HABEAS CORPUS – CONSIDERAÇOES DOUTRINÁRIAS E APLICAÇÕES PRÁTICAS NOS TRIBUNAIS SUPERIORES.
Resumo: Em tempos de ideologização de conceitos cada vez mais elásticos há que se voltar a algumas origens a fim de direcionar esse importante instrumento do processo penal e do direito constitucional com a visitação de temas importantes na jurisprudência das Cortes Superiores.
JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA, ADVOGADO DO ESCRITÓRIO BALLERINI ASSOCIADOS MAGISTRADO APOSENTADO E PROFESSOR DA FAJ DO GRUPO UNIEDUK DE UNITÁ FACULDADE - COORDENADOR NACIONAL DOS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL, DIREITO IMOBILIÁRIO E DIREITO CONTRATUAL DA ESCOLA SUPERIOR DE DIREITO – ESD PROORDEM CAMPINAS E DA PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MÉDICO DA VIDA MARKETING FORMAÇÃO EM SAÚDE. EMBAIXADOR DO DIREITO À SAÚDE DA AGETS – LIDE.
FRANCISCO NUNES PINTO DA SILVA – ADVOGADO DO ESCRITÓRIO BALLERINI & LUPORINI;
O habeas corpus é uma ferramenta jurídica fundamental para a proteção dos direitos individuais no âmbito do processo penal. Originário do direito inglês medieval, esse instituto jurídico desempenha um papel crucial na salvaguarda da liberdade individual contra possíveis abusos estatais. Ao longo dos séculos, o habeas corpus evoluiu para se tornar uma pedra angular dos sistemas legais democráticos em todo o mundo, contribuindo significativamente para o equilíbrio entre segurança e liberdade no contexto da justiça criminal.
Apontava Jeremy Benthan sobre uma situação óbvia: Quanto mais seguro um ordenamento mais inseguro seria, e quanto mais justo, menos seguro. Num mundo de grandes divergências ideológicas – sendo o direito cada vez impactado por interpretações de princípios elásticos, em que se tem muitas vezes a impressão de que autoridades aplicam normas fora da ideia de segurança jurídica e mais por ativismo ou questões ideológicas – o habeas corpus se torna cada vez mais necessário.
E isso porque, para além da questão de recursos penais, o habeas corpus permite a discussão de teses jurídicas para que se tenha maior segurança em relação a alguns exageros e atos draconianos – coatores na linguagem dos writs de impetração. O objeto deste estudo é destacar alguns pontos da construção histórica do instituto, para, a partir disso, se lançar novas ponderações e discussões atuais sobre a utilização do instituto.
Das terras inglesas, ao Brasil o writ percorreu um longo caminho até chegar as discussões travadas nas cortes superiores acerca de sua utilização. A fim de evitar sua banalização como inovação recursal vem se discutindo sobre sua racionalização. Um exemplo disto é construção da súmula 691 do STF evitando sua banalização.
O habeas corpus, uma salvaguarda legal fundamental contra detenções arbitrárias, e desde os primórdios de sua existência, esse instituto tem sido alvo de críticas e debates por parte de diversos juristas e legisladores. Andrei Koerner, em tese de doutorado, traz à memória as investidas contra o habeas corpus, relembrando os argumentos de figuras proeminentes como Candido Motta e Pontes de Miranda. Esses debates, que remontam ao século XIX no Brasil, ecoam até os dias de hoje, evidenciando a tensão entre a garantia dos direitos individuais e a eficácia do sistema de justiça criminal.
Ao longo do tempo, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado um papel proeminente na defesa da aplicação do habeas corpus, mesmo diante de pressões por sua restrição. O caso emblemático do HC n. 110.1181 ilustra a importância atribuída a esse remédio legal, que é visto como um patrimônio a ser preservado pelo Estado.
O ministro Celso de Mello, em seu voto nesse caso, destacou a responsabilidade do STF em tornar o habeas corpus acessível a todos, ressaltando sua relevância na proteção da liberdade individual. Este artigo propõe uma reflexão sobre o papel do habeas corpus no processo penal brasileiro, destacando sua importância na proteção dos direitos fundamentais e no equilíbrio entre segurança e liberdade.
Longe de ser apenas um instrumento técnico-jurídico, o habeas corpus assume uma dimensão filosófica, sendo encarado por alguns como um jogo em que se disputa a liberdade e a justiça – e, insista-se, num ambiente permeado por ideologias, denúncias de law fare há que se ter segurança jurídica ao menos no que tange a teses jurídicas – sempre se lembrando que a acusação por contar com o status de órgão público acobertado pela ideia de defesa de valores superiores da sociedade, acaba ficando em posição ideologicamente privilegiada em relação à defesa – de modo que o habeas corpus se torna em instrumento de defesa, assegurando não apenas a liberdade de locomoção, mas também o direito de defesa em todas as etapas do processo penal.
Malgrado a expressão Promotor de Justiça remeta a pessoas que promovam justiça – pelo fato de justiça ser conceito vago variável de pessoa para pessoa – nem sempre a ideia de justiça da Promotoria – ainda mais se ideologizada e num ideia de espírito de corpo institucional que deva desenvolver agendas comuns para ganhar espaço na sociedade acaba refletindo situações de efetiva razoabilidade, de modo que a defesa e advocacia precisam de instrumentos que garantam a paridade de armas e o Estado de Direito contra arbitrariedades.
Aliás, todo aquele que preconiza a ideia de que a defesa ou o criminalista defendem bandidos, como infelizmente se escuta em certos ambientes não pensa que, num mundo ideologizado, toda e qualquer pessoa corre risco jurídico diário de se ver enredado em um processo judicial – e nesse momento, diante da enorme carga de infâmia de um processo penal, se desejará que advogados tenham instrumentos para também promoverem justiças contra abusos.
Basta pensar em ideias extremadas como a incidência do direito penal do inimigo, movimento Law and order, denúncias de law fare, exageros extremistas, transições de valores e outras ideias para ver como o risco de ser processado, ainda mais por questões ideológicas é enorme. O mundo se tem como um lugar perigoso para se viver. Gonzalo Quintero Olivares pontua a despeito da desfuncionalidade e irracionalidade do sistema jurídico-penal e seus reflexos no seio social:
Pero antes de llegar al hombre autor concreto, al cual el sistema puede y debe tratar con el mayor respeto a to que la proporcionalidad implica, ese sistema tiene que haber sido formulado de una manera tambien proporcional, equilibrada, a fin de que no se fie a una ultima instancia la soluci6n de incorrecciones o fallas provocadas por el sistema mismo .Con frecuencia el penalista o el juez se encuentra ante una situación factica en la que desearia la solución más acorde con la justicia : pero es el propio <<rigor legis>> quien se to impide . No me refiero ahora al conocido aforismo csummum ius, summa iniuria>> ni a las consecuencias del legalismo, sino a un problema conexo pero mas grave. Cuando la legalidad es correcta en terminos generales se podra objetar, si es excesivo el rigor de aquella, que es necesario flexibilizarla . Pero si la legalidad no es correcta, sino disfuncional respecto a la realidad de las cosas o respecto a los postulados politico-criminales, la necesidad de aplicarla se torna dramatica. Pero el primer peligro de disfuncionalidad del sistema reside en el sistema mismo. Si el Código carece de coherencia interna -y recuerdese que un Código es un cuerpo arm6nico v no una recopilaci6n de normas- evidenciara la falta de homogeneidad de las decisiones que puedan adoptarse con arreglo a el. La homogeneidad es una necesidad que no se opone en manera alguna al postulado de que es preciso tratar desigualmente to desigual. Pot el contrario, la homogeneidad tiene una dimensión material superior que se traduce en el equilibrio y proporcionalidad del sistema2.
Sem contar interpretações em gambiarras do processo penal, como ideias de exasperar penas e lançá-las no máximo para evitar prescrição, ou exasperar penas em delitos de trânsito porque a Câmara Recursal entende que o acusado deveria ter sido pronunciado e como não se concorda com a visão da Promotoria, se exaspera a pena para mudar a tipificação, e, ainda, a total supressão de análise de argumentos de defesa como se não tivessem sido sequer lançados em peças. Por vezes advogados são inconvenientes – mas é uma inconveniência do bem, que não compactua com exageros e interpretações draconianas – o habeas corpus permite, ao menos, a possibilidade de fixar teses jurídicas.
HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DO HABEAS CORPUS
A história do habeas corpus remonta ao século XIII, na Inglaterra, onde foi inicialmente estabelecido como um remédio legal para proteger os cidadãos contra a detenção ilegal ou arbitrária. Sua essência era garantir que ninguém fosse detido sem justa causa ou sem o devido processo legal. O termo, inclusive, deriva do latim e significa "que tenhas o corpo", refletindo a natureza da ação legal, que busca garantir a liberação física da pessoa detida ilegalmente, bem como revela a ideia de que o preso deva ser trazido ao juiz para análise da questão.
O habeas corpus, tanto nacional quanto internacionalmente, é comumente reconhecido como um instrumento fundamental de controle do poder estatal. Como destacado por Isaac Sabbá Guimarães, este instituto é caracterizado pela sua capacidade de controlar o exercício do poder, sendo um elemento essencial na proteção dos direitos individuais contra abusos estatais. Dante Busana enfatiza essa dimensão ao salientar que a monarquia absoluta e o habeas corpus são conceitos intrinsecamente contraditórios, uma vez que um regime absoluto não pode tolerar um processo que demande a Coroa a justificar suas ações.
As raízes históricas do habeas corpus remontam à Magna Carta Libertatum de 1215, uma conquista dos barões ingleses perante o rei João Sem Terra que somente abriu mão de prerrogativas da Coroa para conter a insurreição. Embora a Magna Carta não faça menção explícita ao habeas corpus, estabelece limites para o poder real, exigindo que a prisão seja precedida por um julgamento regular – a própria ideia de julgamento pelos pares – um Tribunal de Júri, decorre disso.
No entanto, foi somente com o Habeas Corpus Act de 1679 que a garantia do habeas corpus foi formalmente instituída na Inglaterra. Este ato estabeleceu procedimentos claros para a concessão do habeas corpus, garantindo que indivíduos detidos ou acusados de crimes tivessem o direito de contestar sua prisão perante um juiz independente.
A evolução do habeas corpus, tanto na Inglaterra quanto em outras jurisdições, é marcada por um esforço contínuo para garantir o respeito às garantias fundamentais consagradas na Magna Carta e para estabelecer limites claros para o exercício do poder punitivo do Estado.
Este instituto desempenha um papel crucial na proteção dos direitos individuais, assegurando que nenhum indivíduo seja privado de sua liberdade sem um processo justo e imparcial (repita-se, a ideia de Justiça varia de pessoa para pessoa – basta ver que a justiça do corintiano seja diametralmente oposta a do palmeirense em simples metáfora que traz a ideia aqui lançada).
Em um contexto contemporâneo, o habeas corpus continua a ser uma ferramenta vital na defesa dos direitos humanos e na promoção do Estado de Direito. Sua aplicação efetiva requer um entendimento claro de princípios fundamentais e um compromisso com a proteção das liberdades individuais contra qualquer forma de abuso de poder. Assim, ao analisar a evolução histórica e o papel atual do habeas corpus, torna-se evidente sua importância como um mecanismo essencial de contenção do poder estatal e de garantia da justiça e equidade no sistema jurídico.
BRASIL COLONIA E CARTAS DE SEGURO
No contexto do Brasil Colônia, especialmente em seus estágios iniciais, a existência do habeas corpus seria inconcebível, dada a configuração do sistema de justiça da época. Como observado por Anibal Bruno, as cartas de doação conferiam aos capitães donatários uma autoridade absoluta sobre a administração da justiça em suas terras.
Essas cartas concediam jurisdição conjunta aos donatários e seus ouvidores, com poderes que incluíam a imposição da pena de morte, sem possibilidade de recurso. A presença de tal poder privado nas mãos dos donatários era claramente incompatível com a ideia de um sistema baseado em direitos e garantias individuais, incluindo o habeas corpus.
Durante o período colonial, enquanto as Ordenações Filipinas estavam em vigor até a promulgação do Código Criminal de Primeira Instância em 1832, outro instrumento legal, a Carta de Seguro, era utilizado. Este instituto, como investigado por Maria Lúcia Resende Chaves Teixeira, era amplamente difundido no Brasil Colônia, sendo solicitado logo após a ocorrência de um delito. As cartas de seguro podiam ser negativas, quando o réu negava sua autoria, ou confessativas, quando o réu admitia a autoria, mas alegava justificativas ou falta de intenção criminosa.
No entanto, é importante ressaltar que a Carta de Seguro não pode ser equiparada ao habeas corpus inglês. Enquanto o habeas corpus se destina a garantir a liberdade individual contra detenções arbitrárias, a Carta de Seguro operava como uma cautela substitutiva, concedendo ao réu a liberdade condicional até o final do processo ordinário. Ao contrário do habeas corpus, a Carta de Seguro não questionava a legalidade da prisão em si, mas sim oferecia uma alternativa à prisão processual legítima.
Portanto, durante o período colonial brasileiro, a ausência do habeas corpus é reflexo do domínio do poder privado e das estruturas de justiça que não priorizavam a proteção dos direitos individuais. Enquanto as cartas de seguro desempenhavam um papel na mitigação das prisões, elas não representavam um equivalente ao habeas corpus em sua função de garantir a liberdade contra o poder arbitrário do Estado.
A CARTA DE 1824
A Carta Outorgada de 1824, apesar de consagrar certos direitos aos súditos em seu artigo 179, inciso 8º, não mencionou explicitamente nem instituiu o habeas corpus. Este dispositivo constitucional estabelecia que 'Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, exceto nos casos declarados em lei; e nestes, dentro de vinte e quatro horas, contadas da entrada na prisão, sendo em cidades, vilas ou outras povoações próximas aos lugares da residência do juiz, e nos lugares remotos, dentro de um prazo razoável, que a lei marcará, atenta à extensão do território, o juiz por uma nota por ele assinada fará constar ao réu o motivo da prisão, o nome do seu acusador e os das testemunhas', porém, não proporcionava uma garantia efetiva para assegurar seu cumprimento.
É importante observar que mesmo antes da promulgação da Carta de 1824, o Decreto de 23 de maio de 1821, referendado pelo Conde de Arcos, conferia certos direitos aos homens livres, como o direito de não serem presos sem ordem escrita do juiz 'ou magistrado criminal, exceto apenas no caso de flagrante delito', e a exigência de culpa formada para a expedição da ordem de prisão. No entanto, esses direitos não foram acompanhados do instrumento necessário para sua proteção.
Embora algumas interpretações, como a de José de Alencar, sugiram que o habeas corpus estava implícito na Carta de 1824, atribuindo-lhe a independência dos poderes e o direito exclusivo do Poder Judiciário em questões de inviolabilidade pessoal, a verdade é que a Constituição não articulou explicitamente o habeas corpus.
Como destacado por um antigo desembargador do TJRS e membro da Comissão elaboradora do Anteprojeto do Código de Processo Penal de 1941, a Carta de 1824 estabeleceu princípios em favor da liberdade do cidadão, e o meio eficaz para garantir essa liberdade, quando violada de forma arbitrária, foi atribuir a responsabilidade ao juiz que cometesse tais atos (conforme o § 10 do art. 179). Pierangelli argumenta que a Carta de 1824 'formulou as bases sobre as quais viria se assentar o instituto que ora estamos examinando'.
IMPACTO DO CÓDIGO DE PROCESSO CRIMINAL DE 1832 E OUTROS DESDOBRAMENTOS HISTÓRICOS
Com a promulgação do Código de Processo Criminal de Primeira Instância em 1832, o habeas corpus passou a ser formalmente reconhecido como um direito processual essencial. Isso teve um impacto significativo na proteção das liberdades individuais dos cidadãos brasileiros, conferindo-lhes um meio legal para contestar prisões arbitrárias e constrangimentos ilegais à sua liberdade.
A consolidação do habeas corpus como um instrumento legal fundamental para a salvaguarda das liberdades individuais no Brasil foi resultado não apenas da promulgação do Código de Processo Criminal, mas também do reconhecimento gradual de sua importância pela jurisprudência e pela sociedade em geral. Ao longo do tempo, o habeas corpus se tornou um dos pilares do sistema jurídico brasileiro, contribuindo para a consolidação do Estado de Direito. Ao reconhecer o papel fundamental do Código de Processo Criminal de Primeira Instância de 1832 na instituição do habeas corpus no Brasil, é possível compreender melhor o contexto histórico e jurídico que cercou esse importante desenvolvimento.
O descompasso legislativo entre os projetos de código criminal e código processual, apesar dos desafios que apresentou, não impediu a consolidação do habeas corpus como um direito processual essencial. Como resultado, os cidadãos brasileiros passaram a contar com um importante meio legal para proteger suas liberdades individuais e contestar eventuais abusos de poder por parte das autoridades.
A Lei 2.033 de 1871 ampliou o escopo do habeas corpus, estendendo-o aos estrangeiros e conferindo-lhe natureza preventiva, permitindo sua concessão nos casos de ameaça de prisão ilegal. No entanto, houve resistência quanto à sua aplicação em casos de pronúncia ou sentença, argumentando que tais atos só poderiam ser contestados por meios ordinários.
Inicialmente, os escravos não podiam impetrar ou ser beneficiados pelo habeas corpus, mas Luiz Gama argumentava com leis abolicionistas para defender a liberdade dos escravos. Apesar da mentalidade escravocrata, alguns magistrados decidiram a favor da liberdade individual, concedendo carta de liberdade a escravos ilegalmente mantidos em cativeiro.
Com a Proclamação da República e a Constituição de 1891, o habeas corpus ganhou status constitucional e foi ampliado para amparar situações além da liberdade de locomoção. A doutrina brasileira do habeas corpus se desenvolveu como uma construção necessária para suprir lacunas na proteção dos direitos fundamentais.
A reforma constitucional de 1926 restringiu o habeas corpus à proteção da liberdade de locomoção, refletindo o viés autoritário daquele governo. A Constituição de 1934 restabeleceu o caráter preventivo do habeas corpus e ampliou sua aplicação para situações além da liberdade de ir e vir. Durante o período da ditadura de 1964, o habeas corpus foi restringido pelo Ato Institucional número 5, que suspendeu sua garantia nos casos de crimes políticos. Posteriormente, o AI-6 limitou sua utilização como recurso substitutivo.
Com a Constituição de 1988, o habeas corpus foi restabelecido em sua plenitude, concedendo-se sempre que alguém sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder. A vedação ao habeas corpus substitutivo foi revogada, restabelecendo-se a plena garantia desse remédio heroico.
O HABEAS CORPUS NA REPÚBLICA E A DOUTRINA BRASILEIRA
Com a transição para a República e a promulgação da Constituição de 1891, o habeas corpus adquiriu não apenas status constitucional, mas também uma amplitude maior em sua aplicação, abrangendo situações para além da mera questão da liberdade de locomoção. O texto constitucional estabeleceu que o habeas corpus poderia ser concedido sempre que um indivíduo sofresse ou estivesse em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder (art. 172, § 22).
Essa redação ampliou as possibilidades de aplicação do instituto, permitindo que fosse utilizado para amparar uma variedade de situações. Conforme destacado por Ada Pellegrini, Antonio Magalhães e Antonio Scarance, o habeas corpus foi concedido em casos como anulação de atos administrativos, garantia de segunda época de exames a estudantes, assegurando a realização de comícios eleitorais e garantindo o exercício de profissões, entre outros. Esse aspecto interpretativo mais amplo deu origem à chamada "doutrina brasileira do habeas corpus".
Conforme expresso por Evandro Lins e Silva, essa doutrina representou uma construção necessária para suprir a falta de outros instrumentos jurídicos capazes de proteger os direitos assegurados na Constituição, como a imunidade parlamentar em períodos de estado de sítio. O habeas corpus foi essencial para proteger os direitos individuais em face de possíveis abusos de poder, como observado pelo Min. Eneas Galvão.
Embora tenha havido opositores ao emprego amplo do habeas corpus, como Castro Nunes, a doutrina brasileira do habeas corpus ganhou força. Pedro Lessa propôs uma interpretação mais restritiva, vinculando o uso do habeas corpus a casos em que estivesse diretamente comprometida a liberdade de locomoção ou em que essa liberdade pudesse ser afetada, como a liberdade religiosa.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desempenhou um papel fundamental na consolidação do habeas corpus como instrumento essencial para a proteção dos direitos individuais. Em momentos de tensionamento entre os poderes, o STF enfrentou desafios semelhantes aos enfrentados hoje, lutando para preservar a democracia e suas instituições. A força deste Pretório nos primórdios da República se evidenciou através de decisões que confrontaram os arroubos autoritários, mesmo enfrentando ameaças por parte do chefe do Poder Executivo, como observado em relação a Floriano Peixoto em 1892.
ATUALIDADE E IMPORTÂNCIA DO HABEAS CORPUS
Da preciosa lembrança de Nelson Câmara – um verdadeiro resgate histórico – sobre a eficaz utilização entre nós do habeas corpus como instrumento de libertação dos escravos, que o engenho e a combatividade do “advogado dos escravos”, Luiz Gama, fizeram, passando pelos truculentos episódios políticos da República Velha, que levaram Rui Barbosa, em inúmeras oportunidades, ao Supremo Tribunal Federal para conjurar violências, até o importante registro de Louis Begley sobre o manejo do writ nos EUA para garantir o devido processo legal aos presos na Base Naval de Guantánamo, permanecem vivas as palavras de Manoel Godofredo d’Alencastro Autran sobre ser o habeas corpus “eficaz garantia contra os abusos do poder, ela em si contém o que há de mais precioso para o cidadão”.
No caso norte-americano, de extrema gravidade para um país que sempre se autoproclamou defensor dos direitos humanos e da democracia, onde os prisioneiros de Guantánamo, como os escravos de outrora, tornaram-se “não-pessoas”, a Suprema Corte, no caso Hamdan vs. Rumsfeld (2006), rejeitou o argumento do Pentágono de que a jurisdição da Corte fora suplantada pela Lei de Tratamento de Detentos (Detainee Treatment Act – DTA, de 2005).
Segundo esta lei, somente o Tribunal Regional do Distrito de Columbia ficava autorizado a fazer reexames de decisões dos Tribunais para Revisão da Condição de Combatentes. A Suprema Corte acabou interpretando “a cláusula de destituição de jurisdição como inaplicável a um processo de habeas corpus que, como o de Hamdan, tivera início antes da aprovação da lei”.
Begley destaca que a Corte, em adendo, determinou que a comissão militar estabelecida pelo Presidente não tinha poderes para julgar Hamdan porque sua estrutura e seus procedimentos violavam tanto o Código Uniforme de Justiça Militar como as quatro Convenções de Genébra assinadas pelos EUA em 1949. Entre as falhas processuais apontadas pela Corte “estavam a impossibilidade de o acusado e seu advogado civil saberem quais evidências (leia-se, provas) estavam sendo apresentadas durante qualquer parte do processo, cujo acesso o oficial presidente decidiu lhes proibir...”.
As palavras de Louis Begley, associadas ao que ocorreu no histórico caso do capitão Dreyfus, há mais de cem anos na França, no qual também se permitiu o julgamento com provas secretas, dão a exata importância da garantia do habeas corpus e, igualmente, de se zelar pela sua vigência em toda a sua plenitude.
É que, justamente hoje, também entre nós, quando são feitos inúmeros acordos por conta das assim chamadas delações premiadas, a pretexto de se proteger os delatores, impede-se que os advogados dos acusados/delatados tenham acesso ao conteúdo das declarações incriminatórias e às sentenças que as acolhem para extinguir a punibilidade do delator, em virtude da prova produzida em segredo contra o delatado. Assim, na contraface, sela-se o destino dos acusados delatados sem, para usar um eufemismo, o pleno contraditório. Expressivo, a propósito, os dizeres de um acórdão pioneiro do TRF 3ª Região:
"Se as declarações do réu delator servirão como prova, e terão influência no convencimento do Julgador, não há como negar o direito de acesso dos acusados, sob pena de frontal violação ao direito ao contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, assegurado pelo artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal."
"Entendimento contrário, ou seja, admitir-se a legalidade de sigilo dos depoimentos incriminadores corresponderia a dar foros de validade e possibilitar a condenação de alguém com base em ‘prova secreta’".
Hoje, com a disseminação das “operações espetaculares” – para não a começar pela do mensalão (2005), até a de agora, eivadas de espetacularização realizando espetáculos públicos, um dos pontos que mais emergem das discussões é o habeas corpus, instrumento desmoralizado por muitas autoridades judiciais e membros do Ministério Público. Segundo estes, de tanto se usar o habeas corpus para livrar criminosos, o instituto tornou-se, ao longo do tempo, no Brasil, mero expediente protelatório, retardando a eficácia da justiça penal.
Tudo a respeito da restrição do uso do habeas corpus para os casos mais excepcionais. Tanto é assim que está em discussão no Congresso Nacional uma reforma no Código de Processo Penal que restrinja o seu uso indiscriminado. Querem, segundo os seus autores, que seja prevista a possibilidade de imposição de multas aos que “abusarem” do instituto, valendo-se de recursos protelatórios.
Que tipo de abuso é esse que se fala? Será que é um crime usar-se de um direito constitucional? Será que é “abuso” um advogado utilizar-se de um remédio constitucional que lhe garante, como direito subjetivo, a liberdade do seu cliente? Não seria, ao contrário, abuso, ou até prevaricação, ou mesmo afronta à Constituição e ao Estado Democrático de Direito, impedir que o advogado exerça o direito de defesa de seu cliente?
Não seria, isto sim, total afronta ao princípio da ampla defesa e ao devido processo legal que proíbe o Estado de utilizar-se de provas ou de quaisquer informações que tenha obtido clandestinamente ou sem a observância dos procedimentos legalmente previstos? Não seria, outrossim, grave ameaça à segurança jurídica impedir que o cidadão tenha acesso ao Judiciário para ver protegido o seu direito líquido e certo?
Essas são perguntas cujas respostas a Constituição Federal já deu. É bem verdade que temos um habeas corpus generoso. Generoso porque, ao contrário de outros países, o habeas corpus no Brasil, em lugar de restringir o seu uso como, a título de exemplo, se dá nos Estados Unidos, onde não se admite mais do que um habeas corpus em favor de um mesmo indivíduo durante todo o processo penal, permite a impetração de quantos habeas corpus forem necessários para garantir a liberdade de locomoção.
Generoso, também, porque não exige para a sua impetração o esgotamento de todas as vias recursais. E, por ser instrumento de proteção de direito fundamental, é direito subjetivo do cidadão a quem se nega o direito à liberdade. Querer restringir o seu uso é um retrocesso, e, portanto, contrário à Constituição e ao Estado Democrático de Direito. E o que é pior, desumano.
A relevância do habeas corpus na justiça penal brasileira se manifesta em diversas dimensões. Primeiramente, ele atua como uma garantia de liberdade, assegurando que nenhum indivíduo seja mantido preso arbitrariamente. Diante de situações de prisão ilegal ou de constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, o habeas corpus se apresenta como um mecanismo célere e eficaz para a restauração da legalidade, permitindo que o Judiciário intervenha rapidamente para corrigir abusos.
Além disso, o habeas corpus contribui significativamente para a proteção dos direitos fundamentais. Em um cenário onde a segurança pública e a repressão ao crime são frequentemente tensionadas pela necessidade de garantir direitos individuais, o habeas corpus equilibra essa balança, garantindo que a busca pela segurança não ultrapasse os limites impostos pelo respeito aos direitos humanos e ao devido processo legal.
O instituto também desempenha um papel essencial no controle jurisdicional de atos de autoridade. Por meio do habeas corpus, é possível submeter à apreciação judicial ações e decisões de autoridades públicas, garantindo que estas atuem dentro dos limites da legalidade e da constitucionalidade. Isso reforça o sistema de freios e contrapesos, essencial para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Em suma, a importância do habeas corpus na justiça penal brasileira é inquestionável. Ele não só protege a liberdade individual, mas também fortalece os mecanismos de controle dos atos estatais e assegura a observância dos direitos fundamentais. Em um ambiente onde as garantias individuais podem ser ameaçadas por excessos ou desvios de poder, o habeas corpus emerge como uma ferramenta indispensável para a defesa da liberdade e da justiça.
Desta forma, o remédio constitucional deve ser debatido a fim de assegurar mecanismos adequados para limitação das atuações estatais a fim de evitar sua arbitrariedade. Não pode ser relativizado ou diminuído a um instrumento processual protelatório.
NOVAS QUESTÕES RELEVANTES EM SEDE DE HABEAS CORPUS
Importante destacar que, apesar deste papel e de uma certa liberdade formal, permitindo-se a interposição por qualquer pessoa, sem necessidade de uma capacidade postulatória especial, para que não ocorram abusos e até para evitar que ocorram abusos que levem a um esgotamento da máquina judiciária estatal (o enorme volume de serviços num número de juízes e serventuários insuficientes a luz da estrutura de outros países) algumas limitações são impostas pela jurisprudência.
Em linhas gerais, o Habeas Corpus pode ser entendido como um instrumento previsto na Constituição Federal, cujo objetivo é proteger o direito de liberdade de locomoção de um indivíduo, garantindo que ele não sofra prisão ou restrição de movimento ilegal ou abusiva.
Por ser entendido como garantia de liberdades individuais que são cláusulas pétreas deve ser impetrado. Tem a finalidade precípua de defesa do jus deambulandi3 (direito de ir e vir) – e não pode ser confundido com a matéria de impetração de um mandado de segurança – para liberar um veículo apreendido indevidamente caberia em tese o mandado de segurança e não o habeas corpus.
Sem risco ao direito de ir e vir se tem entendido, de modo sumulado que o habeas corpus não pode ser utilizado como remédio processual – de se observar, por exemplo, o enunciado das Súmulas 395, 693, 694 e 695 STF4.
Como matéria apta a defender direitos fundamentais, seu objetivo é combater atos arbitrários do Estado ou de particulares. São frequentes impetrações em face de hospitais e manicômios por internações compulsórias ilegais – e isso pode ser feito por qualquer pessoa, como destacado acima. Na pandemia, em caso curioso de uma instituição de ensino superior que servia de internato se observou impetração de habeas corpus em favor de alunos que não podiam sair de seus quartos.
O Habeas Corpus pode ser classificado em duas categorias: preventivo e liberatório. O preventivo se impetra quando há um receio de que a pessoa sofra uma prisão ilegal, e sua finalidade é evitar que essa prisão ocorra. Já o liberatório é utilizado quando a pessoa já se encontra presa ou com sua liberdade restrita de forma ilegal ou abusiva, buscando a imediata soltura do indivíduo.
O pedido de Habeas Corpus pode ser impetrado por qualquer pessoa, não sendo necessário ser advogado, e pode ser dirigido a um juiz, tribunal ou a uma autoridade policial. Aqui se tem a questão da capacidade postulatória – ou jus postulandi – deferido excepcionalmente a quem não é advogado e nem exerce função entendida como ministério advocatício (funções essenciais à administração da justiça).
A autoridade responsável por analisar o pedido deve verificar se a prisão ou restrição de liberdade é legal e se está de acordo com os princípios constitucionais. Caso seja constatada a ilegalidade ou abuso, a autoridade deve conceder a ordem de Habeas Corpus, garantindo a liberdade do indivíduo. A ordem de habeas corpus pode até mesmo ser decretada de ofício quando alguma autoridade verificar que alguém está preso indevidamente.
De se apontar que habeas corpus tem natureza de ação autônoma, não sendo um recurso penal na acepção técnica – como se tem que seria uma ação de impetração – o habeas corpus não pode ser utilizado como sucedâneo (substituto) de um recurso. A jurisprudência das Cortes Superiores é pacífica quanto a isso:
STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS: AgRg no HC 779155 SP 2022/0335217-7 Acórdão • Data de publicação: 27/02/2023 AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. NULIDADE DA BUSCA PESSOAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. REVALORAÇÃO JURÍDICA DOS FATOS INCONTROVERSOS. POSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O habeas corpus não pode ser utilizado como substitutivo de recurso próprio, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, com a exceção de quando a ilegalidade apontada é flagrante, hipótese em que se concede a ordem de ofício.Precedentes: STF, HC 147.210 -AgR, Rel. Ministro EDSON FACHIN, DJe de 20/2/2020; HC 180.365 AgR, Relatora Ministra ROSA WEBER, DJe de 27/3/2020; HC 170.180 -AgR, Relatora Ministra CARMEM LÚCIA, DJe de 3/6/2020; HC 169174 -AgR, Relatora Ministra ROSA WEBER, DJe de 11/11/2019; HC 172.308 -AgR, Rel. Ministro LUIZ FUX, DJe de 17/9/2019 e HC 174184 -AgRg, Rel. Ministro LUIZ FUX, DJe de 25/10/2019. STJ, HC 563.063-SP , Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Terceira Seção, julgado em 10/6/2020; HC 323.409/RJ , Rel. p/ acórdão Ministro FELIX FISCHER, Terceira Seção, julgado em 28/2/2018, DJe de 8/3/2018; HC 381.248/MG , Rel. p/ acórdão Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Terceira Seção, julgado em 22/2/2018, DJe de 3/4/2018. 2. Mesmo que não se admita o habeas corpus como sucedâneo de revisão criminal, por configurar usurpação da competência do Tribunal de origem, nos termos dos arts. 105 , I , e e 108 , I , b , ambos da Constituição Federal , deve ser concedida a ordem, de ofício, se demonstrada a presença de manifesta ilegalidade. 3. Ressalta-se que não é necessário revolver o material fático-probatório para reconhecer a ilegalidade da busca pessoal, em total afronta ao artigo 244 do Código de Processo Penal, uma vez que, no caso, os fatos incontroversos já estão delineados nos autos. 4. Agravo regimental do Ministério Público Federal a que se nega provimento.
A exceção seria a questão da chamada teratologia jurídica – ou situação jurídica insólita em que existe patente ilegalidade e que pode vir a ser reconhecida até mesmo pela via do habeas corpus de ofício. Sobre o tema:
STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS: AgRg no HC 720820 MG 2022/0025865-4 Acórdão • Data de publicação: 22/03/2022 AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. FLAGRANTE ILEGALIDADE. CABIMENTO. DOSIMETRIA. CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA. AFASTAMENTO. DEDICAÇÃO A ATIVIDADES CRIMINOSAS. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Ainda que se trate de habeas corpus substitutivo de recurso especial ou revisão criminal, é possível a concessão da ordem quando presente situação de manifesta ilegalidade, como verificado no caso em apreço. 2. A existência de meras notícias acerca de eventual traficância anterior não pode justificar, por si só, o afastamento do tráfico privilegiado, especialmente tratando-se de Réu primário, sem antecedentes. 3. Ações penais sem trânsito em julgado não podem justificar a negativa de aplicação da minorante prevista no art. 33, § 4.º, da Lei de Drogas. 4. A quantidade e a natureza da droga apreendida não permitem, por si sós, o afastamento da referida minorante, nos termos do entendimento firmado pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça no REsp n. 1.887.511/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA. Ademais, não foram indicadas outras situações impeditivas da referida causa de diminuição da pena. 5. Agravo regimental desprovido.
Não se desconhece o entendimento dos Tribunais Superiores acerca da função constitucional excepcional do habeas corpus, como forma de evitar sua utilização indiscriminada. Mas mesmo a despeito de certos filtros como o estabelecido na Súmula 691 STF – se pode impetrar habeas corpus para questionar teratologias ou patentes ilegalidades e injustiças, sobretudo quando houver urgência na análise da questão. A propósito:
EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL. PROCESSUAL PENAL. INEXISTÊNCIA DE NULIDADE DO ACÓRDÃO IMPETRADO: AUSÊNCIA DE CORRELAÇÃO ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO DO PEDIDO E A DA DECISÃO. IMPETRAÇÃO DE HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. ADMISSIBILIDADE. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. 1. Não entendendo o Superior Tribunal de Justiça pela possibilidade de conhecimento de habeas corpus, prejudicada a apreciação das alegações de fundo do Impetrante, não havendo que se falar em nulidade do acórdão impetrado pela ausência de correlação entre a fundamentação do pedido e a do acórdão impetrado. 2. O eventual cabimento de recurso não constitui óbice à impetração de habeas corpus, desde que o objeto esteja direta e imediatamente ligado à liberdade de locomoção física do Paciente. Precedentes. 3. Ordem concedida, de ofício, para determinar à Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça que examine o mérito do Habeas Corpus n. 139.346. ( HC 112836, Relator (a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 25/06/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-159 DIVULG 14-08- 2013 PUBLIC 15-08- 2013).
Também não se pode falar que a existência de recurso próprio a impedir impetração do Habeas Corpus, eis que, como vaticinado por Ada Pelegrini Grinover:
“não exclui o interesse de agir, pela falta de adequação, a previsão legal de recurso especifico para atacar o ato apontado como restritivo ou ameaçador da liberdade do paciente: é que o Habeas Corpus constitui remédio mais ágil para a tutela do indivíduo e, assim, sobrepõe-se a qualquer outra medida, desde que a ilegalidade possa ser evidenciada de plano, sem necessidade de um reexame mais aprofundado da justiça ou injustiça da decisão impugnada...”(RECURSOS NO PROCESSO PENAL, Revista dos Tribunais, 4ª ed., 2005, p. 356).
Nesse sentido, decidiu o Plenário STF, no julgamento do HC 152.752/SP, Rel. Min. Edson Fachin, a possibilidade de se impetrar habeas corpus em substituição a recurso ordinário – e se tem que a presente impetração se dá em sede preventiva – ainda pende de análise subida de recurso extraordinário na origem [2]. O STF, bem como o STJ, posteriormente, passou a conceder ordem de habeas corpus de ofício quando presente flagrante ilegalidade. O STF, em seu regimento interno, prevê, precisamente no artigo 193, inciso II, que:
Art. 193. O Tribunal poderá, de ofício: i – usar da faculdade prevista no art. 191, III; ii – expedir ordem de habeas corpus quando, no curso de qualquer processo, verificar que alguém sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
O artigo 203 do regimento interno do STJ, prevê da mesma forma, assim como normalmente os tribunais regionais e estaduais. Destarte, quando o habeas corpus tem por objetivo demonstrar flagrante ilegalidade no caso que está em análise, os tribunais superiores irão mitigar a súmula 691 do STF, para, de ofício, conceder a ordem do habeas corpus. O Ministro Celso de Mello, no julgamento do HC 106.860/SC, j. 25/2/11, asseverou com precisão peculiar sobre este tema:
“A não aplicação da Súmula 691/STF tem ocorrido na prática processual desta Corte, como o evidenciam diversas decisões proferidas, quer em sede monocrática ( HC 90.112-MC/PR, rel. min. CEZAR PELUSO – HC 89.113-MC/RJ, rel. min. CELSO DE MELLO – HC 87.353-MC/ES, rel. min. GILMAR MENDES – HC 88.050-MC/SP, rel. min. GILMAR MENDES- HC 88.569-MC/PE, rel. min. MARCO AURÉLIO – HC 88.129-AgR/SP, rel. min. JOAQUIM BARBOSA – HC 89.132-MC/RS, rel. min.MARCO AURÉLIO – HC 89.414-MC/RS, rel. min.CEZAR PELUSO – HC 86.634-MC/RJ, rel. min. CELSO DE MELLO, v.g.), quer em sede colegiada ( HC 86.864-MC/SP, rel. min. MARCO AURÉLIO – HC 85.185/SP, rel. min. CEZAR PELUSO – HC 86.864-MC/SP, rel. min. CARLOS VELLOSO): "1. COMPETÊNCIA CRIMINAL. ‘Habeas corpus’. Impetração contra decisão de ministro relator do Superior Tribunal de Justiça. Indeferimento de liminar em ‘habeas corpus’, sem fundamentação. Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal. Conhecimento admitido no caso, com atenuação do alcance do enunciado da súmula. Precedentes. O enunciado da súmula 691 do Supremo não o impede de, tal seja a hipótese, conhecer de ‘habeas corpus’ contra decisão do relator que, em ‘habeas corpus’ requerido ao Superior Tribunal de Justiça, indefere pedido de liminar”.” ( HC 87.468/SP, rel. min. CEZAR PELUSO – grifei) Cumpre registrar, por oportuno, que esta colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal – considerada a excepcionalidade da questão jurídico-constitucional suscitada no processo de “habeas corpus” – tem afastado a incidência da Súmula 691/STF, sempre que a decisão questionada perante esta Suprema Corte refletir hipótese de manifesta contrariedade à Constituição, à lei ou a diretriz jurisprudencial predominante neste Tribunal ( HC 89.025-AgR/SP, rel. p/ o acórdão o min. EROS GRAU – HC 90.957/RJ, rel. min. CELSO DE MELLO – HC 94.016/SP, rel. min. CELSO DE MELLO, v.g.)”
Vai daí que não se pode explorar amplamente o contexto probatório em sede de habeas corpus – ele se presta a analisar atos que sejam evidentemente ilegais a luz das provas existentes nos autos e não por provas ainda a produzir ou que estejam a depender da interpretação de outras provas. Isso porque estar-se-ia, antes o exposto na presença das exceções de incidência da Súmula 691 STF, como pontuado pelo Ministro Gilmar Mendes:
“Hipóteses excepcionais de afastamento da Súmula 691 Na hipótese dos autos, entendo caracterizada situação apta a ensejar o afastamento da Súmula 691/STF. Monocraticamente, os Ministros do STF têm aplicado a jurisprudência do Supremo no sentido de que a execução provisória da sentença já confirmada em sede de apelação, ainda que sujeita a recurso especial e extraordinário, não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência, conforme decidido no HC 126.292/SP. (...) No julgamento do HC 126.292/SP, o Ministro Dias Toffoli votou no sentido de que a execução da pena deveria ficar suspensa com a pendência de recurso especial ao STJ, mas não de recurso extraordinário ao STF. (...) Recentemente, a Segunda Turma julgou o HC 152.752/PR, DJe 27.6.2018, de modo que novamente manifestei-me no sentido de que o julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça é a opção que confere maior segurança à execução provisória da pena. Isso porque (...) o STJ pode corrigir questões relativas a tipicidade, antijuridicidade ou culpabilidade do agente, alcançando inclusive a dosimetria da pena. (...) No caso, após o desprovimento da apelação, a defesa opôs embargos infringentes no TRF/4ª, mas até a presente data inexiste julgamento de mérito. Assim, considerando a pendência no julgamento do referido recurso, entendo que a concessão da ordem do presente writ é medida que se impõe, principalmente, pelo fato de a jurisdição não ter sido exaurida em segunda instância. Trata-se de medida que se impõe, por extensão, diante do decido no HC 160.296/RS. Ante o exposto, concedo a ordem para que o réu aguarde em liberdade até o julgamento colegiado de possível RESP/ARESP pelo Superior Tribunal de Justiça, ou de habeas corpus que verse sobre questões iguais ou mais abrangentes que aquelas perfiladas nos recurso endereçados aos Tribunais Superiores.
[HC 163.010, rel. min. Gilmar Mendes, dec. monocrática, j. 5-10-2018, DJE 215 de 9-10-2018.]
No julgamento de um dos remédios encetados por esta banca em caso de JECRIM, dado como exemplificação (EMB DECL NOS BEM DIV NO AG REG NA RECLAMAÇAO 54.664 SÃO PAULO) o Ministro André Mendonça, sensível à ideia de que – fora de casos como de análise de casos de Violência Doméstica – o Juizado não é vocacionado a permitir a aplicação de penas que redundem em efetiva aplicação de penas restritivas de liberdade e encarceramento.
Com isso se retorna à vocação original de processos de Juizados Especiais que, por definição constitucional analisam, mesmo, delitos de menor potencial ofensivo – e seria contrassenso permitir encarceramento em condições como tal quando as Cortes Superiores assinalam na tendência de não se encarcerar, mesmo em casos mais graves – não se faz juízo de valor se isso seria popular ou não – mas sim se prisões são técnicas e adequadas ou não dentro das regras de um Estado Democrático e de Direito – conceitos que se completam mas são diferentes.
Vale o estímulo: E, essa decisão somente foi obtida já em fase de julgamento de embargos de declaração em embargos de divergência, praticamente num dos últimos degraus que separavam o acusado de uma prisão fora das hipóteses normalmente aplicadas por entendimento que, para a defesa exercida por esta banca, tangenciava a ilegalidade, entendimento a que aderiu o Relator e que terminou por ser cassado na r. decisão recursal, anulando-se a decisão e devolvendo-se o recurso de apelação criminal para ser apreciado pelo Colegiado, mas já proibindo aplicação de pena diversa de restritiva de direito em sendo o caso.
De se laudar o Ministro pela sensibilidade ímpar em destacar que malgrado se estava tentando evitar o trânsito em julgado da decisão condenatória (em verdade ainda pendia de análise a admissibilidade do recurso extraordinário) asseverou que a despeito destas tecnicalidades conferiria o caráter de habeas corpus de ofício eis que apontou de modo textual:
“Tratando-se de crimes de menor potencial ofensivo, tanto que o processo originário tramitou sob o rito da Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099, de 1.995), estimula-se, em relação a eles, a imediata imposição de multa ou de pena restritiva de direitos.”
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Ementa: Criminal. Impetração de habeas corpus substitutivo de recurso especial. Admissibilidade. Peculiaridades do caso concreto. Concessão da ordem. O eventual cabimento de recurso especial não constitui óbice à impetração de habeas corpus, desde que o direito-fim se identifique direta e imediatamente com a liberdade de locomoção física do paciente. Habeas corpus concedido, para que o STJ aprecie o mérito do HC 176.122/MS.
(STF - HC: 110118 MS, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 22/11/2011, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-155 DIVULG 07-08-2012 PUBLIC 08-08-2012)︎
OLIVARES, Gonzalo Quintero. Acto, resultado y proporcionalidad. ADPCP, T. XXXV, Fasc. II, Mayo-Agosto. pp. 381-408. 1982. p.384 e 385.︎
Nos termos do art. art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.︎
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Súmula 395 Não se conhece de recurso de "habeas corpus" cujo objeto seja resolver sôbre o ônus das custas, por não estar mais em causa a liberdade de locomoção.
Súmula 693 Não cabe habeas corpus contra decisão condenatória a pena de multa, ou relativo a processo em curso por infração penal a que a pena pecuniária seja a única cominada.
Súmula 694 Não cabe habeas corpus contra a imposição da pena de exclusão de militar ou de perda de patente ou de função pública.
Súmula 695 Não cabe habeas corpus quando já extinta a pena privativa de liberdade.︎