O juiz de segundo grau de jurisdição está impedido de participar do julgamento de causa que foi decidida em primeira instância por seu cônjuge, também juiz?
A questão não é de fácil desate e se faz cada vez mais presente nos tribunais brasileiros, em conseqüência de dois fenômenos funcionais contemporâneos, o primeiro marcado pela crescente presença das mulheres na magistratura e o segundo pelos matrimônios verificados entre pessoas exercentes da mesma profissão.
O Código de Processo Civil em vigor desde 1973 contempla nos artigos 134 a 137 os casos de impedimento e suspeição do juiz.
É cediço que o instituto do impedimento (CPC, arts. 134 e 136) funda-se em fatos objetivos e traduz presunção "juris et de jure" de parcialidade; constitui autêntica proibição endereçada ao juiz, é inderrogável pela vontade das partes, independe de provocação do interessado e constitui fundamento, inclusive, para a rescisão do julgado (art. 485, II, do CPC). A suspeição, por seu turno, nada obstante possa ser declarada "ex officio" pelo juiz que se sinta, por motivo íntimo ou previsto no CPC, art. 135, sem isenção para atuar no caso, está sujeita a preclusão quando não arguída pela parte a tempo e modo, presumindo-se a aceitação do julgador, apesar da desconfiança quanto à sua imparcialidade.
A situação focalizada, evidentemente, não se amolda a nenhuma das hipóteses contidas no art. 134 ou no art. 135 do CPC.
Mostra-se adequada sua análise como impedimento, na espécie, à luz do art. 136 do CPC, e, principalmente, da garantia do devido processo legal, consagrada constitucionalmente (art. 5º, LIV), na qual está inserido o direito do jurisdicionado ao juiz imparcial.
A jurisprudência é rara sobre o tema ora analisado, encontrando-se, porém, para fácil consulta, um veredicto selecionado por Theotonio NEGRÃO e José Roberto F. GOUVÊA (in "Código de Processo Civil e legislação processual em vigor", 38ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, nota 2 ao art. 136, p. 260), que, embora não trate da situação entre cônjuges, aproxima-se deste questionamento na medida em que se refere à posição de pai e filho magistrados decidindo a mesma causa:
"Não fica impedido o desembargador para apreciar decisão proferida por juiz, seu filho (STJ-RT 796/223)."
A doutrina, porém, segue entendimento contrário.
Para Celso Agrícola BARBI ("Comentários ao Código de Processo Civil", 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991, vol. I, p. 346), a regra contida no art. 136 do CPC de 1973 constitui novidade no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que, antes, nem sequer se cogitava da presença de parentes próximos integrando o mesmo tribunal. Nesse contexto, a disposição legal referenciada traduz uma evolução, de sorte a impedir apenas que funcionem na mesma causa.
O mencionado processualista de saudosa memória, na p. 347 da mesma obra, observa que:
"A lei não se referiu ao cônjuge; mas é de se entender que, apesar da omissão, o impedimento ocorra entre dois juízes do mesmo tribunal, que sejam casados entre si. A razão que inspira a regra legal tem aí maior motivo para ser aplicada, a fim de evitar que o julgamento de um recurso possa vir a ser feito ''em família''".
Tem-se, assim, uma primeira etapa da resposta, com apoio na elevada lição doutrinária, ou seja, o impedimento objeto do art. 136 do CPC também incide quando os juízes do mesmo tribunal forem casados entre si.
A segunda parte da indagação que se pretende responder neste estudo consiste em saber-se se tal impedimento se verifica, igualmente, na mesma causa, quando os juízes casados entre si nela funcionarem em diferentes instâncias.
E, para solucioná-la, basta a pertinente lição do consagrado PONTES DE MIRANDA:
"Tem-se que assentar que a sentença, proferida por algum dos parentes a que se refere o art. 136, também não pode ser apreciada na superior instância pela outra (sic). A lei não diz; mas aos Regimentos Internos toca prever a espécie". ("Comentários ao Código de Processo Civil", 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, tomo II, p. 432, atualização legislativa por Sérgio Bermudes).
Convém não esquecer que a finalidade do dispositivo legal sob comento, em vigor há mais de trinta anos, é evitar o julgamento "em família" - como salientado por Celso BARBI, de sorte que sua interpretação deve agasalhar extensão a todas as hipóteses em que a referida precaução seja desatendida, a exemplo da presença de juízes casados entre si no mesmo tribunal ou em órgãos jurisdicionais hierarquicamente vinculados, na mesma causa - sejam recursos ou ações.
Se juízes parentes ou colaterais entre si não podem, nos colegiados, participar do julgamento da mesma causa, igual obstáculo atinge marido e mulher, e, ainda, os magistrados de instâncias diversas ligados por tais relações. Acresça-se a esse rol os juízes vinculados entre si por união estável, uma vez que equiparada ao casamento civil (art. 226, §3º, da Constituição da República). É que, como sintetiza o brocardo latino, "onde existe a mesma razão, prevalece a mesma regra de direito".
Conclui-se, portanto, a teor do art. 136 do CPC e da garantia constitucional do juiz imparcial, que não podem proferir decisões na mesma causa juízes casados entre si. O primeiro que conhecer do feito impede a participação do outro, inclusive em graus de jurisdição distintos. A finalidade da norma, como dito, é evitar o julgamento "em família". E o esclarecimento sobre essa regra de impedimento merece constar dos regimentos internos dos tribunais, para observância geral.