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Uma breve análise sobre o projeto de reforma do Código Penal brasileiro

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Agenda 06/08/2024 às 10:08

O projeto propõe uma mudança na abordagem teórica da lei penal no Brasil, aproximando-a da teoria da imputação objetiva criada por Claus Roxin, de acordo com a qual a sanção penal deve ser adequada aos aspectos sociais relevantes, como a real necessidade de repressão da conduta.

RESUMO: Este artigo aborda a proposta de Reforma do Código Penal pelo Projeto de Lei nº 236 de 2012, que surge em um contexto de completa inovação nas relações sociais, em razão dos avanços tecnológicos e da globalização, da crise do sistema penitenciário brasileiro e da constitucionalização do ordenamento jurídico pátrio. Além disso, este texto possui o objetivo de realizar uma análise pontual sobre alguns aspectos deste Projeto de Lei e compará-lo ao Código atual, além de discutir como a aprovação desta proposta de reforma impactaria a sociedade e o sistema penitenciário brasileiro, a partir da revisão bibliográfica sobre o tema. É possível constatar, com base na comparação entre os textos e na análise de doutrinas, jurisprudências e dados estatísticos relacionados ao sistema penal brasileiro, a existência de diferenças significativas entre eles, principalmente, no que tange a abordagem teórica e o trato dos direitos humanos e da política social.

Palavras-chave: Reforma do Código Penal; Projeto de Lei nº 236 de 2012; Descriminalização; Constitucionalização do Direito Penal.


INTRODUÇÃO

O Código Penal, elaborado quando o país ainda era chamado de República dos Estados Unidos do Brasil, possui oitenta e três anos e teve como uma de suas justificativas a luta contra a criminalidade.

Atualmente é possível contar aproximadamente cento e quarenta modificações no teor do referido código, que esteve vigente no período ditatorial, no período de redemocratização nacional, na virada do século, no recente e significativo avanço das comunicações e tecnologias, ou seja, presente apesar de todas as mudanças na sociedade.

O objetivo do Código Penal, como exposto acima, não é a ressocialização, mas sim a vingança, a mera aplicação de penas, sem considerar o viés social inerente a cada situação que põe um indivíduo como réu. Além disso, as mudanças históricas ocorridas em oitenta e três anos de vigência do referido códex o tornaram ultrapassado.

Destarte, merece atenção o Projeto de Lei nº 236 de 2012, que visa a reforma do Código Penal brasileiro. Apesar de seguir com alguns aspectos que estão voltados à manutenção do viés vingativo do Direito Penal, esta proposta apresenta dois tipos de modificações que se referem a questões polêmicas e que merecem destaque.

A primeira se refere às descriminalizações.

O sistema penal brasileiro foi considerado um Estado de Coisas Inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em razão das condições indignas a que são submetidos os custodiados nos presídios; sendo imperioso destacar que o Brasil possui uma população carcerária de 661.915 (seiscentos e sessenta e um mil novecentas e quinze) pessoas em celas físicas (INFOPEN, 2022). Estes dados demonstram o colapso deste sistema e justificam a descriminalização de algumas condutas que são praticadas e normalizadas pelo corpo social, o que significaria desafogar um pouco as prisões brasileiras. Além disso, o Direito Penal tem como função tutelar os direitos dos cidadãos contra condutas lesivas praticadas por outros cidadãos quando os demais ramos do Direito não tenham efetividade na repressão destas, ou seja, apenas em ultima ratio; o que, de acordo com os dados acima, não ocorre no Brasil.

A segunda se refere ao inverso, às criminalizações, mas devidamente justificadas pelo amparo a determinados grupos sociais, como a população negra e a LGBTQIAPN+, e a tentativa de diminuir os números gerados pela intolerância. A recente preocupação global com a questão dos direitos humanos trouxe à tona as violências sofridas por estes grupos, em razão da descriminação. Apesar disso, o ordenamento jurídico brasileiro não apresenta mecanismos legais de coibir estas violências ou as medidas vigentes não são efetivas. Por este motivo, faz-se necessária a criminalização de condutas visando a proteção de minorias.

Apesar das mudanças trazidas pelo Projeto de Lei nº 236 de 2012 significarem avanços para o sistema punitivo brasileiro e, consequentemente, para a sociedade, muitas questões refletidas por este projeto se tornam polêmicas quando perpassadas pela religiosidade cristã e pelo clamor da sociedade pela maximização do Direito Penal.

O objetivo geral desta pesquisa é discutir os avanços e desafios do Projeto de Lei nº 236 de 2012 a partir de uma comparação com o Código Penal vigente. A partir deste podem ser citados os objetivos específicos do estudo, quais sejam: a discussão acerca do impacto positivo no sistema penal brasileiro das descriminalizações e criminalizações propostas pelo referido Projeto, principalmente as mais polêmicas, e a análise do impacto que o clamor social pela maximização do Direito Penal, em função da deturpação da função social do Direito e da religião, possui na aprovação do texto pela sociedade.

Ex positis, faz-se necessária a discussão do Projeto de Reforma do Código Penal, a partir de uma análise geral do contexto do sistema penal brasileiro e da sociedade na atualidade, das disposições doutrinárias e jurisprudenciais, a fim de demonstrar alguns avanços e os desafios desta proposição. Esta tarefa é almejada e conquistada por esta pesquisa, que se caracteriza pela abordagem qualitativa, pelo tipo descritivo e tem como instrumento a revisão bibliográfica sobre o Novo Código Penal, o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro, o direito antidiscriminatório e a função social do Direito.

1 COMPARAÇÃO ENTRE O CÓDIGO PENAL DE 1940 E A PROPOSTA LEGISLATIVA Nº 236 DE 2012

1.1 Breve exposição sobre o Projeto de Lei do Senado nº 236 de 2012

O Senador Pedro Tanques, mediante apresentação do Requerimento nº 756 de 2011, solicitou a criação de uma Comissão de Juristas para elaboração de proposta de Reforma do Código Penal em 180 (cento e oitenta) dias. O requerimento foi justificado pela dinamicidade e globalização do contexto vivenciado mundialmente nos últimos anos, os quais não teriam sido acompanhados pelo Direito Penal brasileiro. Além disso, o prejuízo à sistematização e organização deste ramo do direito em razão das inúmeras leis esparsas existentes torna a Reforma do Código Penal medida urgente. O referido membro do Poder Legislativo também justifica o seu requerimento com base na postura liberal individualista que o Código Penal ainda possui, andando em descompasso com a Constituição brasileira.

A comissão foi presidida por Gilson Dipp e composta por dezessete pessoas. Atualmente o Projeto encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça aguardando designação do relator.

A ex-senadora Marta Suplicy, PT/SP, publicou um artigo na Folha de São Paulo, o qual foi anexado ao trâmite do PL nº 236/2012 em 28/08/2012, que resume a tratativa acerca do Novo Código Penal nos seguintes termos:

Os juristas apresentaram um excelente trabalho ao reorganizar, sistematizar e harmonizar o Código Penal, da época da ditadura Vargas. Ousaram tratar dos temas

contemporâneos e polêmicos, mas foram tímidos na busca de alternativas às penas, além do encarceramento. [...]

A forte percepção de insegurança leva a sociedade a clamar por penas mais rigorosas como solução para a criminalidade. Mas a impunidade não tem relação com o tamanho das penas, e sim com a capacidade de investigação policial.

A resposta à violência está em políticas públicas que fortaleçam a ação da polícia, somadas a outras que deem aos cidadãos, sobretudo aos jovens, perspectiva de vida e valores culturais que promovam a paz social. O desafio é não sucumbirmos às pressões, tanto da exasperação social para pôr fim à violência (na linha do aumento das penas para abarrotar prisões já atulhadas) quando do temor a reações estridentes de setores conservadores ao avançarmos em pontos polêmicos –como aborto, homofobia e drogas, bem colocados no anteprojeto. (2012, p. 1)

Este Projeto de Lei elenca diversos temas muito polêmicos, tais como a descriminalização do aborto e do uso de drogas, o que torna o debate acerca desta proposição com o devido amparo doutrinário, jurisprudencial e estatístico muito importante, visto que a religião e a ausência de políticas públicas tendem a direcionar a opinião da massa popular para a maximização do Direito Penal.

O Projeto de Reforma do Código Penal avança em temas delicados, atualiza o rol de tipos penais às novas demandas, mas não se desvincula do viés punitivo que foi implicado pela sociedade ao Direito Penal e que confunde jus puniendi com aprisionamento, assim como não agrada o seio social que clama pela maximização da penalização, em razão da ausência de atuação do Poder Público e de questões religiosas.

O Projeto de Lei nº 236 de 2012 abarca diferenças substancias em relação ao Código Penal vigente, não apenas em relação aos tipos penais e ao contexto histórico que envolve a proposição, mas também na abordagem teórica que o fundamenta. A referida abordagem implica no trato sistemático da política social em toda a proposta, assim como representa uma inclinação do Direito Penal a um fenômeno que vem perpassando todos os ramos do Direito: a Constitucionalização.

Apresentado ao Senado pelo Presidente da referida Casa à época, José Sarney, o projeto possui inúmeras novidades e se inclina para a constitucionalização do Direito Penal. Com foco nos Direitos Humanos, respeito às minorias, como os indígenas (apesar de tratá-los de maneira incorreta em seu texto, como “índios”2) e abarcando temas polêmicos, o referido projeto visa a unificação das leis penais e a adequação do Direito Penal brasileiro às contingências sociais, como demonstrado nos capítulos a seguir.

1.2 Abordagem teórica

A teoria garantista do Direito Penal limita o poder punitivo do Estado na medida em que fornece aos cidadãos garantias de um processo penal justo e livre de arbitrariedades.

A inexistência de crime sem lei que previamente o defina, a inexistência de crime sem culpabilidade, o contraditório e a ampla defesa, o limite da aplicação da pena à pessoa do autor são exemplos de garantias que fundamentam a referida teoria e servem de base para um Estado Democrático de Direito como o Brasil. Para Bitencourt estes princípios caracterizam o Direito Penal, in verbis:

O Direito Penal regula as relações dos indivíduos em sociedade e as relações destes com a mesma sociedade. Como meio de controle social altamente formalizado, exercido sob o monopólio do Estado, a persecutio criminis somente pode ser legitimamente desempenhada de acordo com normas preestabelecidas, legisladas de acordo com as regras de um sistema democrático. (2016, p. 37)

Entretanto, os princípios deste arcabouço teórico para um sistema penal justo não estão isentos de falhas em sua aplicação e beira a utopia quando confrontados com os dados estatísticos.

Nas palavras de Ferrajoli,

[...] os diversos princípios garantistas se configuram, antes de tudo, como um esquema epistemológico de identificação do desvio penal, orientado a assegurar, a respeito de outros modelos de direito penal historicamente concebidos e realizados, o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade. Esse esquema, como se sabe, apresenta numerosas aporias lógicas e teóricas, que fazem dele um modelo ideal e em grande parte ideológico, e que em várias ocasiões tem provocado sua desqualificação científica e política por parte da cultura jurídica, com resultados indefectivelmente antigarantistas. (2002, p. 30)

A Constituição Federal recepciona os princípios garantistas nos termos de garantias fundamentais ao cidadão. Tais princípios fundamentam, em teoria, um sistema penal democrático e equitativo.

O Código Penal de 1940 tem como base a teoria garantista, assim como a Proposta Legislativa nº 236 de 2012 que visa a sua reforma. Ele foi apresentado por Alcântara Machado em 1937, durante o Estado Novo, e teve sua parte geral reformada em 1984, no período da redemocratização nacional. Esta reforma levou ao Código Penal os fundamentos e influências democráticas que ensejaram a criação da Constituição Cidadã. Esta nova parte geral também levou ao Código Penal influência da teoria finalista de Welzel.

A teoria finalista surgiu em um período de rompimento com o positivismo jurídico e com o neokantismo, representando uma visão inovadora do ilícito penal.

De acordo com esta teoria, todas as ações do indivíduo são direcionadas a um fim. Nesta vertente de pensamento, a natureza (ontologia) das condutas humanas está relacionada, intrinsecamente, com a finalidade pretendida pelo autor, de forma que o significado dos atos existe antes deles. Para Welzel não existem meros nexos causais para os acontecimentos, mas sim, direções dadas pelos homens ao significar suas ações em função de uma finalidade específica.

A teoria finalista nega o estudo das normas jurídicas positivadas como pressuposto do estudo do Direito Penal (positivismo), assim como nega a axiologia como fundamento do estudo da norma penal (neokantismo), mas estabelece que existe um “ser” para as coisas, uma estrutura lógico-objetiva que fundamenta os acontecimentos, além de se basear na premeditação dos atos com base na consumação esperada pelo autor, o que põe grande responsabilidade sobre o indivíduo.

Bitencourt resume a teoria finalista da seguinte maneira:

Com efeito, para Welzel, "ação humana é exercício de atividade final. A ação é, portanto, um acontecer 'final' e não puramente 'causal'. A 'finalidade' ou o caráter final da ação baseia-se em que o homem, graças a seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis de sua conduta. Em razão de seu saber causal prévio pode dirigir os diferentes atos de sua atividade de tal forma que oriente o acontecer causal exterior a um fim e assim o determine finalmente". A atividade final- prosseguia Welzel- é uma atividade dirigida conscientemente em função do fim, enquanto o acontecer causal não está dirigido em função do fim, mas é a resultante causal da constelação de causas existentes em cada caso. Esse ponto de partida foi decisivo no processo de sistematização e elaboração dedutiva das categorias sistemáticas do delito, [...] oferecendo um referente estável para a interpretação e aplicação das normas penais, e a consequente garantia de segurança jurídica das decisões judiciais em matéria penal. (2016, p. 120)

A PL nº 236/2012 busca a aproximação entre o Direito Penal brasileiro e a teoria da imputação objetiva de Roxin.

A teoria de Roxin também é pautada nos princípios garantistas, mas diferente do aspecto finalista da conduta humana de Welzel, Roxin baseia seus estudos na finalidade da norma penal, ou melhor, nos fins político-criminais do Direito Penal. Nas palavras de Bitencourt:

Com esse ponto de partida, Roxin pretende evidenciar que o Direito Penal não deve ser estruturado deixando de lado a análise dos efeitos que produz na sociedade sobre a qual opera, isto é, alheio à realização dos fins que o legitimam. Por isso, sustenta que quando as soluções alcançadas no caso concreto, por aplicação dos conceitos abstratos deduzidos da sistematização dogmática, sejam insatisfatórias, elas podem ser corrigidas de acordo com os princípios garantistas e as finalidades político-criminais do sistema penal. (2016, p. 123)

Para Roxin, um tipo penal somente poderá ser imputado a um agente caso este ponha algum bem jurídico em risco que se realiza e se encaixa no tipo penal, consideradas ainda as variáveis da responsabilidade penal.

A responsabilidade, na visão deste teórico, seria a base para a solução dos problemas de aplicação deste ramo do Direito. Mais amplo que o conceito de culpabilidade, a responsabilidade se refere ao agir ilícito por parte do agente apesar de este ser destinatário idôneo da norma penal somado à necessidade de prevenção da conduta. Cabe destacar que a idoneidade para ser destinatário de normas surge da inexistência de fundamentos que tornem a lei penal inaplicável ao agente, como no caso dos inimputáveis.

De acordo com a teoria da imputação objetiva, o Direito Penal deve se adequar ao meio social, refletindo suas necessidades. Além disso, as instituições penais e os legisladores devem se atentar às suas influências na vida dos cidadãos e se basear na real necessidade de intervenção da lei penal a partir da análise da sociedade e dos influxos recebidos por ela, o que é entendido por política social.

A alteração na definição de crime proposta pelo referido Projeto de Lei no seu art. 14 demonstra muito bem a tentativa de aproximação com a teoria da imputação objetiva de Roxin, in verbis:

Art. 14. A realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou efetiva, a determinado bem jurídico.

Parágrafo único. O resultado exigido somente é imputável a quem lhe der causa e se decorrer da criação ou incremento de risco tipicamente relevante, dentro do alcance do tipo. (BRASIL, 2012, p. 6)

Cabe ressaltar alguns equívocos quanto à interpretação da teoria roxiniana e algumas preocupações pontuais em relação a algumas mudanças na Parte Geral proposta pelo PL 236/2012. Foi proposto um parágrafo único para o art. 1º do Código Penal, o qual dispõe que “não há pena sem culpabilidade”, quando Roxin expressa a limitação deste termo e usa a responsabilidade penal como limitador da pena. Para ele, a responsabilidade penal é mais ampla que a culpabilidade por abarcar em seu sentido a necessidade de prevenção da conduta praticada pelo agente.

Outra preocupação, também expressa por Roxin, reside no conceito de “bem-jurídico” e a possibilidade de alteração do seu significado conforme a conveniência do aplicador da lei, podendo ensejar, inclusive, o desrespeito a direitos e garantias fundamentais de parte dos cidadãos.

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1.3 Aspecto histórico temporal

O Código Penal vigente no Brasil completa neste ano oitenta e três anos. Neste lapso temporal o mundo passou por intensas mudanças, as quais não foram acompanhadas pelo referido codex. José Sarney, ao apresentar a justificativa do Projeto de Lei, explicitou tal contexto nos seguintes termos:

A legislação penal vigente há muito não representa as práticas sociais de um povo que sofreu significativas transformações. Não somos mais uma sociedade predominantemente agrária; não somos mais uma nação que pouco participa do conserto das nações; não somos mais uma nação pouco industrializada; não somos mais uma sociedade que tolera, ou mesmo fecha os olhos, para tratamentos discriminatórios em relação às mulheres, a outras etnias, a outras crenças religiosas ou às pessoas portadoras de necessidades especiais. Passamos a ser uma sociedade democrática. Somos um povo que mudou e que, atualmente, se depara com novos desafios, novas invenções, novos conceitos e novas ameaças. O Brasil em 1940 tinha 42 milhões de habitantes; hoje já estamos nos aproximando de 200 milhões. (BRASIL, 2012, p. 196)

De maneira bem analógica, a relação entre uma pessoa com oitenta anos de idade e um adolescente é perpassada por intensos conflitos geracionais, sendo esta a atual relação dos cidadãos brasileiros com o Código Penal.

O Código Penal de 1940 foi apresentado por Alcântara Machado em 1937. Sancionado em 1940 por decreto e iniciada sua vigência em 1942, este Código já conta com aproximadamente cento e quarenta modificações em seu teor.

O CP/1940 foi elaborado e sancionado durante o Estado Novo, ou seja, elaborado durante o período ditatorial. Neste período também ocorria a Segunda Guerra Mundial. Destarte, cabe ressaltar que a elaboração do Código Penal não surgiu em um momento de respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.

A economia brasileira à época passava por um período de industrialização e de incentivo à exportação dos produtos agrícolas. A industrialização levou ao aumento do êxodo rural e, junto à elaboração da Consolidação das Leis Trabalhistas, modificou as relações de trabalho no país. Além disso, proporcionou disseminação das tecnologias da época, como o rádio e a TV.

Finalizada a Segunda Grande Guerra e deposto Getúlio Vargas, o Código Penal brasileiro também esteve vigente no segundo período ditatorial brasileiro: a ditadura militar, a qual durou até 1985.

O lapso temporal entre a criação do Código Penal brasileiro e a reforma da sua parte geral foi perpassado por eventos que representaram o ápice do desrespeito aos direitos humanos e às garantias fundamentais.

Neste período os movimentos sociais surgiram com muita força, tais como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) e o Movimento Negro Unificado (MNU).

Os anos 60 a 80 foram marcados pelo enfrentamento à ditadura e pelo reconhecimento da importância da cultura como instrumento de luta. Nesta época o país também enfrentava a alta inflação e houve a implantação do Plano Cruzado.

Em 1984 foi reformada a parte geral do Código pela Lei nº 7.209/84, em um período de redemocratização e, consequentemente, de resgate da democracia e dos direitos dos cidadãos. Esta reforma representou um avanço na limitação do jus puniendi estatal, mas, novamente, apenas de maneira utópica, como demonstra Bitencourt:

A Lei n. 7.209/84, que reformulou toda a Parte Geral do Código de 1940, humanizou as sanções penais e adotou penas alternativas à prisão, além de reintroduzir no Brasil o festejado sistema dias-multa. No entanto, embora tenhamos um dos melhores elencos de alternativas à pena privativa de liberdade, a falta de vontade política de nossos governantes, que não dotaram de infraestrutura nosso sistema penitenciário, tornou, praticamente, inviável a utilização da melhor política criminal - penas alternativas -, de há muito consagrada nos países europeus. (2016, p. 92)

Nesta época também já havia chegado ao Brasil os computadores e, em pouco tempo, chegaram também os celulares, que revolucionaram o novo século.

Em 1988 foi promulgada a Constituição Cidadã, a qual representa um marco da democracia brasileira e o âmago do Estado Democrático de Direito.

Na década de 90 o país sofreu com a alta da inflação e com o fracasso do Plano Collor, além de ter que se adaptar novamente com uma nova moeda: o Real.

O início do novo século foi marcado pela aceleração das mudanças ocorridas em todo mundo, em razão do avanço tecnológico extraordinário iniciado nos anos 90. As tecnologias criaram o que os estudiosos denominam de Era da Informação, na qual vivemos atualmente, e que representa um contexto social inovador e focado no ambiente virtual.

Este avanço cria novos sinalagmas para as relações sociais e implica em uma reconstrução do modo de existir em sociedade, alterando o mundo do trabalho, os direitos da personalidade e, dentre outros, o Direito Penal.

As relações sociais tendem à universalidade, visto que a tecnologia proporciona que as pessoas se relacionem de maneira intercontinental, e também à liquidez, nos termos da teoria de Zygmunt Bauman.

O foco na importância de proteção aos Direitos Humanos também se iniciou com o novo século, fomentando discussões anteriormente pouco difundidas no Brasil, como os direitos das pessoas negras, das pessoas LGBTQIAPN+, das pessoas com deficiência e das mulheres.

Destarte, neste breve resumo da história do Brasil desde a promulgação do Código Penal de 1940 percebe-se que o país sofreu mudanças extremas, inclusive nas relações sociais, fato que torna este Código obsoleto e ultrapassado. As alterações promovidas no seu texto e a publicação de leis esparsas não são capazes de absorver tamanhas mudanças.

1.4 Direitos Humanos e política social

A questão dos Direitos Humanos e o sistema penal brasileiro enseja um intenso debate, o qual foi realizado de maneira incisiva pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, de 09 de setembro de 2015.

A ADPF nº 347 visava o reconhecimento do sistema penitenciário brasileiro como espaço de violação dos direitos fundamentais da pessoa humana, em razão das suas condições estruturais e da aplicação da pena. A finalidade desta ação pode ser observada de maneira mais detalhada no voto do Ministro Relator Marco Aurélio em seu voto à referida ADPF:

O pedido é voltado a obter do Supremo o reconhecimento de o sistema prisional brasileiro caracterizar-se como o denominado “estado de coisas inconstitucional” ante a ocorrência de violação massiva de direitos fundamentais dos presos, resultante de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, considerado o quadro de superlotação carcerária e das condições degradantes das prisões do país. O requerente pede que o Tribunal determine a esses Poderes a adoção de providências, de conteúdo e natureza diversos, para afastar lesões de preceitos fundamentais.

[...]

Esta arguição envolve a problemática do dever de o Poder Público realizar melhorias em presídios ou construir novos com a finalidade de reduzir o déficit de vagas prisionais. Vai além: versa a interpretação e a aplicação das leis penais e processuais de modo a minimizar a crise carcerária, implantar a forma eficiente de utilização dos recursos orçamentários que compõem o Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN e o dever de elaboração, pela União, estados e Distrito Federal, de planos de ação voltados a racionalizar o sistema prisional e acabar com a violação de direitos fundamentais dos presos sujeitos às condições de superlotação carcerária, acomodações insalubres e falta de acesso a direitos básicos, como saúde, educação, alimentação saudável, trabalho, assistência jurídica, indispensáveis a uma vida minimamente digna e segura.

ADPF 347 MC, Relator (a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.

Este é um marco importante para o debate sobre o sistema penitenciário brasileiro frente aos Direitos Humanos, uma vez que a desídia com as pessoas privadas de liberdade representa uma ofensa a todas as garantias fundamentais da pessoa humana e ao Estado Democrático de Direito.

Da análise do Projeto de Lei nº 236/2012, percebe-se uma preocupação maior com os Direitos Humanos e com as garantias fundamentais expressas na Carta Magna e nas Cartas dos Direitos Humanos, tendo em seu bojo um Título inteiramente voltado a tratativa de crimes contra os Direitos Humanos, no qual são dispostos capítulos com temas como crimes contra a humanidade e contra grupos vulneráveis.

Nesta parte do Código, qual seja seu último Título, muitas inovações são visualizadas, como a criminalização da transgenerização forçada e do apartheid.

A teoria roxiniana, para a qual o referido Projeto tende a se inclinar, está vinculada aos aspectos valorativos da política criminal, com foco nos anseios sociais e na necessidade de aplicação da pena, de forma que o Direito Penal seja aplicado da maneira que deveria ser, ou seja, como ultima ratio.

Além disso, este novo século trouxe consigo a tendência com preocupações relacionadas aos direitos humanos e a sustentabilidade em todas as suas formas. A Constituição de 1988, não à toa chamada de Constituição Cidadã, representa um marco nacional de preocupação com os direitos e garantias fundamentais, algo nunca experimentado nos Textos Maiores que a antecederam.

A Carta Internacional de Direitos Humanos composta pela Declaração Universal de Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, documentos dos quais o Brasil é signatário, demonstra a preocupação global com os direitos da pessoa humana.

Ainda, cabe citar que o Brasil é signatário de outros tratados internacionais que refletem a preocupação global com as garantias fundamentais da pessoa humana, como o Pacto São José da Costa Rica.

Desta forma, resta demonstrado o foco desta nação em fornecer aos cidadãos todos os direitos fundamentais e sociais, entretanto, a garantia destes direitos resta imensamente prejudicada, tornando utópicas todas as disposições contidas nestes documentos. Este fato torna louvável a tentativa do PL nº 236/2012 de conciliar o Direito Penal e os Direitos Humanos.

2 PONTUAIS AVANÇOS DA PROPOSTA LEGISLATIVA Nº 236 DE 2012

2.1 Descriminalizações

O Direito Penal é o ramo do Direito autorizado a cercear um dos direitos fundamentais mais importantes do cidadão: a liberdade. Esta autorização surge da necessidade de proteção dos direitos dos cidadãos frente à prática de condutas lesivas a estes direitos por outros cidadãos, e deve ser utilizada apenas quando os demais ramos do Direito não cuidarem de solucionar a hipótese de risco gerada por estas condutas humanas, ou seja, como ultima ratio.

Fragoso disserta que

Uma política criminal moderna orienta-se no sentido da descriminalização e da desjudicialização, ou seja, no sentido de contrair ao máximo o sistema punitivo do Estado, dele retirando todas as condutas antissociais que podem ser reprimidas e controladas sem o emprego de sanções criminais. (FRAGOSO, 1985, p.17, apud BATISTA, 2007, p. 36)

De acordo com Fragoso a política criminal moderna se orienta para uma atuação efetiva do Estado no sentido de atribuir ao Direito Penal apenas as tutelas relevantes, ou seja, uma política criminal moderna é a de contração do sistema penal, o que implica em descriminalizações.

Para Roxin, as descriminalizações fazem parte do Direito Penal do futuro e são viáveis em dois aspectos:

Primeiramente, pode ocorrer uma eliminação definitiva de dispositivos penais que não sejam necessários para a manutenção da paz social. Comportamentos que somente infrinjam a moral, a religião ou a political correctedness, ou que levem a não mais que uma autocolocação em perigo, não devem ser punidos num estado social de direito. Afinal, o impedimento de tais condutas não pertence às tarefas do direito penal, ao qual somente incumbe impedir danos a terceiros e garantir as condições de coexistência social.

Um segundo campo de descriminalizações é aberto pelo princípio da subsidiariedade. Este princípio fundamenta-se na idéia (sic) de que o direito penal, em virtude das suas acima expostas desvantagens, somente pode ser a ultima ratio da política social. Isso significa que só se deve cominar penas a comportamentos socialmente lesivos se a eliminação do distúrbio social não puder ser obtida através de meios extrapenais menos gravosos. (2008, p. 12 e 13)

As mudanças na sociedade implicam em mudanças na perspectiva daquilo que deve ou não ser punido, principalmente, quando se considera que o ramo do Direito que possui a prerrogativa de cercear o direito fundamental à liberdade deve ser utilizado como última alternativa. Este foi o fundamento para a descriminalização do adultério, por exemplo.

A prática reiterada de uma conduta punida pelo Código Penal por uma grande quantidade de agentes, de forma que estes assumem o risco de arcar com as consequências da conduta e não se preocupam com o fato de esta ser proibida, as quais, geralmente, não são noticiadas ao Poder Público, é chamada pela doutrina de cifra oculta. É possível associar este conceito com a normalização da conduta pela sociedade (independente da moral, da religião e dos costumes, temas não afetos ao Direito Penal), pela perda da necessidade de prevenção (fundamento para a aplicação da pena) e, consequentemente, inutilidade da penalização da conduta praticada. Esta questão reflete também no grau de gravidade da conduta, o qual se torna reduzido, implicando na desnecessidade de tutela penal para determinadas demandas.

A continuidade da criminalização das condutas reiteradas, além de outros aspectos peculiares a cada ato típico, propicia, inclusive, a superlotação dos presídios e a atuação do Direito Penal fora do âmbito de sua competência.

Azevedo (1989) demonstra este pensamento quando escreveu que o direito penal, “a menos que se converta em instrumento ideológico destinado a dissimular ou falsear a realidade, precisa manter-se rente a vida, recebendo seu influxo e sobre ela atuando, atenta a configuração da situação humana global a que se destina” (AZEVEDO, p.60, 1989, apud, BATISTA, p. 122). Ou seja, de acordo com o autor, o Direito Penal deve se abster de criminalizar condutas que a sociedade demonstra não considerar mais apta a ofender qualquer bem jurídico, mantendo seu foco de atuação nas condutas que necessitam de repressão.

As propostas de descriminalização citadas a seguir são parciais, visto que o tráfico de drogas e o aborto continuariam constituindo tipos penais, entretanto são propostas novas hipóteses que excluem a ilicitude do fato.

2.1.1 Descriminalização do uso, porte e plantio de drogas para consumo próprio

Dentre os temas mais polêmicos trazidos pelo PL nº 236/2012 está a descriminalização do uso, porte e plantio de drogas para consumo próprio; condutas punidas com advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa, nos termos do art. 28 da Lei nº 11.343/2006.

Inicialmente cumpre destacar um descompasso entre o referido dispositivo e a aplicação desta norma, pois muitos casos são tratados como referentes ao crime de tráfico de drogas, o qual possui penas mais pesadas. De acordo com dados obtidos da análise dos processos sentenciados no primeiro semestre de 2019 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MPJSP), 49% dos indivíduos processados por tráfico de drogas admitiram a condição de usuário, e 30% alegaram que a droga apreendida se destinava ao uso pessoal.

As manifestações da sociedade em relação ao tema são extremamente perpassadas pelo senso comum e orientadas para a maximização do Direito Penal.

Este tema, atualmente, encontra-se em julgamento na Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 635.659/SP do Supremo Tribunal Federal.

Trata-se de recurso extraordinário interposto pelo Defensor Público-Geral do Estado de São Paulo contra acórdão do Colégio Recursal do Juizado Especial Cível de Diadema/SP que, por entender constitucional o art. 28 da Lei 11.343/2006, manteve a condenação pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal.

Neste recurso extraordinário, fundamentado no art. 102, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, alega-se violação ao artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.

O recorrente argumenta que o crime (ou a infração) previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2006 ofende o princípio da intimidade e vida privada, direito expressamente previsto no artigo 5º, X da Constituição Federal e, por conseguinte, o princípio da lesividade, valor basilar do direito penal.

(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE nº 635659 SP, Relator (a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno)

Em seu voto, o Ministro Alexandre de Moraes fixou uma tese acerca da diferenciação entre usuário e traficante, e foi emblemático ao ressaltar que atualmente existe imensa discricionariedade policial e do Ministério Público no tratamento dado aos casos concretos, por motivações regionais, sociais, mas, principalmente, raciais. Sua tese se funda na ideia de que “será presumido usuário aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trazer consigo, uma faixa fixada entre 25,0 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas, dependendo da escolha mais próxima do tratamento atual dado aos homens brancos, maiores de 30 anos e com nível superior” (2023, s.p.). A criminalização do tráfico de drogas afeta de maneira especial a população negra, fato este demonstrado pelo ministro em seu voto.

Em 2022 a população carcerária custodiada pelo Sistema Penitenciário Nacional, incluindo os presos domiciliares, era de 826.740 (oitocentos e vinte e seis mil, setecentos e quarenta) pessoas, sendo que, 24,41% deste número representam a incidência da tipificação relacionada ao tráfico de drogas, ultrapassando, inclusive, o somatório de condenados por crimes contra a pessoa (SISDEPEN, 2022).

Observa-se que o tipo penal se torna irrelevante na decisão de boa parte da população quanto à prática desta conduta, o que fere o Direito Penal como ultima ratio, uma vez que o mesmo deveria cuidar de condutas lesivas à sociedade quando outros ramos não possam fazê-lo com efetividade, entretanto, pune com rigor uma prática reiterada pela população.

Este cenário torna-se extremamente prejudicial ao sistema prisional brasileiro quando considerado o problema da superlotação carcerária. A descriminalização do uso de drogas para uso próprio proporcionaria um relativo desafogamento do sistema prisional brasileiro, diminuindo o número de novas incidências e provocando a reanálise de grande parte dos mais de duzentos mil processos relacionados ao tráfico de drogas.

Neste momento cabe citar Roxin (2008, p. 44 e 45), que discorre acerca da descriminalização do porte de drogas leves. Para o autor, a autolesão consciente, incluindo sua promoção ou facilitação, não são matéria afetas ao Direito Penal, pois a finalidade de proibir estas condutas seria “impedir que alguém seja lesionado contra a sua vontade”, quando as decisões tomadas conscientemente pelo indivíduo que goza de capacidade e autonomia em nada interessam ao Estado, assim como o suicídio. Esta proteção almejada pelo Estado ensejaria em uma prática paternalista que apenas se justifica quando o indivíduo não possui plena capacidade de autodeterminação, como no caso das crianças.

Para ele, (2008, p. 45) “não se pode questionar seriamente que o trato com drogas pesadas deva ser punido”, em razão do prejuízo que elas inferem nos direitos da personalidade do consumidor, entretanto, as drogas leves, como a maconha, não causam prejuízo a outras pessoas, apenas, ao próprio consumidor, afastando o interesse estatal na punição. Ainda, de acordo com ele, estudos demonstram que o consumo de drogas leves não é mais prejudicial que o consumo de algumas drogas lícitas como o álcool e o cigarro.

Frente ao contexto punitivo atual, no qual milhares de pessoas são presas pelo porte de drogas (considerando ainda o tratamento dados às pessoas brancas que, geralmente, não são investigadas ou punidas por praticar esta conduta), que demonstra que milhares de pessoas utilizam esta substância, este tipo penal torna-se simbólico e um meio de manutenção de práticas racistas.

De acordo com os dados da citada pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MPJSP), 65,7% da população processada por tráfico de drogas era negra, enquanto 21,2% era branca. As conclusões desta pesquisa quanto ao perfil das pessoas condenadas por tráfico apontam para a reprodução das desigualdades sociais com base na seletividade penal, termo utilizado para definir a propensão do sistema penal brasileiro em abordar e condenar um perfil específico de pessoas, independente do tipo penal praticado por estas e da prática da mesma conduta por pessoas que difiram do perfil discriminado.

O tráfico de drogas não está presente no Código Penal, mas sim na legislação esparsa, mais especificamente, tipificado na Lei nº 11.343/2006, tornado hediondo, inafiançável e insuscetível de anistia, graça ou indulto pela Lei nº 8.072/1990.

O Projeto de Lei nº 236 de 2012 mantém a criminalização do tráfico de drogas, porém exclui o crime em caso de guarda, depósito, transporte de drogas e cultivo de plantas para fabricação quando direcionadas ao consumo próprio, sendo determinado o consumo pessoal pelo juiz, com base na natureza e quantidade da substância, circunstâncias do agente, local da ação e em casos que a quantidade seja suficiente para o consumo médio individual por cinco dias.

2.1.2 Descriminalização do aborto

De acordo com a Organização Mundial da Saúde - OMS (2022), 45% de todos os abortos do mundo são inseguros, sendo a estes associadas a morte de um número entre 13.865 (treze mil oitocentos e sessenta e cinco) e 38.940 (trinta e oito mil novecentos e quarenta) mulheres. Segundo este órgão, o índice de aborto induzido é muito maior em países nos quais a lei ainda o proíbe e tem sido um privilégio de pessoas ricas, visto que as mortes acometem, geralmente, pessoas de baixa renda e marginalizadas, que optam pela clandestinidade por falta de opções que o Estado forneça ou que o dinheiro possa comprar.

No Brasil, de acordo com o Guia de Vigilância Epidemiológica do Óbito Materno do Ministério da Saúde, o aborto é uma das principais causas de morte materna, que atinge majoritariamente mulheres negras (2009, p. 8).

De acordo com dados da Pesquisa Nacional de Aborto 2016, aproximadamente uma em cada cinco mulheres brasileiras realizou aborto naquele ano e, em 2015 foram realizados quase meio milhão de abortos, sendo, em sua maioria, inseguros. Com base neste panorama é possível determinar que o aborto é um dos maiores problemas de saúde pública no Brasil e uma afronta ao direito das mulheres à vida, à dignidade e à liberdade.

Destarte, é possível inferir que a tipificação penal não interfere na decisão de muitas mulheres em praticar o aborto, as quais sofrem com as consequências de inúmeros procedimentos clandestinos, que muitas vezes sequer são notificados às autoridades.

Atualmente, no Brasil, o aborto só é permitido quando não houver outros meios de salvar a vida da mãe, em caso de estupro (art. 149 do Código Penal) e anencefalia do feto (ADPF nº 54 e Resolução CFM nº 1989/2012).

O Projeto de Lei nº 236 de 2012 propõe, dentre as hipóteses de excludente de ilicitude já existentes, em seu art. 128, III, o acréscimo ao texto penal da hipótese de anencefalia do feto, e, no inciso IV, a vontade da gestante até a décima segunda semana de gestação após constatação médica de que a mulher não possui “condições psicológicas de arcar com a maternidade”. Ou seja, o aborto continua a ser crime, mas a possibilidade de aborto seguro é largamente ampliada.

A primeira recomendação da OMS quanto ao aborto é a sua descriminalização total, uma vez que

As evidências indicaram que a criminalização não teve impacto na decisão de fazer um aborto, nem impediu as mulheres de praticarem o aborto, nem impediu as mulheres de procurarem informações e de serem encaminhadas para serviços no estrangeiro onde pudessem ter acesso ao aborto. Em vez disso, a criminalização limita o acesso ao aborto seguro e legal e aumenta o recurso ao aborto ilegal e inseguro. (2022, p. 24)

É imperioso destacar que aqueles que são contrários à descriminalização justificam-se pelo direito à vida, como pode ser observada na petição de ingresso de amicus curiae nº 13.776/2017 do Partido Social Cristão na ADPF nº 442 que cuida justamente da descriminalização do aborto até a décima segunda semana, quando os dados demonstrados indicam risco imenso à vida da mulher nos casos de abortos inseguros.

Ex positis, observa-se que a manutenção da criminalização do aborto é prejudicial à vida e a dignidade das mulheres e a causa indireta de muitas mortes maternas, além de interferir minimamente na decisão daquelas que desejam o aborto. Estas questões tornam a tipificação meio de violência sistemática contra o gênero, principalmente para mulheres negras e pobres, além de ferir o aspecto de proteção em ultima ratio dos direitos da pessoa humana pelo Direito Penal.

2.2 Criminalizações

As mudanças ocorridas na sociedade fundamentam não apenas as descriminalizações, mas também as criminalizações.

De acordo com Roxin (2008, p. 4), as sociedades têm se tornado mais complexas e a conduta criminosa, com base na psicologia, se refere a um comportamento típico desviante inerente à humanidade, de forma que criminalizações se tornam necessárias.

Entretanto, não é somente este o fundamento para a criação de novos tipos penais. O Direito Penal possui a função de tutelar os direitos dos cidadãos prejudicados ou ameaçados por condutas de outras pessoas, de tal forma graves que tornam todas as possibilidades de sanção no ordenamento jurídico insatisfatórias.

Neste sentido, a grave violação dos direitos da população ainda não tutelados pelo Direito Penal deve ensejar a criação de novos tipos penais a fim de cumprir com a finalidade do referido ramo.

2.2.1Criminalização da homofobia, transfobia e transgenerização forçada

De acordo com dados do Dossiê de Assassinatos de Pessoas Transexuais e Travestis (2023, p. 60 e 61), o Brasil é o país que mais consome pornografia transgênero e o que mais mata pessoas transgênero e travestis, acumulando 37,4% de todos os assassinatos do mundo entre 2008 e 2022.

Conforme dados do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil 2022 (2023, p. 19), “entre 2000 e 2022, 5.635 (cinco mil e seiscentas e trinta e cinco) pessoas morreram em função do preconceito e da intolerância de parte da população e devido ao descaso das autoridades responsáveis pela efetivação de políticas públicas capazes de conter os casos de violência”.

Ou seja, não se fazem necessários mais dados para demonstrar que existe um grupo social que necessita da tutela do Estado no que tange seu direito à vida e à dignidade. Entretanto, apesar da patente necessidade de tutela por parte do Poder Público, o mesmo mantém-se inerte, obrigando, inclusive, o Poder Judiciário a “legislar”.

Em uma anomalia jurídica o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 equiparou a homofobia e transfobia ao crime de racismo, a fim de fornecer alguma proteção à população LGBTQIAPN+. Nos termos da tese firmada no julgamento desta ADO,

Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”); II - A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero; III - O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.

(ADO 26, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG 05-10-2020 PUBLIC 06-10-2020)

O Projeto de Reforma do Código Penal prevê, dentre os crimes contra a humanidade, em seu art. 459 o crime de genocídio, que inclui as práticas de ofensa, assassinato, impedimento de nascimento e submissão à condição desumana em razão de, dentre outras hipóteses, identidade de gênero ou orientação sexual de outrem. Além disso, prevê em seu art. 464, a figura da transgenerização forçada, crime praticado por aquele que intenta modificar a percepção social de gênero de outra pessoa, a fim de aliciá-la à exploração sexual. Ainda institui como qualificadora do crime de homicídio aquele praticado em razão de preconceito por identidade de gênero ou orientação sexual (art. 121, §1º, I).

A aprovação do Projeto de Lei nº 236 com a manutenção destes artigos representaria um avanço inestimável às pessoas LGBTQIAPN+, que teriam, finalmente, seus direitos tutelados pelo Código Penal.

2.2.2 Criminalização do apartheid, genocídio e qualificadora para homicídio cometido em razão de preconceito à cor, raça ou etnia

Além de tratar sobre o crime de racismo em seu bojo (Título XVI, Capítulo V), o Projeto de Lei nº 236/2012 apresenta outros avanços importantes para a comunidade negra.

O homicídio cometido em razão de preconceito por raça, cor ou etnia, torna-se qualificado (art. 121, §1º, I, do PL nº 236 de 2012). Além disso, ofensa, assassinato, impedimento de nascimento e submissão de alguém à condição desumana com o intuito de destruir um grupo em razão de preconceito por raça, cor ou etnia contempla a figura do crime de genocídio (art. 459). Ainda, a prática de condutas descritas no Título sobre crimes contra a humanidade (Título XVI), como assassinato, segregação e ofensa, em regime institucionalizado e almejando o domínio de um grupo racial ou étnico sobre outro configura o crime de apartheid (art. 467).

Tais tipificações visam contemplar todas as situações aptas a configurar crimes raciais, a fim de mitigar a quantidade de demandas relacionadas a matéria e não apreciadas por conta de uma legislação ambígua e jurisprudência omissa.

3 PONTUAIS DESAFIOS DA PROPOSTA LEGISLATIVA Nº 236 DE 2012

3.1 Religião X Lei: Estado laico

O Estado brasileiro é laico e a liberdade religiosa é garantida pela Constituição Federal de 1988, a qual, apesar disso, traz em seu preâmbulo a “proteção de Deus” para sua promulgação.

Não é despiciendo mencionar que a colonização trouxe ao Brasil o cristianismo, religião seguida pela maioria da população brasileira e, inclusive, com grande força política no governo.

Os cristãos seguem os preceitos bíblicos com base em suas interpretações e, em algumas delas muitas questões são tidas como tabus, como pecado e como passíveis de criminalização.

Entretanto, o Direito como um todo, mas, principalmente, o Direito Penal, possui a função de se adequar ao contexto social e, por meio dos anseios e das necessidades identificadas a partir da sua análise, criar normas que proporcionem a convivência pacífica.

Nas palavras de Claus Roxin,

[...] não é permitido deduzir proibições de direito penal dos princípios de uma certa ética, pois, em primeiro lugar, nem todo comportamento eticamente reprovável perturba a convivência entre os homens e, em segundo lugar, muitos princípios éticos são questão de crença e não podem ser impostos ao indivíduo. Por motivos similares não é permitido querer impor premissas ideológicas ou religiosas com a ajuda do direito penal. (2008, p.34)

Ou seja, a religião não é fonte para o Direito Penal, assim como seus preceitos não podem ser utilizados sobre uma população diversa e livre e em um dispositivo que deva ser utilizado apenas em último caso.

Cabe citar aqui a justificativa para o projeto de lei apresentado pelo presidente do Senado Federal à época, José Sarney, no qual o mesmo manifesta-se em discordância com alguns dispositivos elencados no projeto em razão da sua crença, in verbis:

Assim, embora apresente o texto da comissão sem alterações, sinto-me no dever de declarar que os assuntos tratados nos artigos 122; 128, III, IV e parágrafo único; e nos parágrafos 2º, 3º e 4º do artigo 212, que tratam, respectivamente, dos temas eutanásia, das causas de exclusão de crime nos tipos de aborto e da exclusão do crime no caso de porte de drogas e seu plantio para uso, por uma questão de consciência e religião, não embasam o meu ponto de vista. Ao contrário, sou contra as matérias elencadas nos dispositivos mencionados. (BRASIL, 2012, p. 197 e 198)

Também é possível verificar o mesmo comportamento em diversas manifestações da população e de juristas contrárias a este dispositivo e, fundamentadas na religião, assim como propostas de emendas ao projeto com o mesmo fundamento.

José Henrique Vilela, em seu artigo intitulado “Anatomia dos Atos Libidinosos da Sodomia e do Homossexualismo à Luz da Bíblia e da Constituição Federal, do Código Penal e do Código Civil”, criticou a tipificação penal da homofobia proposta pelo Projeto de Lei nº 236/2012, nos seguintes termos:

[...] alinhado com o crescente CLAMOR POPULAR, depurando o PLS 236/2012 de falhas conceituais e erros gravíssimos [...] Pois atos libidinosos e conduta libidinosa, por serem anomalias, não são, nem nunca foram, bens jurídicos a serem protegidos e tutelados, muitos menos sob a alegação falsa do “preconceito” e da “discriminação”. [...]

levantada de uma análise séria da anatomia dos crimes dos atos libidinosos da sodomia e do homossexualismo [...] Boca e ânus, portanto, não são genitálias, nem órgãos reprodutores. Usá-los para coito constitui libidinagem, perversão sexual e diversidade grave e degenerativa de conduta, tipificadas como pecado na Bíblia, e como crimes no Código Penal. (sic) (2012, p. 2 e 3)

Este pensamento, perpassado pelos ensinamentos religiosos, não é fonte para a legislação e, inclusive, viola os direitos fundamentais de outras pessoas, a quem cabe ao Estado proteger.

3.2 Função social do Direito

O enfoque retributivista da pena paira no imaginário social e, infelizmente, na concepção de alguns aplicadores do Direito.

A criação do Código Penal brasileiro no final da década de 30 foi justificada pela diminuição da criminalidade e, nos dias atuais, quase um século depois, o clamor pela maximização do Direito Penal continua pelos mesmos fundamentos.

Com efeito, Bitencourt trata do anseio social pela maximização do Direito Penal e do fracasso da justificativa de diminuição da criminalidade para aumento das penalizações em face da escassez de políticas públicas, nos seguintes termos.

Com efeito, a escassez de políticas públicas que sirvam de suporte para a progressiva diminuição da repressão penal, unida à ineficácia do sistema penal, produzem o incremento da violência e, em consequência, o incremento da demanda social em prol da maximização do Direito Penal. Essa foi a experiência vivida no Brasil durante alguns anos da década de 1990, pautada por uma política criminal do terror, característica do Direito Penal simbólico, patrocinada pelo liberal Congresso Nacional, sob o império da democrática Constituição de 1988, com a criação de crimes hediondos (Lei n. 8.072/90), criminalidade organizada (Lei n. 9.034/95) e crimes de especial gravidade. Essa tendência foi, sem embargo, arrefecida quando veio a lume a Lei n. 9.099/95, que disciplinou os Juizados Especiais Criminais, recepcionando a transação penal, destacando a composição cível, com efeitos penais, além de instituir a suspensão condicional do processo. Posteriormente, a Lei n. 9.714/98 ampliou a aplicação das denominadas penas alternativas para abranger crimes, praticados sem violência, cuja pena de prisão aplicada não seja superior a quatro anos. Desde então vivemos em uma permanente tensão entre avanços e retrocessos em torno da função que deve desempenhar o Direito Penal na sociedade brasileira, especialmente porque o legislador penal nem sempre tem demonstrado respeito aos princípios constitucionais que impõem limites para o exercício do ius puniendis estatal. Exemplo significativo desses retrocessos autoritários encontra-se na Lei n. 10.792/2003, que criou o regime disciplinar diferenciado, cujas sanções não se destinam a fatos, mas a determinadas espécies de autores, impondo isolamento celular de até um ano, não em decorrência da prática de determinado crime, mas porque, na avaliação subjetiva de determinada instância de controle, representam "alto risco" social ou carcerário, ou então porque há "suspeitas" de participação em quadrilha ou bando, prescrição capaz de fazer inveja ao proscrito nacional-socialismo alemão das décadas de 30 e 40 do século passado. (2016, p. 92 e 93)

O Direito surgiu após os seres humanos abandonarem o modo nômade de vivência e ocuparem terras, formando comunidades, a fim conter os conflitos oriundos da convivência entre pessoas em um espaço comum. Criados pelos seres humanos que possuíam maior poderio político e econômico, o Direito foi legitimador de todas as práticas justificadas pelos legisladores como necessárias, ainda que contrárias aos direitos e clamores de parte da população.

Isso ocorreu, por exemplo, com a escravidão, legitimada pelas normas e Constituições; com o apartheid norte-americano e sul-africano; e com o nazismo na Alemanha. A Constituição Federal de 1824 determinava, dentre outras características, como cidadãos brasileiros apenas aqueles libertos, e a Lei nº 1 de 1.837 proibia “os escravos, e os pretos africanos, ainda que sejão livres ou libertos” (sic) de frequentarem as escolas públicas (art. 3º, 2º); as Leis Jim Crow determinavam que houvesse segregação de raças em ambientes públicos no Sul dos Estados Unidos; as Leis de Nuremberg determinavam quem seria definido cidadão alemão, com base, por exemplo, na etnia dos antecessores dos cidadãos e na religião praticada; sendo estes somente exemplos de legislações que fundamentaram práticas desumanas.

Sobre a função do Direito no contexto da escravidão, o Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, escreveu:

Muitas das justificativas para a escravidão, e para o racismo que a amparava ideologicamente, tinham como base a ideia de uma ordem natural que “fundamentava” a escravidão de determinados povos e a superioridade de outros. Portanto, leis positivas que amparavam a escravidão nada mais faziam do que espelhar uma ordem já determinada pela “natureza das coisas”, por “Deus” ou pela “razão”. (2019, s.p.).

Estes períodos históricos foram perpassados pela edição de normas legitimando o status quo e autorizando condutas discriminatórias e violações a inúmeros direitos humanos, como a vida, a liberdade e a dignidade humana. Tais direitos, previstos na Constituição como cláusulas pétreas e em tratados internacionais, representam parte do foco do Projeto de Lei nº 236 de 2012, que busca a constitucionalização da lei penal e o afastamento desta história atroz.

O Direito Civil passou por um processo de constitucionalização que o Projeto de Lei nº 236 de 2012 almeja levar ao Direito Penal. O foco nos direitos humanos e na função social da pena demonstrado em seus artigos representa uma tentativa de união entre este ramo tão devastado do Direito aos princípios e garantias fundamentais da pessoa humana, principalmente a dignidade.

Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt,

O nosso apego aos Direito Humanos, unido ao presente caminhar em prol da efetividade material dos direitos e garantias individuais, em suma, alenta a nossa perspectiva de um futuro menos cruel para o Direito Penal. Esse caminho haverá de estar guiado pelo pluralismo jurídico, sem perder de vista a perspectiva de que a construção legítima do Direito e de seu sistema repressor depende, intrinsecamente, da paulatina consolidação do sistema democrático como reflexo de uma convivência social em condições materiais de igualdade. Somos os atuais agentes deste processo de transição, os artífices desse projeto de futuro. (2016, p. 94)

O viés punitivo e a maximização do Direito Penal, clamores populares da atualidade e expressões realizadas em manifestações relacionadas ao Projeto, representam afastamento deste ramo do Direito dos princípios fundamentais e dos direitos humanos, além de um imenso retrocesso, aproximando o Código Penal das leis que embasaram tantas desumanidades ao redor do mundo.

José Maria da Silva Pinto redigiu manifestação sobre o Código Penal, intitulada “BRASILEIROS DO BEM”, que sugere ao Congresso a aplicação de nova modalidade de pena no Brasil, in verbis:

Porque, no Brasil, talvez até por um determinado período não se emprega a Pena Capital, a FORCA como era nos tempos do IMPÉRIO? Até as despesas provenientes do uso da PENA, acima seriam muito mais baratas em comparação com as outras modalidades, levando-se em vida de que a vida útil de uma corda é muito longa, e consequentemente daria para executar muitos criminosos que assim merecessem! (sic) (2012, s.p.)

O referido posicionamento expressa extrema insatisfação com a política penal brasileira e, de maneira extremista, associa a melhora da situação à aplicação da pena de morte.

Em um país com uma população carcerária de 661.915 (seiscentos e sessenta e um mil novecentas e quinze) pessoas (INFOPEN, 2022), a ausência de aplicação de pena não é um argumento verídico, e faz com que o clamor pela maximização da penalização seja infundado. Entretanto, o imaginário social baseia a sensação de justiça ao aprisionamento ou ao ditado “bandido bom é bandido morto”, de forma que cabe aos juristas proporcionar uma discussão efetiva com a sociedade acerca da função social do Direito.

A discussão realizada neste trabalho visa justamente demonstrar que a função do Direito não é abarcar a dogmática religiosa ou absorver o clamor social pela maximização da penalização, mas sim garantir que os direitos de todos, inclusive dos presos, sejam tutelados com eficiência. Esta ilação só é possível a partir da discussão com base em estudos, doutrinas, jurisprudências e dados que reflitam a situação atual da sociedade, de forma a não permitir que sentimentos e preconceitos interfiram no processo legislativo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente em tramitação no Senado Federal, o Projeto de Lei nº 236 de 2012 merece destaque nos debates relacionados ao Direito Penal, uma vez que, após oitenta e três anos é possível discutir o sistema penal brasileiro no bojo da lei que o fundamenta.

Insta ressaltar inicialmente que este Projeto propõe uma mudança na abordagem teórica da lei penal no Brasil. Da análise do seu teor é possível verificar a aproximação à teoria da imputação objetiva criada por Claus Roxin, de acordo com a qual a sanção penal deve ser adequada aos aspectos sociais relevantes, como a real necessidade de repressão de determinada conduta.

Além disso, o texto do novo codex proposto possui grande influência das letras da Constituição Federal brasileira, principalmente no que tange os direitos fundamentais da pessoa humana, fato que enseja a afirmação de que o Direito Penal está em processo de constitucionalização. Apesar de incluído neste fenômeno que vem abarcando todos os ramos do Direito nos últimos anos, o Projeto não apresenta novidade no que tange os tipos de sanções penais, visto que as penas diferentes da prisão ainda são consideradas exceções.

Apesar do pouco avanço nos tipos de sanções (portanto, avanço igualmente pequeno no que tange o afastamento do Direito Penal do viés vingativo e punitivo que a ele é atribuído), o referido Projeto apresenta algumas propostas de descriminalizações, das quais é possível destacar a legalização do uso e porte de drogas e do aborto nos casos em que a mulher não possuir condições psicológicas de ser mãe.

No caso da descriminalização do uso e porte de drogas é possível analisar sua viabilidade a partir da análise do tipo penal relacionado ao tráfico de drogas e da sua aplicação na atualidade. Dados estatísticos demonstram que muitos usuários de entorpecentes são condenados por tráfico e comprovam a seletividade penal que ocorre de maneira significativa no contexto do processo e da condenação por este tipo penal. A análise da viabilidade desta descriminalização pela doutrina se justifica pela ausência de interesse do Direito Penal em tutelar condutas autolesivas, o qual deve ser utilizado apenas em ultima ratio.

Já o aborto, no texto do Projeto de Lei aqui analisado, possuiria mais uma hipótese de excludente de ilicitude, que seria o caso da gestante que, por motivos psicológicos, não possui condições de arcar com a maternidade. De acordo com os dados coletados, em razão da sua criminalização e, consequentemente, da busca por procedimentos clandestinos, o aborto é uma das maiores causas de morte materna, afetando em maior número a população negra e pobre, o que gera, inclusive, manifestações dos órgãos de saúde pela sua descriminalização.

Cabe citar também as propostas de criminalizações do PL nº 236/2012, as quais são amparadas pelo prejuízo gerado pela omissão legislativa a determinados grupos de cidadãos. Neste sentido, é possível citar, dentre os novos tipos penais propostos, a tipificação da homofobia, da transfobia, da transgenerização forçada, do apartheid, do genocídio e a criação de nova qualificadora para homicídio, qual seja o cometido em razão de preconceito à cor, raça ou etnia.

A população LGBTQIAPN+ é uma das que mais sofrem no Brasil por questões relacionadas ao preconceito. Apesar deste contexto, o Direito Penal ainda não apresenta nenhum tipo penal capaz de tutelar os direitos desta população, validando a iniciativa de criminalização de condutas transfóbicas e homofóbicas, além da transgenerização forçada.

Apesar das atuais previsões penais para o crime de racismo, estas não são suficientes para coibir práticas discriminatórias em função de cor, raça e etnia, o que justifica os novos dispositivos propostos pelo PL nº 236/2012, como o apartheid e o genocídio.

O Projeto de Lei nº 236 de 2012 avança muito pouco nas propostas alternativas de pena, porém tenta se adequar às questões sociais emergentes, avançando em aspectos sensíveis à sociedade. Tais avanços podem ser observados no trato dos direitos humanos no bojo do Projeto, na tentativa de conciliar a penalização à política social, e nas propostas de criminalizações e descriminalizações pelos fundamentos acima descritos.

As manifestações sociais pelo aumento de pena e de criminalizações, falsamente justificadas pelo aumento da criminalidade ou amparadas pela crença do que constitui pecado, representam um dos desafios à aprovação do Projeto de Lei nº 236 de 2012, visto que a aceitação da sociedade, a qual será tutelada pela lei proposta, tem o condão de indicar a direção que o legislador pode seguir.

Portanto, a ausência de discussões entre juristas, legisladores, órgãos públicos e a sociedade que levem em consideração a função do Direito e o afastamento deste de questões subjetivas, implica na continuidade de manifestações negativas relacionadas ao Projeto de Lei, o que significa mais um desafio à proposta de reforma.

Sobre a autora
Vanessa de Jesus Gomes

Especialista em Direito Penal e Processual Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Vanessa Jesus. Uma breve análise sobre o projeto de reforma do Código Penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7706, 6 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110336. Acesso em: 1 nov. 2024.

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