equilíbrio acentuado, estabelece-se, em consequência, inaceitável desproporção. O princípio da proporcionalidade rechaça, portanto, o estabelecimento de cominações legais (proporcionalidade em abstrato) e a imposição de penas (proporcionalidade em concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido considerado em seu significado global. Tem em consequência, um duplo destinatário: o poder legislativo (que tem de estabelecer penas proporcionadas, em abstrato, à gravidade do delito) e o juiz (as penas que os juízes impõem ao autor do delito têm de ser proporcionadas à sua concreta gravidade)”. (FRANCO, 2007. p. 67.).

Assim, não há dúvidas que existe uma limitação socialmente imposta especialmente no que diz respeito ao legislador, que tem obrigação de respeitar os critérios estabelecidos constitucionalmente no momento da elaboração das normas. Desta feita, deve o mesmo, no momento de impor quaisquer restrições aos direitos assegurados constitucionalmente, analisar se há compatibilidade entre a sanção imposta e o que se deseja reprimir de acordo com o grau de reprovabilidade da conduta.

Nesta senda, cumpre observar que o princípio da proporcionalidade serve como meio repressor da discricionariedade dos julgadores, sendo utilizado para limitar a pretensão punitiva estatal. Essa limitação visa evitar que o aplicador da lei exceda seus limites e viole direitos fundamentais.

O doutrinador Guerra Filho dispôs sobre a proporcionalidade nos seguintes termos:

“A ideia de proporcionalidade revela-se não só um importante – o mais importante, como em seguida proporemos – princípio jurídico fundamental, mas também um verdadeiro topos argumentativo, ao expressar um pensamento aceito como justo e razoável de um modo geral, de comprovada utilidade no equacionamento de questões práticas, não só do Direito em seus diversos ramos, como também em outras disciplinas, sempre que se tratar da descoberta do meio mais adequado para atingir determinado objetivo”. [Grifos nossos] - (GUERRA FILHO, 1989, p. 238.).

Outrossim, o Ilustre Doutrinador Fredie Didier discorreu em sua obra que considera que o princípio da proporcionalidade e razoabilidade são princípios necessários à aplicação do princípio do devido processo legal, sob um aspecto substancial. Transcrevo:

“As decisões jurídicas hão de ser, ainda, substancialmente devidas. Não basta a sua regularidade formal; é necessário que uma decisão seja substancialmente razoável e correta. Daí, fala-se em um princípio do devido processo legal substantivo, aplicável a todos os tipos de processo, também. É desta garantia que surgem os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”. (DIDIER JR., 2008, p. 33/34.).

Saliente-se que, embora não desmerecendo os demais princípios erigidos em nosso Ordenamento Jurídico, é de se observar que o princípio da proporcionalidade é o que apresenta maior eficácia, uma vez que busca harmonizar interesses conflitantes.

Da mesma forma, destacamos os ensinamentos de Steinmetz. Veja:

“O princípio ordena que a relação entre o fim que se pretende alcançar e o meio utilizado deve ser proporcional, racional, não excessiva, não arbitrária. Isso significa que entre meio e fim deve haver uma relação adequada, necessária e racional ou proporcional”. [Grifos nossos] - (STEINMETZ,2001, p.149.).

No mais, com a intenção de alertar sobre a responsabilidade destinada aos detentores do poder disciplinar, Claudio Rozza discorreu em sua obra da seguinte forma. Vejamos:

“Uma punição descomedida (desproporcional), além de injusta e desumana, não chega a configurar antídoto legal necessário ao saneamento que pretende realizar. Tais punições ao invés de promoverem a regularidade e o aperfeiçoamento do serviço público, chegam, em verdade, a produzir a sua ruína”. (ROZZA, 2009, p.58.).

Ademais, é de se o princípio da proporcionalidade se apresenta sob três dimensões, quais sejam, adequação da pena, necessidade da pena e proporcionalidade em sentido estrito.

No que pertine a adequação da pena, deve-se analisar de a pena criminal é um meio adequado para realizar o fim de proteger o bem jurídico tutelado ou se haveria outro meio mais eficaz e menos evasivo.

Já a necessidade da pena analisa se a pena criminal é um meio necessário para realizar o bem jurídico.

Por fim, na proporcionalidade em sentido estrito analisa-se se a pena cominada e/ou aplicada é proporcional à natureza e extensão da lesão provocada no bem jurídico, seja ela concreta ou abstrata.

Assim, percebe-se com clareza que em todas as dimensões do princípio da proporcionalidade o que se busca é evitar que a resposta penal seja demasiadamente excessiva em contrapartida a infração penal considerada e/ou cometida.

Já nos ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho, é possível observar o tríplice fundamento no estudo do princípio da proporcionalidade. In verbis:

“a) adequação, significando que o meio empregado na atuação deve ser compatível com o fim colimado; b) exigibilidade, porque a conduta deve ter-se por necessária, não havendo outro meio menos gravoso ou oneroso para alcançar o fim público, ou seja, o meio escolhido é o que causa o menor prejuízo possível para os indivíduos; c) proporcionalidade em sentido estrito, quando as vantagens a serem conquistadas superam as desvantagens”. [Grifos nossos] - (CARVALHO FILHO, 2006, p. 31.)

Desta feita, pelo princípio da proporcionalidade infere-se que cada sansão deve ser aferida com base na gravidade da infração às normas de Direito Pátrio e no dano causado ao particular e/ou ao Estado, não podendo haver punições distintas para a mesma modalidade de ataque ao bem jurídico.

Sobre o tema, Montesquieu defendeu a ideia de proporção entre o delito praticado e a pena, in verbis:

“É um grande mal, entre nós, aplicar a mesma pena àquele que rouba em uma estrada e ao que rouba e assassina. É evidente que, para o bem da segurança pública, dever-se-ia estabelecer alguma diferença entre as penas”. (In: O espírito das leis. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 103).

Nesta mesma linha encontramos Beccaria:

“Não somente é interesse de todos que não se cometam delitos, como também que estes sejam mais raros proporcionalmente ao mal que causam à sociedade. Portanto, mais fortes devem ser os obstáculos que afastam os homens dos crimes, quando são contrários ao bem público e na medida dos impulsos que os levam a delinquir. Deve haver, pois, proporção entre os delitos e as penas.” [Grifos nossos] (In: Dos delitos e das penas. Tradução:J. Cretella Jr e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 37).

Assim, tem-se na proporcionalidade um parâmetro balizador no que pertine a reprimenda estatal, tendo em vista que tudo que é ministrado em excesso faz mal.

4.1. Aplicação do princípio da proporcionalidade ao homicídio culposo previsto no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro

É incontestável na sociedade atual que os índices de acidentes no trânsito são alarmantes, e que devido a esses percentuais a postura adotada pelo legislador de tentar reprimi-los de maneira mais eficaz é louvável. Todavia, não significa que para que haja efetividade na repressão a pena deva ser fixada de maneira indiscriminada, sob pena de violar os princípios erigidos pela Constituição Federal de 1988.

O art. 302 da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) foi e é alvo de grande divergência doutrinária, uma vez que além das incongruências normativas apresentadas em sua tipificação, aumentou o quantum mínimo e máximo de pena abstratamente cominada ao homicídio culposo, destoando do que dispõe o Código Penal, sobre a mesma categoria de crime.

Essa disparidade entre a repressão da mesma modalidade de homicídio causou irresignação entre alguns estudiosos das ciências jurídicas, afinal, para estes, nada justifica o apenamento maior desse delito pelo simples fato do crime se dar sob a direção de veículo automotor, tendo em vista que fora mudado apenas o instrumento pelo qual o delito ocorreu. Essa dicotomia de normas para tratar do homicídio culposo começou a regular crimes iguais sob pesos e medidas diferentes, ferindo vários princípios erigidos no texto constitucional, dentre eles, o princípio da proporcionalidade.

A fixação no parâmetro de penas vem sendo considera demasiadamente desarrazoada, pois trata de maneira distinta crimes idênticos. Os fundamentos utilizados pela doutrina para justificar a desproporcionalidade são os mais variados, verificando-se uma desproporção evidente entre os meios e os fins em face ao arbítrio conferido ao julgador. Todavia, embora haja diversidade na fundamentação existe uma uniformidade crítica ante a inaplicabilidade do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro.

Assim, não é sensato ao legislador presumir que o homicídio culposo no trânsito é necessariamente mais grave do que qualquer outra modalidade de homicídio culposo, cabendo ao juiz, na análise de cada caso concreto, mensurar o grau de reprovabilidade sob a qual a conduta está imersa. Assim, cabe ao juiz dosar de maneira adequada a sanção a ser cominada. O artigo 59 do Código Penal dispõe sobre essa prerrogativa do juiz conforme transcrevemos, in verbis:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vitima estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

  1. As penas aplicáveis dentro as cominadas;

  2. A quantidade de pena aplicável dentro dos limites previstos;

  3. O regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

  4. A substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. – [Grifos Nossos] - (Vade Mecum, 2018, p.440).

Observa-se, todavia, que o legislador ultimamente vem pautando as edições de normas aos anseios sociais que surgem imbuídos por uma mídia sensacionalista, o que acaba por afastá-lo dos pilares fundamentais pautados sobre o direito penal mínimo e garantidor.

Vejamos o que sustenta Rui Stoco no Boletim IBCCrim sobre a matéria ora estudada:

Não nos parece possível esse tratamento distinto e exacerbado, pois o que impende considerar é a maior ou menor gravidade na conduta erigida à condição de crime e não nas circunstâncias em que este foi praticado ou os meios utilizados”. (IBCCrim, n. 61, p.9. dez. 1997).

Assim, ao incriminar o fato tido como reprovável, cabe ao legislador ao analisar suas consequências estabelecer uma proporção razoável entre a conduta ilícita e a quantidade punitiva a ser aplicada.

Outro aspecto que polemiza mais ainda esse tema, é o fato de que o bem jurídico atingido também é o mesmo, o dano causado também o é, então porque a pena mais grave para o homicídio culposo do Código de Trânsito Brasileiro? Será que a morte culposa no trânsito é mais reprovável do que a morte culposa ocorrida pelo disparo de uma arma de fogo ou pela morte causada culposamente por um médico em uma sala de cirurgia? É esse aspecto que merece ser ressaltado, objetivando minimizar as consequências de um delito que ocorreu sem a vontade e sem a aceitação do resultado pelo imputado, nada justificando a aplicação de uma reprimenda mais grave.

Seguindo esse raciocínio, o renomado jurista Dr. Rui Stoco se manifestou da seguinte maneira: "nada justifica que para a mesma figura penal a pena-base seja diversa. Tal ofende o princípio constitucional da isonomia, e o direito subjetivo do réu a um tratamento igualitário." (Boletim IBCCrim, n. 61, dez. 1997).

Destacamos ainda o entendimento do doutrinador Walter Antonio Dias Duarte, in verbis:

“no homicídio culposo, a lei efetua apenas uma única valoração, mesmo porque não se mostra possível outra valoração que pudesse especializar esse homicídio, por uma razão muito singela: o agente, nesse caso, não quer, tampouco prevê o resultado, não obstante previsível”.

Ainda neste sentido ele conclui:

“Ora, se não há a vontade dirigida para o resultado, que nem mesmo é previsto, como valorar o meio utilizado, desdobrando esse tipo de homicídio, criando-se um homicídio qualificado? Como dizer que este meio utilizado é mais ou menos danoso que um outro, se não há uma vontade dirigida ao evento?“.( DUARTE, Boletim IBCCRIM, n° 101. 2001).

Neste interim, é inegável que o art. 302 do Código Trânsito Brasileiro criou de maneira indireta uma modalidade de culpa qualificada, o que é flagrantemente errôneo, tendo em vista que o agente não desejava o acontecimento do evento danoso, e, sendo assim, como se explica a maior reprovabilidade empregada nessa ação?

Nesse sentido destacamos os ensinamentos do Ilustre Aníbal BRUNO, in verbis: "O critério para medir a responsabilidade penal do agente não é a sua intenção, nem a gravidade do seu pecado. Será apenas o dano que do seu crime resulte para a sociedade." (BRUNO, 1978, pg. 96).

Assim, defender esse raciocínio de aplicabilidade do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, é imiscuir-se a lógica do ordenamento jurídico pátrio, uma vez que não há sanidade na afirmação da existência de uma culpa qualificada, ferindo flagrantemente a teoria geral do delito, uma vez que está se valorando uma conduta culposa que jamais poderia sofrer valoração, afinal, nos crimes culposos o agente não quer e nem aceita o resultado, então porque haveria maior reprovabilidade? Seria um verdadeiro contra sensu afirmar tal possibilidade.

Nesse sentido vejamos o brilhantismo do Ilustre DUARTE, conforme abaixo transcrito. "Somente em função de um resultado querido, com vontade atuante nessa direção, é que pode observar o meio empregado, valorando-o.” (DUARTE, n° 101. São Paulo: IBCCRIM, 2001).

Desta feita, evidencia-se que o legislador com essa atitude não observou os pilares garantidores do direito penal mínimo, empregando maior sancionamento a condutas pautadas sobre a mesma égide e que ofendem ao mesmo bem jurídico.

Nesta senda, a irresignação da doutrina pátria só aumenta a cada dia, o que torna esse tema controvertido em alvo de constantes de críticas e debates, que ainda não foram fortes o suficiente para convencer os aplicadores do direito a afastar o referido dispositivo sob a égide do princípio da proporcionalidade.

Todavia, embora grande parte dessa celeuma gire em torno da aplicação do princípio da isonomia, é inegável que de igual modo estar-se-á ferindo o princípio da proporcionalidade, o que nos remete urgentemente para uma forçada Constitucionalização do Direito, a fim de que essas distorções jurídicas sejam corrigidas de acordo com os princípios basilares constitucionais. Assim, o referido dispositivo ante a sua incongruência normativa deveria ser considerado inaplicável em face do princípio da proporcionalidade.

Embora parte da doutrina entenda que o art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro padece de inconstitucionalidade, alguns doutrinadores defendem que o mesmo é plenamente constitucional, alegando que quando o homicídio é oriundo de um acidente de trânsito o grau de reprovabilidade aumenta, devendo-se observar, neste caso, o princípio da especialidade.

Baseando-se no atual sistema, era facilmente perceptível que a tese de inconstitucionalidade/inaplicabilidade do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro não seria acatada, uma vez que os operadores do direito procuram apenas aplicar a lei de maneira dogmatizada e infundada, afastando-se da hermenêutica necessária a solucionar os conflitos de interesses levados a conhecimento do poder judiciário.

Nessa esteira, embora o art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro não tenha sido considerado inconstitucional nas cortes superiores, deve a reprimenda penal cominada pelo mesmo ser considerada inaplicável em face do princípio da proporcionalidade, sendo esta uma medida de respeito aos direitos fundamentais e aos princípios insculpidos na Constituição Federal de 1988.

No tocante a constitucionalidade do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro não vislumbro qualquer incongruência, uma vez que o legislador poderia perfeitamente ter considerado o homicídio no trânsito como uma forma qualificada do homicídio culposo. O que se afronta com essa norma é o bom senso, a razoabilidade no momento de fixar os parâmetros das penas, sendo esta fixada de maneira desarrazoada, por ter sido considerada de forma genérica, como uma conduta mais grave. Isso é inadmissível!

Nesta senda, é forçoso aceitar que o art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro está imerso no âmbito da desproporcionalidade quando analisado em detrimento ao Código Penal, que prevê uma pena mais branda para esse ilícito, uma vez que o Código Penal prevê para o homicídio culposo um apenamento mensurado entre 01 (um) e 03 (três) anos, enquanto no Código de Trânsito Brasileiro prevê uma pena de 02 (dois) a 04 (quatro) anos para a mesma conduta.

Muller apud BONAVIDES descreve o princípio da proporcionalidade nos seguintes termos: "é a regra fundamental a que devem obedecer tanto os que exercem quanto os que padecem o poder." (BONAVIDES, Ed. Malheiros. 1996).

Desta feita, as penas devem sofrer uma dosagem adequada de modo a reprimir a ação delituosa, evitando que a mesma se repita, devendo usar o magistrado da lógica mais coerente que lhe é oferecida, dentro dos ditames legais, e sob o enfoque de uma hermenêutica jurídica. Assim, resta evidente que o art. 302 do CTB, atinge frontalmente nossa Carta Magna, pois trata de maneira desproporcional, delitos idênticos.

Nesse sentido destacamos os ensinamentos de Franco, que dispõe:

"Desse modo, não basta a igualdade perante a lei, mas ainda é de mister a igualdade através da lei".

[...]

"Leis penais que tipifiquem condutas iguais como ensejadoras do mesmo delito, mas que impõem penas quantitativamente e qualitativamente desiguais ofendem, a um só tempo, os princípio da proporcionalidade e da humanização da pena e, portanto, desatendem, ainda, ao princípio da igualdade". (FRANCO, 1997, p 208).

É válido salientar que a única discrepância entre o art. 121, §3º do Código Penal e o art. 302 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), é o meio pelo qual o resultado vem a acontecer, pois neste último, a ação se dá sob a direção de veículo automotor.

Assim, defender a aplicação do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, seria o mesmo que afirmar que a morte causada culposamente por um instrumento feito para matar, como por exemplo uma arma, seria menos grave do que a morte causada culposamente por um veículo desenvolvido com a finalidade de transportar pessoas, viabilizando sua locomoção, o que reputa-se plenamente ilógico.

Nas palavras de Ferrajoli apud BUENO DE CARVALHO (2000) refere-se que "muito pior do que conceder penas (causa de aumento) iguais a delitos de gravidade diferente é fixar mais elevadas ao delito menos grave". Assim, é completamente inócuo criar um tipo específico para um delito já existente, aumentando a pena daquela modalidade que deveria ser a menos reprovável, pois o instrumento utilizado foi desenvolvido para outros fins lícitos, qual seja, a viabilidade de locomoção.

Desta feita, devem os magistrados basear suas decisões na hermenêutica jurídica, abandonando o dogmatismo das leis, tendo em vista que sua função é a de interpretar a lei e não apenas aplicá-la de maneira dogmatizada e sistêmica, pois se assim fosse, não seria necessário juízes. Desta feita, a aplicação do princípio da proporcionalidade, repousa na construção do direito aplicando as normas de forma coerente, devendo-se harmonizar os interesses conflitantes.

4.2. Posicionamentos Jurisprudenciais

Não restam dúvidas que o tema ora proposto restou demasiadamente controvertido na doutrina pátria. Em face disso, suscitou-se essa questão nos tribunais superiores, a fim de obter uma reanálise em sede de 2º grau.

A fundamentação levada às cortes superiores pautava-se na igualdade entre o bem jurídico atingido e a disparidade entre as penas aplicadas, o que violaria o princípio da isonomia e da proporcionalidade. Assim, advogou-se que no momento da aplicação da pena deveria ser desconsiderada a abstratamente cominada pelo Código de Trânsito Brasileiro e aplicada a disposta pelo Código Penal.

Todavia, o Supremo Tribunal Federal, instado a se manifestar decidiu que a reprimenda imposta não fere o princípio da proporcionalidade e nem o da isonomia, justificando que o exacerbado número de acidentes no trânsito, bem como o elevado número de vítimas justifica o tratamento diferenciado, e por sua vez, o apenamento maior.

Nesse sentido vejamos as ementas do RE428864 proferido pelo Supremo Tribunal Federal e do HC63284/RS proferido pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, abaixo transcrito:

RE428864 – STF - DIREITO PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. HOMICÍDIO CULPOSO. DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 302, PARÁGRAFO ÚNICO, LEI 9.503/97. IMPROVIMENTO. 1. A questão central, objeto do recurso extraordinário interposto, cinge-se à constitucionalidade (ou não) do disposto no art. 302, parágrafo único, da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), eis que passou a ser dado tratamento mais rigoroso às hipóteses de homicídio culposo causado em acidente de veículo. 2. É inegável a existência de maior risco objetivo em decorrência da condução de veículos nas vias públicas - conforme dados estatísticos que demonstram os alarmantes números de acidentes fatais ou graves nas vias públicas e rodovias públicas - impondo-se aos motoristas maior cuidado na atividade. 3. O princípio da isonomia não impede o tratamento diversificado das situações quando houver elemento de discrímen razoável, o que efetivamente ocorre no tema em questão. A maior freqüência de acidentes de trânsito, com vítimas fatais, ensejou a aprovação do projeto de lei, inclusive com o tratamento mais rigoroso contido no art. 302, parágrafo único, da Lei nº 9.503/97. 4. A majoração das margens penais - comparativamente ao tratamento dado pelo art. 121, § 3º, do Código Penal - demonstra o enfoque maior no desvalor do resultado, notadamente em razão da realidade brasileira envolvendo os homicídios culposos provocados por indivíduos na direção de veículo automotor. 5. Recurso extraordinário conhecido e improvido. (Grifos nossos).

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=561307

HC63284/RS – STJ - CRIMINAL. HC. HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PLEITO DE ADEQUAÇÃO DA CONDUTA DO RÉU AO HOMICÍDIO CULPOSO DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. DELITO ESPECIAL COM SANÇÃO MAIS GRAVOSA. OPÇÃO LEGISLATIVA. PENA-BASE MÍNIMA MAIOR QUE UM ANO. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. INAPLICABILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. ORDEM DENEGADA. Hipótese na qual o paciente foi condenado pela prática de homicídio culposo na direção de veículo automotor, não tendo sido oferecida proposta de suspensão condicional do processo. A diferença do homicídio culposo do Código de Trânsito Brasileiro para o homicídio culposo do Código Penal é a existência de elemento normativo consistente no fato de a conduta ser praticada na direção de veículo automotor, o que justifica o aumento da pena-base. Descabido o pleito de adequação da conduta praticada pelo réu ao tipo penal descrito no Estatuto Repressivo, pois, havendo dispositivo específico no Código de Trânsito Brasileiro, o qual se amolda perfeitamente aos fatos, não se pode afastar a aplicação do princípio da especialidade. Não há que se falar em ofensa aos princípios da razoabilidade ou da proporcionalidade, pois as sanções foram previstas pelo Legislador, o qual fixou pena-base mais elevada ao crime especial, com a finalidade de reprimir de forma mais gravosa o delito que julgou ser mais prejudicial à sociedade. Estando correta a imputação ao réu do delito de homicídio culposo na direção de veículo automotor, para o qual é prevista pena-base mínima superior a 01 ano, resta afastada a possibilidade de oferecimento pelo Ministério Público da proposta de suspensão condicional do processo. Ordem denegada. Acórdão Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça. "A Turma, por unanimidade, denegou a ordem." Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e Felix Fischer votaram com o Sr. Ministro Relator. (Grifos nossos).

https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=2813884&sReg=200601603657&sData=20070205&sTipo=5&formato=PDF

Nesse sentido, vejamos ainda a ementa do Agravo proferida pelo Ministro Luiz Fux, in verbis:

Processo: AI 847110 RS - Relator (a): Min. LUIZ FUX – Julgamento: 25/10/2011 - Órgão Julgador: Primeira Turma - Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DO ART. 302 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. HOMICÍDIO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 302 DO CTB. OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. CONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. DECISÃO QUE SE MANTÉM POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. 1. O Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro. 2 . Precedentes: RE 428.864 - AgR, Min. ELLEN GRACIE, 2ª Turma, DJ 14.11.2008; AI 831.778 -AgR, Min. CÁRMEN LÚCIA, 1ª Turma, DJe 4.3.2011; AI 797.370 -AgR, Min. Ayres Britto, 2ª Turma, DJ 02.3.2011. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.

http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20759567/agreg-no-agravo-de-instrumento-ai-847110-rs-stf

Ressalte-se que o Ilustre Bitencourt comunga do mesmo entendimento esposado pelas Cortes Superiores, o que o levou a escrever um artigo sobre o tema no IBC-Crim. Destacamos o seguinte trecho:

“No homicídio culposo de trânsito, o desvalor da conduta é muito maior do que no homicídio culposo do Código Penal em razão do grau de desrespeito às regras de trânsito no Brasil. Logo, justifica-se a pena em maior quantidade no Código de Trânsito. É justa a fixação de uma pena maior”. (BITENCOURT, n.64, p. 14-15, mar. 1998).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do trabalho evidenciou-se a flagrante necessidade que existia quanto a edição da Lei nº 9.503/97, que objetivava regular de maneira específica as condutas delituosas praticadas na direção de veículo automotor. Todavia, é inegável que a mesma trouxe inúmeros problemas e conflitos relacionados à sua aplicação e interpretação. O estudo detalhado do referencial teórico obtido através da pesquisa do tipo exploratória foi fundamental para entender que para que haja efetividade na aplicação do Código de Trânsito Brasileiro torna-se indispensável a interpretação do mesmo com base na hermenêutica jurídica e nos princípios constitucionais, que foram criados no intuito de harmonizar a aplicação da nova lei com os demais dispositivos já existentes, superando os conflitos de normas passíveis de existir entre dois diplomas que versam sobre o mesmo bem jurídico.

Um ponto importante a ser ressaltado, conforme se frisou ao logo da pesquisa, é que embora a nova lei traga incongruências normativas, não se pode permitir que a mesma continue a vigorar indiscriminadamente em nosso Ordenamento, a ponto de causar danos excessivamente graves ao tratar de maneira diferenciada situações idênticas, devendo haver união entre os doutrinadores pátrios para que essa celeuma seja reanalisada pelas cortes superiores, a fim de restabelecer a normalidade e unicidade na aplicação da lei no caso do homicídio culposo, em face do princípio da proporcionalidade. Assim, a aplicação proporcional da reprimenda penal é medida que se impera em nosso Ordenamento Jurídico Pátrio, que se pauta na observância dos direitos fundamentais esposados na Carta Magna de 1988.

Por fim, insta observar que a jurisprudência pátria vem se posicionando no sentido de plena aplicabilidade da norma de trânsito ora discutida, esboçando seu entendimento nos termos das ementas colacionadas acima que dispõe em síntese sobre a constitucionalidade do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, assegurando sua aplicabilidade a todos os ilícitos que se derem na direção de veículo automotor, tanto em vias públicas quanto nas vias particulares. Embora a estima que dispendo sobre as decisões exaradas pelas cortes superiores, acredito veemente que as mesmas violam os princípios basilares estabelecidos pela ordem constitucional, uma vez que trata de ilícitos iguais com pesos e medidas diferentes.

Assim, propõe-se que haja uma análise mais apurada dos fundamentos doutrinários dispendidos para justificar a aplicação do princípio da proporcionalidade, a fim de que as instâncias superiores reconheçam as incongruências verificadas no tocante ao posicionamento de desproporcionalidade da reprimenda do artigo 302 da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro). Assim, é evidente que a discursão aqui suscitada está longe de ser pacificada, merecendo ser tratada com maior atenção pelos nossos magistrados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sobre a autora
Gabriela Cristina dos Santos

Sou advogada desde 2014, com atuação nas áreas de direito penal, cível, consumidor e previdenciário, dentre outras. Minha missão é ajudar pessoas a fazer valer seus direitos através da lei.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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