NÃO SÃO RAROS os casos onde o titular do patrimônio já tenha idade avançada, contando com bens de considerável importância e também filhos já independentes, com suas vidas construídas e encaminhadas. É importante saber que mesmo nesse contexto, o direito à herança (tão logo o titular dos bens faleça) permanece hígido e garantido por Lei (art. 1.829 e incisos c/c inc. XXX do art. 5º da Constituição Federal de 1988). Alguns instrumentos podem ser utilizados para de certa forma modular a transmissão dos bens por ocasião da passagem daquele que seja proprietário dos bens. Não o fazendo, como sabemos, valerá a ordem de vocação hereditária ditada pela Lei. No momento da edição deste artigo ainda vale a redação do art. 1.829 do Código que reza:
"Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais".
Nem em vida (por doação) nem para depois dela (via testamento) pode o titular dos bens infringir o DIREITO À LEGÍTIMA que assiste aos seus herdeiros necessários. Na atual codificação (a qual alertamos mais uma vez que está em vias de ser modificada por Projeto que tramita no Senado) são herdeiros necessários, na forma do art. 1.845 os descendentes, os ascendentes e o cônjuge (valendo incluir aqui também, com amparo na pacífica jurisprudência, o (a) companheiro (a)). A estes é garantida a LEGÍTIMA nos termos do art. 1.846 do Códex:
"Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima".
Nesse contexto, como já se conclui, havendo herdeiros necessários (como filhos) ainda que estes aos olhos do dono do acervo, teoricamente "não precisem" da herança, não deverá o titular dos bens proceder transmissão para netos ou sobrinhos (seja por testamento, seja por doação) sob pena de anulação - não do testamento ou da doação por inteiros - mas justamente da parte que agrida a legítima - o que certamente vai comprometer sua vontade consideravelmente. Nessa linha a doutrina especializada assinada pelo ilustre Advogado, Dr. LUIZ PAULO VIEIRA DE CARVALHO (Direito das Sucessões. 2019) que ensina:
"Também é de se fazer a ressalva de que, segundo o que reiteradamente vem afirmando a doutrina, a deixa testamentária excessiva não INVALIDA o testamento como um todo, apenas conferindo aos herdeiros necessários o poder de pleitear a REDUÇÃO em tela, com a finalidade de integralizar a reserva legal desfalcada pela disposição".
Com toda razão, é preciso intencionar, desde sempre, a preservação das disposições testamentárias, o cumprimento da vontade do (a) falecido (a), porém sem infringir o direito à legítima conferido por Lei aos herdeiros necessários (que, como sabemos, têm na verdade e meramente uma "expectativa de direito"). Nesse sentido dois importantes julgados, do TJGO e do TJPR esclarecendo o acerto da REDUÇÃO e não da ANULAÇÃO das transmissões manejadas por Testamento e por Doação, respectivamente, em situações onde a legítima fora violada:
"TJGO. 50634223720218090021. J. em: 13/02/2023. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE TESTAMENTO. (...) TESTAMENTO QUE EXCEDEU A LEGÍTIMA. HIPÓTESE EM QUE CABERIA PEDIDO DE REDUÇÃO DAS DISPOSIÇÕES TESTAMENTÁRIAS E NÃO DE ANULAÇÃO. (...). SENTENÇA REFORMADA. (...) 3. Em caso de inobservância da legítima, a consequência do excesso não é a nulidade do testamento, o qual permanece válido, comportando a questão, tão somente, pedido de redução das disposições testamentárias nos próprios autos do inventário, para adequá-lo aos limites da legítima. (...) 5. Sendo incontroverso o fato de que o testamento invadiu a quota hereditária legítima (já que a falecida deixou testamento dispondo de todo seu patrimônio em favor de seus BISNETOS quando existiam herdeiros necessários, em linha reta, da de cujus, na qualidade de NETOS), impõe-se, pois, a redução das disposições testamentárias, com a finalidade de se preservar a sucessão legítima, nos termos do que dispõe o artigo 1967, § 1º, do Código Civil. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E PROVIDA".
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"TJPR. 0000268-38.2017.8.16.0131. J. em: 21/03/2023. DIREITO DAS SUCESSÕES. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE DOAÇÃO INOFICIOSA. SENTENÇA. DECLARAÇÃO DE NULIDADE PARCIAL DA DOAÇÃO REALIZADA PELA GENITORA, EM VIDA, A UM DOS FILHOS. LIBERALIDADE QUE EXCEDEU OS LIMITES DA LEGÍTIMA. PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DA RESERVA. DOAÇÃO PARCIALMENTE NULA. REDUÇÃO PARA O PATRIMÔNIO DISPONÍVEL DA DOADORA À ÉPOCA DA LIBERALIDADE. NECESSIDADE DE REEQUILIBRAR A DISTRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA POR MEIO DE INVENTÁRIO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. A doação de ascendente para descendente encontra limites no instituto da legítima, que reserva aos herdeiros necessários (isto é, os descendentes, ascendentes e cônjuge), de pleno direito, a metade intangível do acervo hereditário do sucedido. Inteligência dos artigos 1.845 e 1.846 do Código Civil. 2. A proteção à legítima importa em uma limitação da autonomia da vontade do titular da herança, não apenas em relação ao seu direito de testar, mas também da liberdade de dispor, em vida, da parcela dos bens que protegerão a fração do acervo sucessório reservada aos herdeiros necessários. Aplicação do princípio da intangibilidade da reserva. Incidência dos artigos 548 e 549 do Código Civil. Literatura jurídica. 3. A doação a descendente, na parte que transborda o limite que poderia ser disposto em testamento no momento da liberalidade, prejudica a legítima e, portanto, é caracterizada como inoficiosa e, consequentemente, NULA. Exegese do artigo 549 do Código Civil. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal de Justiça. 4. In casu, a autora da herança firmou instrumento particular de doação de crédito de ascendente a descendente, por meio do qual repassou à filha/apelante a integralidade do patrimônio que possuía à época. Com efeito, restou demonstrado que a doação realizada pela de cujus à apelante excedeu a parte que a doadora poderia dispor no momento da liberalidade. 5. Havendo outros herdeiros necessários, é imperiosa a declaração judicial de NULIDADE PARCIAL da doação, por inoficiosidade, a fim de resguardar o quinhão de direito de todos os sucessores, inclusive da apelante, em procedimento de inventário. Aplicação do artigo 2.002 do Código Civil. 6. Sentença mantida. Recurso conhecido e não provido".