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A crise da representatividade democrática contemporânea

Agenda 26/08/2024 às 11:57

O presente estudo tem como objeto o paradigma da representatividade democrática contemporânea, com destaque especial para uma análise sobre a possibilidade do governo representar o povo de forma efetiva, com base no contexto histórico-político brasileiro.


As origens da democracia remontam ao período Clássico e, na Grécia Antiga. Embora tenha sido precursora, o modelo democrático presente nessa sociedade era completamente distinto do atual, vez que apenas os homens, filhos de pais atenienses eram considerados cidadãos gregos.

Neste sentido, a democracia e a noção de representatividade sofreram diversas modificações com o passar do tempo, reflexo das mudanças paradigmáticas e evolução das visões sociais. A evolução da democracia teve como marco importante a Revolução francesa, que alterou o entendimento sobre a democracia através da ampliação conceitual de cidadania. Os lideres revolucionários compreendiam como sendo fundamental a necessidade de participação popular na busca pela evolução política, científica e social. Portanto, a partir do final do século XVIII, a democracia passou a se desenvolver com base na noção de bem estar coletivo.

Outro marco importante para a compreensão da evolução histórica da noção de representatividade política foi a liberação do voto feminino, ocorrida pela primeira vez na Nova Zelândia em 1893, momento de destaque na luta pela participação das mulheres na sociedade e na política. Portanto, essa conquista, assim como o sufrágio universal, a elaboração das Constituições, que instituíram a igualdade e ampliaram o conceito de “cidadão” a todos, sem distinção, atuaram para o surgimento da democracia representativa e participativa.

Fato é que a democracia antiga enfrentou diversos desgastes em razão das modificações das sociedades, que já não combinavam com os modelos ultrapassados, e os tipos democráticos atuais enfrentam constantes problemas para concretização de um modelo efetivo de representação popular na política.

Em teoria, o modelo democrático oferece a possibilidade de representação dos interesses de diversos grupos e indivíduos de uma sociedade, independente de classe ou nicho social. Entretanto, por vezes, o modelo de democracia representativa indireta, no qual os cidadãos exercem direito de escolha de representantes, com mandato definido, para atuarem em seu nome e representarem os seus interesses, é questionável quanto a sua efetividade.

Nas palavras de Gomes Canotilho destaca:

“A representação democrática, constitucionalmente conformada, não se reduz, porém, a uma simples delegação de vontade do povo. A força (legitimidade e legitimação) do órgão representativo assenta também no conteúdo dos seus actos, pois só quando os cidadãos (povo), para além de suas diferenças e concepções políticas, se podem reencontrar nos actos dos representantes em virtude do conteúdo justo destes actos, é possível afirmar a existência e a realização de uma representação democrática material”

Consequentemente, o modelo aponta certa fragilidade ou incompatibilidade de representação na medida em que o representante se distancie da população ou de seus interesses, tanto na elaboração de projetos, legislação ou administração pública.

A crise de representatividade, ou “vicio de representatividade”, se porta pela insatisfação popular, que não se vê representada pelos políticos eleitos, seja por considerar inadequadas as tomadas de decisões dos seus representantes, ou mesmo pelo afastamento da política dos interesses coletivos. Alguns autores, inclusive, indicam a existência de “sintomas políticos” que indicariam que determinada sociedade estaria passando por um período de vício representativo considerável, são eles: 1) reivindicação de direitos específicos de representação em favor de grupos historicamente marginalizados, que passam a se organizar em nichos com intuito de verem efetivados os interesses do grupo, como a luta pela criação de cotas mínimas para mulheres dentro dos partidos políticos; 2) A distância entre os representantes e os representados e; 3) A busca por “ídolos” políticos, capazes de resolverem milagrosamente as demandas sociais, fortalecidos pelos discursos populistas e por uma retórica simples e compreendida por todas as esferas da sociedade.

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Dentro do contexto brasileiro, apesar da existência de um governo democrático, experiencia-se uma profunda sensação de descrença diante das promessas públicas e do cenário político do país. Sobretudo nos últimos anos, a polarização gerada pelos recentes acontecimentos e escândalos políticos se apresenta como um novo sintoma da crise de representatividade enfrentada no país. Por um lado, uma parcela da população encontra na promoção do fanatismo e idolatria de representantes a saída para os problemas gerados nas últimas décadas. Entretanto, esse grupo não representa o interesse majoritário dos cidadãos, vez que as pesquisas realizadas no último ano indicam que 74% da população não se vê representada por nenhum partido político. Ou seja, embora a democracia representativa brasileira se apresente, na teoria, como um modelo capaz de ampliar os limites da representatividade, na prática, 3 em cada 4 brasileiros consideram que seus interesses não estão sendo defendidos.

Impulsionados por propagandas políticas que traçam perfis padronizados dos representantes e na falta de senso crítico pela população, os cidadãos se veem desmotivados a buscar por referências e históricos dos candidatos, acarretando em uma condição estrutural cíclica e com pouca perspectiva de mudança.

Esse paradigma da representatividade levanta questionamentos quanto à efetividade do modelo e à possibilidade de concretização da representatividade coletiva na sociedade contemporânea. Autores como Rousseau e Carl Schmitt foram críticos da ideia de possibilidade de representação do povo pelo governo, vejamos:

“Desde que o serviço público deixa de constituir a atividade principal dos cidadãos e eles preferem servir com sua bolsa a servir com sua pessoa, o Estado já se encontra próximo da ruína. Se lhes for preciso combater, pagarão tropas e ficarão em casa; se necessário ir ao conselho, nomearão deputados e ficarão em casa. À força de preguiça e de dinheiro, terão, por fim, soldados para escravizar a pátria e representantes para vendê-la.” (ROUSSEAU, 1997: 185)

A crítica de Rousseau em relação à conceituação de representação está pautada no que tange ao soberano e sua função legislativa. Rousseau enfatiza a relação entre a soberania e o poder legislativo, destacando que apenas aquilo que for ratificado pelo povo pode ser considerado lei. Quaisquer outros decretos realizados por funcionários do executivo, segundo o autor, deveriam ser considerados abusos do Governo. Consequentemente, o legislativo não poderia ser representado, mas o executivo sim.

“Não sendo a Lei mais do que a declaração da vontade geral, claro é que, no poder legislativo, o povo não possa ser representado, mas tal coisa pode e deve acontecer no poder executivo, que não passa da força aplicada à Lei. Tal fato leva-nos a ver que, se examinarmos bem as coisas, muito poucas nações possuem leis.”

Defende que o povo pode ser facilmente enganado, mas que dificilmente seria corrompido; já os representantes, dificilmente se deixariam ser enganados, entretanto, são corrompidos facilmente. Por derradeiro, entende ser preferível manter o poder nas mãos do povo que, embora seja passível de enganos, também poderia se tornar esclarecido. O contrário seria mais improvável: converter quem se corrompeu.

Nesta esfera, o pensamento do filósofo vai de encontro com a descrença da população brasileira em relação à classe política, em geral. Isto porque a ideia de que não só os representantes, mas o próprio aparato político já estaria corrompido, desmotiva a população de se tornarem “esclarecidos”, ou seja, de buscarem o conhecimento e, como dito anteriormente, desenvolverem seu pensamento crítico acerca da política, das necessidades coletivas e individuais e dos representantes escolhidos.

Sendo assim, para Rousseau não existe a possibilidade de se estabelecer uma república sem a participação de todos. Tampouco um Governo poderia ser democrático em caso dos seus representantes serem eleitos para ocupar o cargo do executivo. O cerne do problema se coloca, desta maneira, em saber como se daria essa participação.

No que tange á possibilidade de modificação da condição de esclarecimento do povo, em sua obra “Emílio” ou “Da Educação”, Rousseau afirma não ser possível “fazer um homem e um cidadão ao mesmo tempo”, provavelmente, estaria expondo sua angústia e desmotivação, compartilhada por uma parcela da população brasileira, causada pela elevada dificuldade de educar uma população para que possam se unir e se transformarem em um único corpo político esclarecido.

Por fim, com base no exposto, é evidente que a “representatividade perfeita”, em que todos veem seus interesses defendidos ininterruptamente, é um conceito idealizado e praticamente impossível de se concretizar, vez que os representantes não se portam como o espelho de seus representados, mas sim como uma síntese de um grande grupo populacional. Ademais, a única forma de um cidadão se ver representado a todo instante, seria se tornando o próprio representante, ou seja, sendo eleito.

A evolução dos direitos fundamentais, dos princípios constitucionais e da modernização das relações sociais, bem como a modificação da democracia e seus conceitos, demonstra que, na verdade, o caminho mais adequado para tomada de decisão dos representantes políticos se daria na síntese dos interesses de seus representados e, não sendo possível chegar em um consenso, deve-se prevalecer os interesses dos mais necessitados, marginalizados e mais agredidos pela esfera em apreciação.

Finalmente, as potencialidades contemporâneas da noção de representação política, diante do progresso tecnológico, devem-se desenvolver com base na aproximação dos políticos com os interesses que visem o bem estar coletivo.

Referências Bibliográficas:

  1. Bueno, Roberto (2012). Carl Schmitt e a crítica à democracia liberal. Revista de Estudos Jurídicos UNESP, v. 16, n. 24.

  2. CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. (16ª reimp.) Coimbra: Almedina. 2015. p. 294

  3. Miguel, Luis Felipe. A democracia e a crise da representação política: a accountability e seus impasses.

  4. Pedrosa, Maria Helena. Byung-Chul Han e a democracia de espectadores. Filosofia. Arcos, 2020.

  5. Schmitt, Carl. A crise da democracia parlamentar. Z-Library.

  6. ULHÔA, J. P. Rousseau e a utopia da soberania popular. Goiânia: editora da UFG, 1996.

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