VENDA A NON DOMINO – ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O QUE FAZER QUANDO ALGUÉM VENDE DUAS VEZES O MESMO BEM – RESPONSABILIDADE EVENTUAL DAS SERVENTIAS REGISTRAIS
Resumo: Num país com inúmeros conflitos fundiários, em que as matrículas muito antigas foram sendo passadas e migraram de uma serventia registral para outra, as vezes com metragem diferentes outras vezes por simples grilagem, existem questões que devem ser analisadas.
JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA, ADVOGADO MAGISTRADO APOSENTADO E PROFESSOR DA FAJ DO GRUPO UNIEDUK DE UNITÁ FACULDADE - COORDENADOR NACIONAL DOS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL, DIREITO IMOBILIÁRIO E DIREITO CONTRATUAL DA ESCOLA SUPERIOR DE DIREITO – ESD PROORDEM CAMPINAS E DA PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MÉDICO DA VIDA MARKETING FORMAÇÃO EM SAÚDE. EMBAIXADOR DO DIREITO À SAÚDE DA AGETS – LIDE.
O país tem um enorme problema agrário, muitas matrículas foram abertas, há mais de século, com base em cartas forais ou declarações de Cúrias Diocesanas (paróquias fazendo o papel de cartórios), e há, ainda, afora o problema de dados precários e inexatos, que leva a sobreposições, a questão dos grileiros que, de vários modos, invadem e ocupam imóveis alterando matrículas e questões de corrupção pura e simples.
Some-se a isso, questões mais graves ainda, quando o Estado alega, a partir desses dados inexatos, que grandes faixas de terras seriam devolutas, incorporando-as. Há casos emblemáticos, como os de Ibiúna – Piedade (Parque Jurupará) – famílias com registro de suas terras e posse efetiva no período de 1.800 e seus idos, mas que estão sendo hoje, tratadas como invasoras, porque, supostamente teriam sido citadas nos idos de 1.940 para se defenderem em processos de reconhecimento de terras devolutas ou ações discriminatórias.
Tivesse tudo ocorrido dentro de parâmetros de normalidade – com citação efetiva e descaso das partes, naquela época, não haveria do que se reclamar – mas, ao contrário, em uma situação que a Fazenda Paulista nem tenta esclarecer – nesses idos de 1.940, sem estradas, mapas, ou GPS, um Oficial de Justiça, sem colher qualquer assinatura, majestática e inexplicavelmente, alega ter citado cerca de 600 famílias (sem exclusão de nenhuma – sem que houvesse sequer e por exemplo, analfabetos ou desconhecidos) num prazo de quinze dias (ou se cuidava de um prodígio que apenas realizou esse milagre – não há notícias de outros eventos como este ou se fez algo de muito errado com uma população pobre e sem conhecimento de seus direitos (para piorar – o Estado esperou 75 anos para começar a desocupar as propriedades, sem qualquer rede de amparo social).
Esse singelo exemplo, se replica aos milhares e milhares no Estado e no país. Ademais, a par do problema fundiário, muitas pessoas compram imóveis com matrículas formais, em ordem, e se veem enredados em problemas como este.
Isso sem comprar imóveis com propensão a serem penhorados, bloqueados e com restrições, o que se resolve pela interpretação do Tema Repetitivo 243 STJ que, em linhas gerais reconhece o princípio universal e milenar de direito no sentido de que a boa-fé se presume e a má-fé se comprova – com reforço aos termos da Súmula 375 STJ.
Assim, um sistema registral que deveria ser seguro, ainda abre margem à muitas distorções e equívocos. O objeto da presente digressão se dá no sentido da viabilização do exercício concreto sobre direitos de propriedade adquiridos de modo regular e em boa-fé que compram inadvertidamente coisa já vendida ou coisa pertencente a outra pessoa e, pior, em situações de erros no registro imobiliário.
Por vezes, por conta de descrições falhas e deficientes por aberturas de matrículas com metragens incorretas, por vezes a mesma área acaba ser vendida, duas vezes, por pessoas diferentes. Nesses casos, se pondera no sentido de que a jurisprudência, de modo reiterado aponta no sentido da situação de responsabilidade do notário ou registrador que tiver dado causa a isso. Sobre a questão, inclusive, em arestos recentes meramente exemplificativos da situação:
TJ-MS - Apelação Cível: AC 8137820920158120001 Campo Grande Acórdão • Data de publicação: 11/01/2023 APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE CANCELAMENTO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - DUPLICIDADE DE MATRÍCULAS - PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DO TABELIÃO - MANTIDA - RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES - MÉRITO - ABERTURA DE DUAS MATRÍCULAS PARA UM ÚNICO IMÓVEL - ANULAÇÃO DA PRIMEIRA TRANSCRIÇÃO QUE DEVERIA TER SIDO CANCELADA QUANDO DA ALTERAÇÃO DA PROPRIEDADE E ABERTURA DE NOVA TRANSCRIÇÃO - PRINCÍPIO DA UNITARIEDADE MATRICIAL E DA PRIORIDADE - LEI Nº 6.015 /73 - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. De acordo com o STF, "o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa" ( RE n. 842.846/SC Tema 777). Ilegitimidade passiva mantida. Nos termos da Lei de Registros Publicos , cada imóvel só poderá ter uma única matrícula para que não ocorra a ofensa ao princípio da unitariedade matricial. Em observância ao artigo 176 , § 1º , I , da Lei 6.015 /73 e artigo 1.247 do Código Civil , o cancelamento da primeira transcrição do imóvel, a qual deveria ter sido encerrada quando em 11/06/1964, os proprietários alienaram o bem, abrindo-se a nova transcrição, na data de 24/05/1965, é medida que se impõe, sob pena de uma mesma coisa prosseguir registrada mediante duas indicações numéricas diversas, em manifesto prejuízo à especificação da unidade predial, o que consubstancia-se violação ao princípio da unitariedade matricial. Recurso conhecido e improvido.
TJ-SC - Apelação Cível: AC 30413520108240016 Capinzal 0003041-35.2010.8.24.0016 Acórdão • Data de publicação: 11/04/2017 APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANO CAUSADO POR DUPLICIDADE DE REGISTRO IMOBILIÁRIO. FALTA DE CAUTELA DO REGISTRADOR. RECURSO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. MATÉRIA JÁ DECIDIDA EM SEDE DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRECLUSÃO. AVENTADA INÉPCIA DA INICIAL. MATÉRIA OBJETO DE DECISÃO INTERLOCUTÓRIA IRRECORRIDA. PRECLUSÃO TAMBÉM. NÃO- CONHECIMENTO DO RECURSO EM RELAÇÃO A AMBOS OS PONTOS. MÉRITO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO, COM RESSALVA PARA O DIREITO DE REGRESSO. QUANTUM INDENIZATÓRIO CORRESPONDENTE AO EFETIVO PREJUÍZO. DIMENSIONAMENTO ADEQUADO. CONSECTÁRIOS DE ESTILO (JUROS DE MORA, CORREÇÃO MONETÁRIA E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS) FIXADOS ESCORREITAMENTE. APELO DO RÉU PARCIALMENTE CONHECIDO E DESPROVIDO E REMESSA DESPROVIDA. I. Preclusa está a suscitada ilegitimidade passiva do Estado, porque já ventilada, decidida e rejeitada em sede de agravo de instrumento por este órgão ancilar, o mesmo sucedendo com a preliminar de inépcia da inicial, pois desacolhida por decisão interlocutória do Juízo a quo, não desafiada, a tempo e modo, pelo recurso cabível. Logo, para ambas, tollitur quaestio. II. Ressalvado o direito de regresso, deve o Estado responder "pelos atos de notários e registradores que, no exercício do serviço público delegado, tenham causado dano material ou moral a terceiro. Sendo objetiva a responsabilidade do ente público, por força do art. 37, § 6º da Constituição Federal, a demonstração do dano e a do nexo causal torna certa a obrigação de indenizar os prejuízos sofridos por compradores de imóvel em decorrência da duplicidade de registro imobiliário ocorrida por erro do delegatário do serviço público registral".
Por se cuidar de atividade delegada, com regras próprias, que elidem que um cartório seja tido como empresa – a responsabilidade seria pessoal do registrador não havendo como se falar em sucessão do novo titular se for o caso. Nesses termos, a jurisprudência se revela como igualmente cristalina com prelados inequívocos do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema:
STJ - RECURSO ESPECIAL: REsp 1340805 PE 2012/0175980-0 Acórdão • Data de publicação: 10/06/2019 RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS. EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO DÚPLICE. COMPRA DE IMÓVEL QUE CAUSOU PREJUÍZOS AO AUTOR. ATOS PRATICADOS PELO ANTIGO TITULAR DO CARTÓRIO. IMPOSSIBLIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DO NOVO TITULAR PELOS ATOS LESIVOS PRATICADOS POR SEU ANTECESSOR. ATIVIDADE DELEGADA. AUSÊNCIA DE SUCESSÃO EMPRESARIAL. 1. Polêmica em torno da responsabilidade civil do atual titular do Cartório do Registro de Imóveis de Olinda por irregularidades praticadas pelo seu antecessor na delegação. 2. As serventias extrajudiciais, "conquanto não detentoras de personalidade jurídica, ostentam a qualidade de parte no sentido processual, ad instar do que ocorre com o espólio, a massa falida etc, de modo que tem capacidade para estar em juízo". 3. Não responde o titular do Cartório de Registro de Imóveis por atos lesivos praticados por seu antecessor, pois sua responsabilidade pessoal apenas se inicia a partir da delegação, não havendo sucessão empresarial. 4. Precedentes específicos do STJ. 5. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
Isso se justifica, inclusive, a partir da ideia de acordo com a qual se tem que o sistema registral somente encontraria justificativa de existência, se acaso se prestar a conferir segurança jurídica em geral – em paralelo frequente – a matrícula pode ser considerada, em analogia com a pessoa natural, a certidão de nascimento de um dado bem imóvel.
Assim como duas pessoas não podem ter o mesmo registro de nascimento, de igual sorte se acolhe o princípio da unidade matricial. Ou seja, cada imóvel deve ter sua matrícula. Se a gleba rural se desmembra em lotes, cada lote é imóvel que deve ter sua matrícula individualizada e o fato do notário ou registrador ter falhado nessa conferencia, revela que, em causando danos, frustrando a finalidade do ato praticado, pelo qual cobrou (princípio inclusive de acordo com o qual ubi commoda ibi incommoda – em tradução livre e literal parêmia latina que estabelece que quem aufere vantagens do negócio jurídico arque com as suas desvantagens – descortina-se como hialina a responsabilidade civil do registrador pelos prejuízos que vierem a ser causados).
Vale apontar no sentido de que a jurisprudência é reiterada no sentido de que vendas em duplicidade do mesmo bem autorizam o desencadeamento do dever de indenizar não apenas o dano material, mas igualmente danos morais (considerados na espécie in ré ipsa ou presumidos):
TJ-SP - Apelação Cível: AC 10027878820208260032 SP 1002787-88.2020.8.26.0032 Acórdão • Data de publicação: 02/09/2022 AÇÃO DECLARATÓRIA DE VALIDADE DE CONTRATO PARTICULAR DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA c.c ANULATÓRIA DE ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA E CANCELAMENTO DO REGISTRO IMOBILIÁRIO c.c INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. I. Venda de imóvel em duplicidade. Autores que pretendem o reconhecimento da prevalência do seu título sobre aquele formado entre os corréus. Autores que não registraram o título translativo na matrícula. Presumida a boa-fé do corréu adquirente ao comprar o imóvel sem que houvesse o registro do compromisso firmado pelos autores. Não evidenciada a má-fé do adquirente. Imperiosa observância do artigo 1.245, caput, e § 1º do Código Civil. Promessa de venda e compra entre a recorrida DIMA e os autores que produz efeitos obrigacionais entre as partes, não podendo impactar terceiros. Artigo 221 do CC. Terceiro que realiza as diligências legais necessárias visando à garantia do seu direito de propriedade, por meio do registro da aquisição imobiliária, deve permanecer com o bem. Simulação do segundo negócio, outrossim, não verificada. Aquisição do bem com declaração de valor inferior na escritura, para fins de reduzir os recolhimentos tributários, que não é causa de invalidade do negócio firmado. Inquestionável que a DIMA prometeu à venda o imóvel aos autores e, após, de má-fé, vendeu o mesmo imóvel a terceiro. Comprovado o inadimplemento contratual de sua parte. II. Danos materiais. Necessidade de recomposição dos prejuízos causados. Inviabilidade, contudo, de adoção do valor do contrato, com valor fixado há 27 anos e que, portanto, não corresponde ao valor de mercado do bem. Adoção do valor de venda do bem ao terceiro que melhor se ajusta à repercussão econômica da perda dos direitos sobre o lote. Impugnação dos autores, neste sentido, genérica. Manutenção. III. Indenização por danos morais. Preservação. Quebra da tranquilidade dos adquirentes. Hipótese, ainda, que supera o mero inadimplemento contratual. Reparação moral preservada. Valor da indenização mantido em R$ 10.000,00. Observância ao disposto no art. 944 do Código Civil. SENTENÇA MANTIDA. NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS.
E há, obviamente, que se aferir se houve dolo ou não – em havendo dolo, para além da situação de anulação (se for relação de consumo o vício será de ordem pública portanto de nulidade absoluta – artigos 1º e 51 CDC) poderá ser entendido que a fraude gerará responsabilização penal ou, até mesmo administrativa (por exemplo, via descumprimento de regras de ética profissional de quem trabalha na área imobiliária – corretores perante o CRECI, tabeliães e registradores perante Corregedorias dentre outros).
Sobre questões com atuação dolosa nesses casos (uma coisa é se partir de uma situação de erro justificável por dimensões, outra é a situação intencional de atuar com fraude – essa, pelo óbvio, mais grave). Nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.748.504 - PE (2017/0002638-1) RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINORECORRENTE : IPOJUCA CARTORIO UNICO ADVOGADO : FELIPE DE OLIVEIRA ALEXANDRE E OUTRO(S) - PE029415 RECORRIDO : JOSE WEYDSON CARVALHO DE BARROS LEAL RECORRIDO : MARIA ANTONIETA OLIVEIRA DE BARROS LEAL ADVOGADO : SYLVIO MARCONI TORRES E OUTRO(S) - PE009874 EMENTA RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE NULIDADE DE ATO REGISTRAL. VENDA "A NON DOMINO". CELEBRAÇÃO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL COM BASE EM PROCURAÇÃO COM QUALIFICAÇÃO ERRÔNEA DOS OUTORGANTES. NEGLIGÊNCIA DO CARTÓRIO. FRAUDE. 1. Polêmica em torno da existência, validade e eficácia de escritura pública de compra e venda do imóvel dos demandantes, lavrada em Tabelionato por terceiros que atuaram como vendedores com base em procuração pública também fraudada, constando, inclusive, dados errôneos na qualificação dos outorgantes, efetivos proprietários, como reconhecido pelas instâncias de origem. 2. Deficiente a fundamentação do recurso especial em que a alegação de ofensa ao art. 535 do CPC/73 se faz de forma genérica, não havendo a demonstração clara dos pontos do acórdão que se apresentam omissos, contraditórios ou obscuros, senão a pretensão de que esta Corte Superior analise os embargos de declaração para dali extrair aquilo que, por ventura, a parte recorrente entenda não tenha sido bem analisada quando do julgamento dos embargos. 3. Não há falar na incidência do prazo quadrienal previsto no art. 178, §9º, inciso V, "b", do CC/16, voltado à anulação de contratos com base em vícios do consentimento, quando sequer consentimento houve por parte dos autores, que foram surpreendidos pela venda "a non domino" do seu imóvel. 4. Escritura de compra e venda realizada com base em procuração na qual constam nomes incorretos do casal proprietário, troca de numeração de documentos pessoais, utilização de número de identidade de outro Estado. Questões fático-probatórias. Insindicabilidade. 5. Negligência do Tabelião que, ao confeccionar a escritura pública de compra e venda, não conferiu os dados dos supostos alienantes. 6. Nulidade do registro mantida. 7. Insindicável o valor arbitrado pela instância de origem a título de honorários com base no §4º do art. 20 do CPC/73 que não se revela exacerbado, atraindo-se o enunciado 7/STJ.8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
Nessa medida, seria de se analisar para verificar quem estaria exercendo, de fato, a posse sobre o imóvel, de modo efetivo sendo caso de se fazer contagem de tempo – ainda que por acessio temporis (sucessão de possuidores anteriores) o tempo necessário para obtenção de posse ad interdicta vel ad usucapionem aferindo-se, ademais se a posse não seria precária, violenta ou clandestina (artigo 1.200 CC) ou se a posse ainda seria mansa e pacífica (além da análise do preenchimento, ou não, das condições para usucapir nas diversas modalidades).
Para fins de usucapião, inclusive, há que se ver e conferir a regularidade dos recolhimentos tributários como tem exigido alguns Tribunais do país e, de modo mais direto, o TJSP.
Ou seja, nessa questão se tem que quem paga os tributos e obrigações propter rem se comporta como proprietário e não como mero detentor de posse precária (a ideia do artigo 1.196 CC).
Nada impede que se intente uma demanda de cunho reivindicatório (a usucapião seria reipersecutória) para ver qual seria a matrícula verdadeira e com preferência decorrente da formação do domínio – mas isso demanda que quem faça o requerimento tenha uma certeza pericial de que a área seria a da matrícula evidenciada e não a adquirida de modo viciado (afinal ninguém pode transferir mais direitos do que possui - nemini licet illud ius competit transferendi plus se habet)1.
Quem quer que tenha errado ou dado causa a erro (isso diferencia o erro do dolo para fins de judicialização) passou posse espúria sem título e sem domínio – numa reivindicatória isso poderia ser descortinado) – mas se a outra parte puder invocar usucapião, a discussão seria meramente teórica – por exemplo, isso se consegue por situações como georreferenciamento que aponta a partir de dados técnicos mais apurados, para garantir que quem invocou o direito adquiriu a área correta.
A depender de quem detenha a posse efetiva da coisa em disputa seria o caso de avaliar, inclusive, se haveria necessidade de notificação prévia para interromper eventual passividade de posse da parte contrária, de modo preventivo. Cartórios, ademais, que exercem função pública delegada, se recusem a corrigir os erros localizados (o que deveria ocorrer, até mesmo, ex offício) nos termos da legislação de regência e dentro das balizas de interpretação que os Tribunais Superiores apontam em tais questões (há Súmulas STF como a 473 que apontam o dever de correção ex officio, inclusive).
Assim o próprio Cartório, inclusive, ao tomar ciência da presente demanda, já pode reparar, de ofício, o erro verificado (pode reconhecer e retificar os próprios erros assim que se tomar ciência destas medidas judiciais, por exemplo).
Isso porque, como é sabido, a Lei n.º 9.784/99 estabelece as normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal Direta e Indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração, conforme disposto no caput de seu art. 1º (e isso pode ser adotado, mormente quando em cotejo com as Súmulas abaixo indicadas).
O §1º do referido artigo determina que os preceitos da norma em apreço serão aplicados também aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, quando no desempenho de função administrativa. Os dispositivos da norma em epígrafe especificam claramente os procedimentos a serem adotados no processo administrativo, cabendo observar o quanto consta em artigo 53:
"Art. 53 - A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos”.
No que diz respeito ao disposto no artigo 53 da referida lei, entende-se que o mesmo veio complementar o previsto no art. 114, da Lei n.º 8.112/90, que assim dispõe:
"Art. 114 - A Administração deverá rever seus atos, a qualquer tempo, quando eivados de ilegalidade."
Ademais, as Súmulas nos 346 e 473, emanadas do Supremo Tribunal Federal, representativas da uniformidade dos seus julgados, já previam:
"Súmulas – STF 346. A Administração Pública pode declarar a nulidade dos próprios atos. 473. A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos a apreciação judicial."